A Casa das Sete Irmãs

Imagem criada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula, com Midjourney

Num lugar etéreo existe um sobrado, que eu, ao andar pelos sonhos, encontrei ao acaso, nas horas tardias de uma noite qualquer. 

Eram paredes cinzas e descascadas, com um lodo escorrido em estrias escuras sobre a tinta branca envelhecida, recoberta de trepadeiras, tinha o contorno de uma burlesca figura. 

Um jeito bucólico nas janelas altas, jardim de roseiras, árvores de galhos retorcidos, a grama por cortar de onde trevos brotavam, escondia os sapatos ao pisar no caminho. 

Havia pedras encaixadas no chão antes de chegar na varandinha inclinada. A entrada breve tinha algo quase lúdico, recaía o telhado sobre a fachada. No fim da tarde havia um brilho nas janelas de vidro fúlgido.

Não se encaixava em qualquer época que fosse, perdida num mundo isolada e tão só. Uns ares nostálgicos de infância, mas era um pouco estranha demais para ser casa de vó.

Bati à porta e depois de alguns toques percebi que se abriu de repente. Ninguém me recebeu, na verdade, mas fui entrando pela porta da frente. 

Era o fim do dia e meus olhos já sentiam a fosca escuridão do entardecer. Eu buscava ali uma estalagem onde eu poderia me hospedar, um lugar seguro para, então, adormecer. 

Conforme entrei fui notando de quem era a residência, primeiro pelas fotos nas paredes, depois pelas próprias moradoras, que eu logo encontrei na sequência.

Eram mulheres muito bonitas, todas irmãs de soberba elegância, todas elas com capricho na aparência e um modo muito cortês, de pronto tive a impressão. Eram sete moças, nenhum irmão.

Tão logo estive com elas, percebi por que fiquei tão atraído, a natureza lasciva daquelas mulheres encantadoras. Eram elegantes, como uma dama deve ser, e eu estava acanhado, com desenvoltura amadora.

Passei com elas aquele fim de tarde e à noite subsequente. Foi uma noite tão fria e escura que o vento soprava fazendo parecer permanente. Mas tive uma ótima experiência no interior do sobrado, que agora eu conto neste breve relato.

Não eram tímidas nem tampouco audazes. Mas não estavam acostumadas a receber muitos rapazes.

Acho que é por isso que tive a honra de ser cortejado. Depois de um jantar no conforto do sobrado, na calmaria de um ambiente tão hospitaleiro. Ali eu era o único hóspede, não sei se fui o primeiro.

Não é que tivesse um jeito de cabaré decadente, por Deus, não, nem sequer as aparências de um lupanar. Tudo aquilo era até mesmo um pouco inocente, bastante respeitável pelo que consigo lembrar.

Assim, terminada a refeição, nas segundas horas daquela noite, começa o jogo de sedução. Se empenharam no cortejo, uma a uma. E eu tão sensível a elas, reagia emotivo como o arrepiar de uma pluma.

Satisfeito e acomodado ainda na mesa, vi uma imagem deslumbrante, me salta aos olhos a primeira beleza. Aquela que se revela de vez num instante, mas que devolve os olhares para então compreendê-la.

Eu passaria tantas horas contemplativo, sem nem mesmo o ângulo alterar. Poria meus olhos a desvendar essa mistura, imerso nas cores que a visão captura, perdido nas linhas daquele profundo olhar.

Ela foi uma paixão duradoura, um primeiro amor de juventude que ali reencontrei. Ela foi o primeiro sentimento da paixão quando estoura, o primeiro retrato depois que coroam o rei.

Aquele mundo dos seus olhares me envolveu como se fosse um novo sonho e me acolheu na paisagem etérea que fez dos contornos. Era algo nostálgico que estava em mim, eu suponho, naquela imagem construída de riscos, texturas e adornos 

A próxima irmã era a boneca da pele clara mais lisa. De onde vinha um toque com a aspereza do olhar, nas formas de uma geometria muito precisa. 

Ali havia o desenrolar inerte de um movimento na estática. Não sei onde ela nasceu, talvez fosse de todo mundo, mas tenho certeza de que ela cresceu na Ática. E ainda conserva um modo grego de mostrar o corpo em detalhes. Uma maneira caprichosa na destreza dos seus entalhes.

Embora ficasse imóvel, com suas misteriosas expressões na inação, desvendada no corpo em cada pormenor, debaixo da pele o músculo ainda sentia a pressão, carne viva num sentido maior.

Só seu toque era frio, me causava uma sensação inesperada por não ter tato na palidez, algo como um arrepio. Quase poderia esperar um calor, quase sentia o veludo da pele. Mas no teste me deparava com uma rigidez.

Intrêmula sem mudar o semblante. No entanto, havia um movimento insistente. É como se o tempo parasse num instante, mas que o vento ainda soprasse sutilmente.

A terceira irmã era proeminente. De rosto simétrico e a que vestia maior grau de elegância. Ela é a que esteve sempre presente, em toda a cidade que visitei, em qualquer circunstância. Por isso a considero inevitável. Era a mais prática de todas elas, de ações certeiras e personalidade razoável. 

Ela sabe ser modesta quando quer, e assim mesmo transbordar sua beleza. Era a mais magnânima mulher, nos braços dela fui tratado como um membro da realeza. No descanso do seu toque eu senti um grande alívio. Companhia da solidão ou cenário do convívio. 

Me convidou para a sala que era um lugar tão agradável. Foi aquela que me fez acomodar, me pôs no maior dos confortos daquela casa que era seu próprio lar. 

Daí então me estendi na poltrona e ali estava um calor convidativo. Depois me mostrou a sua grandiloquência, a sua vocação eminente e soberana. Ela era o modo mais eficiente de representar a grandeza humana.

Então todo meu entorno era a coisa mais nobre, foi ela quem o criou assim. Fosse com o recurso mais rico ou então o mais pobre, a casa e seus cantos, que encontrei pelo caminho, eram a pura expressão dos encantos desta nobre irmã e seus carinhos.

A moça seguinte era então deslumbrante, a que encontrei, talvez, tardiamente. Tão alheia a mim, mas tão excitante, eu mal notei, mas tanto esteve em mim presente. 

Estava nos gestos que me recordam a memória, estava na ação do que quer que eu fizesse. Ela, a maneira mais sofisticada de se contar uma história, logo apareceu mostrando a sua finesse.

O rosto mudava num vórtice de emoções ostensivas, causando-me um êxtase tão expressiva figura. Surgiu num instante, como a visão de uma diva, usando a meia luz daquela sala escura.

Ela era todo um mundo que surgia na minha frente, toda possibilidade das coisas como poderiam ser se elas emergissem como são na nossa mente, a ficção mais real que alguém poderia conceber, a verdade filtrada do mundo aparente. 

Todo o drama que ela tinha vivido ainda estava ali completando a tragédia. A mais sofrida das irmãs, também ria e encenava suas dores e lágrimas como se fosse uma comédia.

Fiquei absorto ao assistir sua performance, me ganhava a atenção cada hora mais e mais. Devia ser a mais sensível, era o que eu pensava enquanto ela estava ali na minha frente. Era a mais destacada, era, até então, o olhar mais potente.

Logo em seguida, com um andar ritmado, vem a jovial e mais enérgica das mulheres daquela casa. Veio suave quase levitando, como se movesse com auxílio de asas.

Era mesmo como um anjo ao fazer seus balanços suaves. Ela tinha um incrível controle, tal como a delicadeza que têm as aves. Pois voava como se morasse num céu esplêndido de outono, nas nuvens evanescentes, no vai e vem. Essas nuvens se moldam no vento com a mesma fluidez que ela tem.

Esta era o corpo por excelência e colocava seu corpo no limite da possibilidade. Me deixava atônito em ver suas proezas, que fantástica desenvoltura ao saltar com destreza, que sentimento apaixonante em mim ela invade.

Tinha um jeito de menina travessa e um andar ostentoso de mulher fatal. Era como o leito de um rio em correnteza ou como a luz coruscante no brilho de um cristal.

Suas pernas e braços deslocavam o ar, deve ser por isso que ele me faltava naquele momento. Esvoaçava os panos das vestes de um jeito que poderia ser as vezes rápido ou mesmo lento. Foi desta forma que ela me fez entender o significado mais precioso do que é movimento

Grande amor foi a seguinte. O maior de todos, da paixão mais aguda. De linhas finas e modo suave. Era tão passional a penúltima irmã e seu amor também era o mais grave

Era a mais velha daquela família, personalidade forte de um jeito volúvel, eu poderia dizer até mesmo lunática. Governava as outras como uma grande soberana e seu corpo tinha uma perfeição matemática.

Ela tinha um toque tão cativante, uma carícia e um apelo tão fortes às minhas emoções, se divertia em acelerar o ritmo do ar que eu aspirava nos meus pulmões.

Surgiu de canto sem que eu notasse, sua presença não vi, mas eu pude sentir. Pelos panos pousados no chão ao meu lado, percebi que ela deixou seu vestido cair.

Busquei ansioso ver onde ela estava, quis afoito olhar sua nudez, virava a cabeça seguindo o ruído. Eu procurava de um lado e depois do outro, mas só sentia os sussurros bem perto do ouvido.

Ela era também a mais íntima da Inspiração, a causa de um êxtase quase hipnotizante. Naqueles braços eu sentia as batidas do meu coração, que se repetia pulsando de instante em instante.

E a última… Eu me lembro bem.

Por fim esta última me causava um mistério. Permanecia alheia a mim, de canto, num semblante mais sério. Acho que esperava que eu a entendesse, lançava seus olhares, mas não se empenhava. 

Eu sabia dela pelas histórias contadas, irmã inquieta, do tipo aventureira, com um viver inteiramente conturbado. Saiu pelo mundo registrando o que via e trouxe pra cada uma das outras um presente guardado. Um breve relato de alguém ou uma descrição que revivesse a essência de um belo lugar. Algo que servisse de inspiração, que fosse proveitoso pra alguma outra usar.

Foi assim que me despertou a curiosidade, com um vislumbre pequeno do que ela trazia. Quanto andou? Por onde tinha passado?  Eram perguntas que eu me fazia sem saber ao certo se eu queria a resposta. A verdade é que eu queria tudo e queria saber o quanto ela estava disposta.

Eu esperava que algo acontecesse, que alguma coisa mudasse aquele silêncio. Será que era isso que ela pretendia sem que eu percebesse? Eu estava intrigado com aquela situação, fiquei tenso e inseguro até que notei o mais evidente, ela inverteu esta lógica da sedução.

Seu olhar analítico era estonteante, isso sem sequer tentar algum raio fatal. Me olhava serena, de um jeito distante, com ares altivos de quem pouco se importa. Ao mesmo tempo flui a minha imaginação em composições de lembranças que a consciência recorta transformando cada uma em irmã. 

Esses fragmentos que a última me trouxe, me remeteram às outras mulheres daquela morada. Então entraram, naquele olhar, todas elas. O cortejo daí teve fim, no último toque de cada uma, pois se foram então de repente. Era apenas o éter de uma visão, formas sem solidez, presença evanescente.

Sobrou por fim só a última irmã sentada na sala, no mesmo lugar, inerte e ainda com a mesma expressão, fazendo parecer que mesmo calada ainda tinha muito a dizer.

Ela era a amada irmã, que trazia um pouco das outras em si. Mesmo não sendo a mais velha carregou-as todas quando criança, tinha um pouco delas sem que precisasse usar de alguma forma, cor ou estímulo sonoro. Ela era mesmo um grande mistério, esfinge de inúmeros enigmas. “Decifra-me e desta forma eu te devoro”.

Texto publicado na 6ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de junho de 2024. → Ler edição completa

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