O pergaminho do limiar
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
Arale vestira um capuz escuro, cor de carvalho envelhecido.
Olhando para trás, de uma forma enigmática, desejando que a garota que conhecera estivesse bem, estivesse segura, sentia um aperto no peito, desejando tê-la acompanhado até o exato lugar que devia ter ido... “Sibila...” Ela sentia que não esqueceria esse nome tão cedo... “Por favor, esteja bem...”
Ponderava enquanto caminhava.
“Me perdoe, isso é algo que preciso fazer desde que cheguei ao Castelo. Minha máquina de escrever está me guiando ao sangue. Meu destino é sempre sangue. Geralmente o mar, a noite, a neve, a chuva... algo me envolve, e agradeço à natureza deste planeta, pois nele sinto-me em casa, apesar de tão distante. Conhecê-la, querida Sibila, me fizera acreditar mais nas pessoas...”
Arale sentia seus instintos aflorados, uma intuição de que algo que a aguardava seria revelador e doloroso. Ela lidava com o mistério e a dor diariamente, mesmo quando repousa. Seus sonhos são permeados de cânticos sagrados que a envolvem sempre para a batalha — é a identidade que conhece: a morte...
Ela é um espectro do exício, um espírito de solidão na consagração do sangue que busca purificação. Uma extensão dos agentes cósmicos de uma tribo dizimada, uma geração de ceifadores que foram apagados pelo pó do tempo, pelos ossos das palavras. Ela é um eco do ceifador xamã que sente o beijo da terra, o sopro da vida e a oração da transmutação. Nas asas do terror, nas portas da morte, uma escada que só desce...
Arale começa a ouvir sinos badalarem, crianças correndo e chorando, pessoas gritando. De onde viriam? Seriam efeitos torpes de sua mente? Ela enxerga belas luzes coloridas quando fecha os olhos — e todas se derretem, mesclando-se em sangue e ossos.
Quando foi que começara a ouvir vozes? Culpa, lágrimas, dúvida...
Quando foi que começara o questionamento de sua sombra, de sua sanidade? Ela continuava caminhando, tentando manter-se firme.
Talvez Arale tenha enxergado em Sibila um horizonte de vida e esperança, brilho, beleza que perdera em seu coração que sangra; uma ingenuidade pura, uma amizade transparente.
Não fora apenas mais um trabalho de mercenária fria. Não tem sido apenas isso já faz um tempo. Desde o encontro com Laparus e a vitória daquela comemoração sagrada, Arale estava já há muito distante de qualquer vínculo humanizador — até que necessitou lidar com seus demônios internos mais do que com qualquer outro que ela enfrentasse e ceifasse com seu machado voraz e faminto...
Arale corria, arfante, enquanto sua máquina de escrever perpetuava pelos ares da recém-chegada noite partículas de luz e brilho escarlate — como um tipo de lágrima espectral.
A máquina conhecia Arale e sentia quando ela não estava bem...
O capuz esvoaçante balançava ao ritmo do vento frio.
A aurora da ilha gelada tingia o horizonte com um tom incerto, algo entre o cinza e o prateado, como uma cor que se recusa a se definir. Arale sentiu o ar cortante, como facas invisíveis, arranhando sua pele, enquanto avistava chegar a um tipo de porto de madeira. Um humilde transporte surgia em sua linha de visão: o barco se aproximava do cais abandonado, um lugar onde o silêncio era mais forte do que qualquer grito.
Um aparente pântano núrido, com uma humilde lamparina no cajado bestial que mesclava luz e putrefação, cintilava.
O mercante encapuzado, seu rosto oculto pelas sombras de seu capuz, aguardava de pé, como uma estátua desconfortavelmente viva. Ele parecia uma extensão do próprio ermo gélido que os cercava. “Olá, estranha... hehe”, dissera com uma voz cadavérica.
“O preço de um passageiro, jovem caçadora, é sempre uma caçada”, disse ele, a voz um eco distante, como se tivesse vindo de um mundo onde o tempo se arrastava de maneira mais lenta.
Arale observou o homem, sua figura esfumaçada pelo gelo e pelo vento. Seus olhos não conseguiram discernir o que estava embaixo da capa, mas a promessa de uma carona era tentadora. Ela se sentia atraída, como uma mariposa para a chama de um perigo desconhecido. Agraciada e bem-vinda, sempre se sente assim — isso a faz viva, inconsequente, cruelmente perigosa e a melhor no que faz. A oferta era simples: caçar algo em troca da viagem. Algo terrível. Algo que ela não poderia recusar.
O perigo não era morrer, era se perder de si mesma.
Naquele instante, a máquina de ossos sangrou e escreveu um pergaminho com informações valiosas:
“A floresta de gelo, a Thilzarra”, era o nome — o nome daquilo que o barqueiro encapuzado confirmara com um gesto e para o qual sugerira cuidado. Com seus dedos trêmulos, parecia distante. Não era um nome que pudesse ser pronunciado sem certo receio. Era o tipo de floresta que habitava os pesadelos dos viajantes perdidos.
Arale, com sua máquina de escrever pulsando em sua bolsa, sabia que não poderia fugir do destino quando ele lhe escrevia um pergaminho.
A caçada seria sua, e o caminho que tomaria levaria a uma jornada da qual talvez nunca retornasse. O barqueiro indicou o caminho. Estava perto. Caminhara mais alguns metros, avistou árvores imensas e uma entrada obscura — e então mergulhou.
Ao adentrar a floresta, o ar se tornou mais espesso, mais denso, como se a própria natureza estivesse respirando de maneira irregular, quase insustentável.
O musgo esmeralda das árvores pulsava como se vivesse, e os dentes nas suas raízes pareciam sussurrar promessas sombrias e irrefutáveis. O sangue das folhas, grosso e espesso, se espalhava no chão com a consistência de vinho velho, tingindo a terra marrom e dourada com uma aura de decadência.
Arale não conseguiu desviar o olhar.
Ela sabia, intuitivamente, que aquilo não era apenas uma floresta — era um cemitério. A cada árvore que cruzava, uma sensação de vertigem a tomava. Olhou para os troncos, onde, nas cavidades profundas da casca, as figuras pareciam se mover — mas não eram mais humanas. A metamorfose já havia se concretizado: pessoas haviam sido transformadas em cascas vivas, prisioneiras de um ciclo de condenação eterna.
A máquina de escrever, que Arale carregava como uma companheira fiel, começou a emitir sons estranhos.
Cada tecla pressionada parecia liberar uma página, uma verdade. Cada novo pergaminho que emergia, a história da floresta se desdobrava diante dela — como um poema maldito.
Ela leu, pela primeira vez, as palavras escritas:
"Thilzarra. Um cemitério de almas.
A maldição dos elfos, selada nas raízes do mundo.
Aqueles que caminham aqui, não podem mais voltar."
A sensação de engano se solidificou como uma prisão.
Ela não havia sido escolhida para caçar a criatura.
Ela mesma era a caça. A floresta a observava, e agora, sabia que a busca pela criatura da maldição não era apenas um caminho físico. Era uma jornada emocional e psicológica.
Cada passo que ela dava era como uma invasão do seu próprio ser.
Ouviu um sino em forma de coruja cega,
Que chorava hortelã de um céu lilás,
Sentiu nos lábios o amargor da paz
Enquanto a dor do som na pele pega.
Sabores frios sussurram: “Nunca mais”,
No ar um tom de lágrima que rega
O chão febril da mente que carrega
Luz púrpura em filetes viscerais.
As árvores cantavam tons de gelo,
E os troncos sussurravam com a voz
Do sangue doce em cada caramelo.
Arale — um eco que o destino atroz
Mistura em névoas, sons e pesadelo:
Foi tinta a lágrima que a vida pôs.
Haikai Sinestésico
Vinho grita azul,
cheiro de vidro e memória—
a floresta ouve.
Poetrix Críptico
Sinos têm sabor de medo
luz escorre dos ossos —
Arale mastiga estrelas.
As árvores gritavam sua memória,
Num dialeto feito de raízes,
Sangue escorria em letras cicatrizes,
Versando em dor a anti-história da glória.
O musgo a envolvia em cicatriz sonora,
E a mente — lâmina em espiral —
Debatia-se em guerra abissal,
Dançando com a esquizofrenia aurora.
Encontrai a lágrima esmeralda agora,
Sussurra o chão em voz de vinho e limo,
Enquanto a névoa em forma de alma implora.
Mas cada passo é um passo em desatino —
O feitiço é um espelho que devora,
E Arale busca o fim no próprio sino.
A Boca da Névoa, ecoa o sangue,
Onde o silêncio range como escama,
Há uma raiz que respira mentiras.
A névoa é feita de véus e de drama,
Quem entra se apaga em trilhas vazias.
O Espelho de limo a água reflete aquilo que engana:
Um rosto antigo, ou o que não se é.
Não toque, não grite, não diga "me ama",
O musgo devora quem busca por fé.
O Círculo dos dentes-arvores-cães mordem o ar aflito.
Folhas rangem como penas em pranto.
Pisa devagar no chão eremita —
O sangue escuta e pinta o manto.
a clareira de ossos cantantes,
Lá se dança com as vozes do vento,
cada costela entoa um nome esquecido,
Há um tambor feito de firmamento,
Toque-o e revele o que tem sido.
Na ponte de carne e areia,
Um rio de lembranças flui sob os pés.
O chão pulsa.
O medo te nomeia.
Olhos surgem onde pisas, em rés
Caminho. A verdade ali se incendeia o portal
das guelras de luz se os ouvidos ouvirem em cor,
a língua falar em perfume,
então verás o último torpor,
um vulto de esmeralda e lume,
A Árvore-Relicário
no coração da floresta que chora,
Há um tronco que respira teu nome.
Abraça-o. E talvez, nessa hora,
A lágrima verde em tua alma tome.
Canta, Arale, no ventre da espessura,
Lágrima viva da alma da árvore,
Quebra o encanto da carne em clausura,
Sangra esperança no fel da palavra.
Três vezes dize o nome do espelho,
Com os olhos fechados em vinho e fumaça,
Deixa que a dor escorra em conselho,
Enquanto a floresta tua sombra abraça.
Na raiz onde o tempo se curva e enlouquece,
Ali verte a lágrima verde, tão rara —
Quem a encontrar, que nunca se esquece:
A alma retorna, e o feitiço dispara.
Arale está em uma dimensão onde as árvores são sustentadas por raízes suspensas, presas a um tipo de fio sanguíneo gigantesco. O solo é um ocre rubi, umedecido e pastoso. No céu, engrenagens criam correntes de luz, onde imensos sinos dourados dobram.
Ela avista diversas ruínas flutuando, sangrando cores e pesadelos, exalados das almas petrificadas no coração das árvores cheias de dentes predatórios e grotescos.
Arale enxerga, em uma pequena folha, um espelho de cristal — e nele vê Sibila. Sabe que ela lhe daria força e que não desistiria...
Arale fecha os olhos e canaliza o poder em seu machado, arremessando-o contra o coração central daquele espectro fantasmagórico. Um arranha-céu multicolorido se desmancha, virando-se de ponta cabeça sob os pés de Arale. Ela enxerga uma porta — ou seria uma janela? — e a adentra.
Ao mergulhar por esta secreta janela, depara-se com um recôndito familiar: era um cômodo do Castelo Drácula. Como?
Arale prosseguia por um tapete de lâmpadas plasmáticas.
Ela enxergava um quadro na parede com um olho vivo. Este sentinela lhe solicitava que adentrasse, como um tipo de elevador orgânico. Arale mergulha no olho prismático, sendo transportada para o altar do céu — um tipo de torre obscura no Castelo Drácula. Lá, percebe o salão escarlate e uma criatura acorrentada por fios de energia e símbolos de magia, flutuando sobre um tapete de sangue.
A máquina de escrever de Arale sangrara outro pergaminho, chamado: “O Gênese de Sangue...” Seu nome: Var’Ghul.
“Bem-vinda, felina cibernética dos cosmos longínquos. Tu, que és a caçadora dos oceanos de estrelas, o que desejas?”
Arale fica intrigada, pois acreditava que ele seria uma criatura que devesse ser caçada. Porém, seu instinto — e o pergaminho — não sugeriam tal batalha. Arale prossegue.
“Teu sangue ferve. Tua caçada é nobre. Tua purificação, necessária. Lhe sugiro um serviço: se me trouxer três itens, farei uma forja especial em seu machado para lhe auxiliar na caçada. O que achas?”
Arale aceita, sem questionar. Se fosse uma ameaça ou um golpe, já teria ocorrido. Ela aguarda, silenciosa.
“Traga-me um prisma-espelho de sangue de Wendigo, uma engrenagem de criatura orgânica do Limiar e uma lamparina da maçã fantasma. Esses itens estão pelo Limiar, guardados pela filosofia do enigma dos símbolos energéticos. Você saberá. Com eles, conseguirei ativar meu códex umbra e lhe forjar uma arma devastadora, que certamente lhe auxiliará.”
Arale está paralisada, pois a energia do lugar enfraquece os nervos do corpo — como se a asfixiasse. Ela se afasta, retornando à porta, e percebe que estava novamente na floresta, no coração do Limiar. Ela finalmente consegue respirar aliviada, prosseguindo a peregrinação das flores mortas.
A máquina sangra outro pergaminho, que lhe revela a pista que devias seguir:
“Arale... sob a noite lôbrega, absorvem a energia das rachaduras e elas se marcam no mapa, como se tivessem um vínculo com o papel. São lugares, ilhas perdidas, afundadas e erigidas das profundezas. O Oceano é uma entidade.
Encontre Allant Elirrahz,
o Cartógrafo dos Mares Limiares.”
Ela enxerga, naquele gélido inferno de raízes que chamuscam o glacial âmago da melancolia cristalizada pelos ares,
uma chama críptica que oscila e pulsa pelos oceanos.
Arale fica deslumbrada com a beleza relicária.
Pinturas se desmancham, quadros choram, partituras derretem. Milhares e milhares de páginas sussurram e voam pelos ares.
Cristais brotam do solo. Estalagmites choram e estouram.
Pequenas criaturas peludas flutuam e deslizam, sussurrando alguma travessura inocente — como luvas feitas de plumas.
Arale enxerga um tipo de montaria: um corcel com cabeça de engrenagem e olhos de fuligem. Ela domina a criatura e percorre aquela imensidão enevoada. Por muito tempo cavalga, até que os mares se findam no horizonte e Arale avista vários gobelinus trotando, tentando perseguir o corcel maquinário, que destila carvão de sangue enquanto trepida. Ela continua determinada, como uma filosofia absurda que envenena um espírito sadio. Na conexão que realizara com a criatura, ela busca uma saída, uma resposta, uma solução, um sentido...

Arale Fa’yax, de uma realidade cibernética, atravessa o tempo e encontra-se no Castelo Drácula. Em sua busca por vingança e por pergaminhos esquecidos, ela se depara com horrores proféticos através de sua máquina de escrever feita de ossos. Arale registra cada descoberta e cada revelação que a aproxima de sua verdade. Em meio a memórias fragmentadas e mistérios mórbidos, ela enfrenta confrontos épicos, determinada a vingar-se e a libertar-se, embora, talvez, sua condenação seja a única certeza. » Leia todos os capítulos.

Marcos Mancini
Marcos Mancini é um escritor, artista e criador cujo trabalho transcende as fronteiras da literatura convencional, mergulhando nas profundezas da psique humana e explorando as complexidades da condição existencial. Sua obra reflete uma busca incessante por significado, através de uma escrita visceral que combina poesia, filosofia e uma rica variedade de estilos literários... » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 16ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de maio de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
Símil a um olho, o obscuro pingente reluzia. A lótus negra decerto significava meu ainda existente vínculo com…