Sob o Véu da Noite: Velian e o Abismo
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
O vento cortante do Rio de Janeiro soprava com hálito de tempestade, uivando entre as rachaduras dos prédios antigos como se os deuses da noite trovejassem advertências em línguas esquecidas. Em Copacabana, onde o mar se confundia com o céu de chumbo, Velian caminhava como um espectro pelas vielas iluminadas apenas por postes trêmulos. Seu corpo parecia não pertencer àquele tempo. Seus olhos — sombreados por dúvidas e ecos de existências anteriores — buscavam algo que não se nomeava: talvez consolo, talvez uma resposta, talvez apenas um instante de silêncio.
Ao chegar à cobertura de Cassandra, um dos últimos refúgios onde o luxo e a decadência coexistiam como amantes cansados, foi recebido com o cheiro inebriante de rosas escuras e sangue fresco. O perfume era tão antigo quanto as paredes decoradas com tapeçarias negras e espelhos entalhados em molduras de ossos e marfim. A luz vermelha banhava o aposento como se a própria luxúria tivesse se tornado luminária.
Cassandra estava ali — de pé diante da sacada, alta, imponente, cabelos longos e ondulados escorrendo pelos ombros como serpentes de ébano. Os lábios, tingidos por batom e sangue, exibiam o vermelho da fome e do sarcasmo. Sua presença, mesmo silenciosa, falava mais do que muitos discursos mortais. Quando se virou, os olhos brilharam com aquele tom perigoso de quem conhece a verdade, mas prefere rir dela a se curvar.
— Ainda vives com teus dilemas existenciais, Velian? — disse ela, cruzando os braços nus e perfumados. — Sempre essa tua sede insaciável por sentido. É tão… humano.
— Tu sabes que não é simples — respondeu ele, pousando a capa encharcada sobre a cadeira. — A eternidade exige mais que apenas sobreviver. Ela exige… compreender.
Cassandra soltou uma risada baixa, melódica, quase cruel.
— Compreender? Olhe pela janela, querido. Veja essa cidade. É sangue, sexo, vício e ganância. Não muito diferente de nós. A diferença? Eles morrem. Nós… não temos esse luxo.
Ela caminhou lentamente até ele, e suas palavras ressoavam como encantamentos cortantes:
— Queres saber o sentido da vida? É poder. É gozar do que o tempo não pode apagar. É dominar. Se não dominas, és dominado. E tu, Velian, estás sempre vacilante entre querer destruir e querer entender. Isso te enfraquece.
Velian cerrou os punhos. A tensão entre eles era elétrica. Não havia medo, mas respeito — o tipo perigoso, como o que se sente diante de uma fera indomável que por capricho ainda não devorou.
— Cassandra… o Castelo Drácula… eu estive lá. Em suas múltiplas dimensões. Há algo ali… ancestral, devorador. É como se o próprio vazio tivesse se assentado naquele trono de trevas.
Os olhos de Cassandra brilharam, desta vez com algo próximo da admiração.
— Ah, então enfim provaste do ventre de Soramithia. A ponte entre o fascínio e o terror… Eu conheço suas entranhas, Velian. Sei onde a escuridão deixa de ser símbolo e se torna carne. Vem comigo. Levar-te-ei a uma das câmaras esquecidas do castelo, onde a treva é mais densa que o tempo. Talvez ali encontres o que tanto procuras.
No Coração do Abismo: ou quando até os monstros sentem falta de si mesmos
O portal se abriu como uma ferida antiga na pele do mundo.
O ar da dimensão de Soramithia tinha gosto de ferro e orvalho podre. Era como respirar através do pulmão de um cadáver encantado. Velian entrou primeiro, não por coragem, mas porque preferia cair antes de hesitar.
— Bem-vindo ao útero da tua alma — disse Cassandra, com aquele sorriso que misturava erotismo e ameaça. A capa dela ondulava como fumaça viva. Seus pés não pareciam tocar o solo. Talvez nunca tivessem tocado.
O castelo se erguia na paisagem de uma realidade que já não reconhecia o tempo. Era feito de ossos negros, torres retorcidas e espelhos partidos, onde o reflexo recusava obediência. A cada passo, Velian sentia algo pressionar seu peito — como se o próprio lugar estivesse curioso sobre quem ele era.
— Soramithia… — ele sussurrou, testando a palavra na língua. — O nome soa como um gemido de flor morrendo. Poesia para os mortos.
— Ou um feitiço para os vivos que ainda não sabem que morreram — retrucou Cassandra, com a voz baixa, quase carinhosa.
Ela observava Velian com o cuidado de quem segura uma taça de vinho muito caro: sabendo que pode se partir, mas desejando sentir seu gosto até o fim.
Velian riu, um riso breve e sem humor.
— Este lugar fede a memória. A nossa, a deles, a de todos os que tentaram se salvar mergulhando. Sabe, Cassandra, às vezes penso que toda eternidade é só um eco mal interpretado.
Cassandra não respondeu. Seus olhos, negros como tinta fresca, pousaram sobre ele com uma intensidade silenciosa. Ela sabia que Velian falava mais por defesa do que por clareza. Ele cuspia sabedoria como uma lâmina afiada, mas por dentro ainda carregava o menino que sangrava pelas dúvidas que ninguém nunca respondeu.
Ao atravessarem a antessala do Trono das Raízes — uma estrutura viva de cipós petrificados que sussurravam em idiomas mortos —, Cassandra se voltou e o encarou.
— Aqui tu não és senhor de nada, Velian. Nem do teu próprio sangue. Soramithia exige entrega. Aqui, até tua ironia será comida pelas sombras. E só restará o que tu sempre foste.
Velian fechou os olhos por um instante. Queria responder com sarcasmo. Algo como: “Então me diga, minha adorável sacerdotisa da morte, o que eu sou, além de um vampiro entediado com uma libido filosófica?”
Mas não disse. Porque ele sentia. O castelo pulsava como um coração sombrio e antigo, e cada batida parecia esvaziá-lo um pouco mais.
Ali, ele se lembrava.
Da cela. Do frio.
Da fome.
Do som do próprio corpo sendo esquecido por si mesmo.
As memórias voltavam como fantasmas carinhosos e cruéis.
— Lembro do som da água escorrendo… — murmurou. — Tinha cheiro de ferrugem e abandono. Cada gota parecia zombar da minha sede. E sabe o mais curioso, Cassandra? Eu ria. Ria como quem sabe que o pior já aconteceu, e o resto é só detalhe.
Ela se aproximou lentamente. Tocou-lhe o rosto.
Mas não com piedade — com uma espécie de reverência sombria.
— Tu sobreviveste à prisão dos ancestrais sem enlouquecer. Pelo menos, não completamente. E ainda és belo. Ainda desejas. Ainda dúvidas. Isso… é o que mais me assusta em ti.
Velian ergueu uma sobrancelha, divertido.
— Está admitindo que sente medo de mim?
— Não. — Ela hesitou. — Estou admitindo que admiro tua fome. Essa sede por algo que nem sabes nomear. Como um cavaleiro medieval, perdido entre cruzadas sem cruz, buscando o Santo Graal de uma identidade impossível.
Silêncio.
Profundo.
Sagrado.
Eles se sentaram sobre o chão pulsante da câmara central. Abaixo deles, diziam, estava a raiz do mundo. A primeira gota de sangue. O primeiro erro.
Cassandra falou, olhando o vazio:
— O que tu és, Velian, não pode ser definido. Teu gênero dança entre o toque e o abismo. Tua fome mistura gozo e medo. Teu corpo recusa destino. Por isso tu sobrevives. E por isso me perturbas.
Velian sorriu, cansado. A voz saiu baixa:
— Eu sou a pergunta que nunca quer a resposta. Talvez isso seja o pior tipo de monstro. Ou o mais sincero.
Epílogo: Os Lábios da Noite
Mais tarde, deitados sob os véus de névoa da câmara íntima de Cassandra, os dois corpos se enroscavam como raízes em busca de luz. As paredes pulsavam um brilho orgânico, como se a própria estrutura do castelo respirasse junto com eles. O chão sob a pele lembrava carne morna, viva, e os sussurros das almas seladas nos pilares continuavam, mas agora pareciam cânticos distantes — respeitando aquele instante como se fosse um ritual.
Cassandra o observava como quem contempla um eclipse: com medo e êxtase. Seus dedos traçavam linhas invisíveis no peito de Velian, como se lesse nele um livro de sombras escritas em linguagem esquecida. Ele, por sua vez, fingia sono, mas sentia tudo: o cheiro de incenso e sangue ressecado; a textura da pele dela, queimada pelo tempo e ainda assim macia; o peso do mundo antigo repousando sobre o silêncio.
Ela se aproximou, colando os lábios no ombro dele, e murmurou com um fiapo de voz:
— Amanhã te odeio de novo.
O tom era quase maternal, mas carregado de ironia triste.
Um riso cruzou o canto da boca de Velian.
— Só amanhã? Que generosidade repentina… — provocou, abrindo os olhos, revelando um brilho âmbar que os séculos não apagaram.
— Esta noite eu te pertenço um pouco — completou ela, como se ignorasse o sarcasmo, mas sem deixar de notar o calor que aquilo gerava entre os dois.
Velian a fitou por um momento longo demais. A penumbra tremulava com as brasas de velas verdes e negras, e por um instante, ela viu nele não o vampiro desafiador, mas o homem anterior a todas as máscaras. A criatura ainda em busca. A alma inquieta que jamais aceitou o conforto da resposta fácil.
— Um pouco é tudo o que se pode ter de alguém como eu — respondeu ele, sério agora, sem teatro. Havia cansaço no olhar. Mas também havia desejo. Desejo de existir. De ser tocado para além da carne.
Fizeram amor como se cada toque fosse uma última chance. Como se seus corpos guardassem segredos que só o atrito revelaria. A língua dele desenhou runas em sua barriga. As unhas dela se cravaram em suas costas como tatuagens rituais. A cada gemido, a estrutura de Soramithia tremia levemente, como se o castelo reconhecesse que dois de seus filhos mais antigos estavam — por um breve instante — vivos de verdade.
Ela gemeu seu nome como quem invoca um deus. Ele sussurrou o dela como quem confessa um pecado.
E então vieram as mordidas. Lentamente. No pulso. No pescoço. Na virilha. Ambos sangraram. Ambos beberam. Os fluidos se misturaram. A eternidade estremeceu.
Quando o silêncio caiu de novo, espesso como névoa de pântano, Cassandra repousou a cabeça sobre o peito dele. Tocou-lhe o esterno, sentindo algo bater lá dentro. Um resto de batida. Uma ilusão? Talvez. Mas não menos real.
— Ainda tens alma, Velian… — ela disse, com a voz embargada. — E isso é o que mais me desespera. Porque tua alma é selvagem. Tu podes destruí-la a qualquer instante. Ou usá-la pra nos destruir a todos.
Ele passou os dedos pelo cabelo dela, enredando os fios longos e escuros entre os próprios. Não respondeu de imediato. Apenas olhou o teto da câmara, onde formas estranhas se moviam, como se fossem lembranças encarnadas em sombra líquida.
Depois, falou com a voz mais grave, baixa e firme:
— Eu sou o que resta quando a fé morre e o desejo sobrevive. Sou o cavaleiro que nunca encontra a relíquia. Que se apaixona pelo caminho, mas odeia cada estrada. Eu sou a fome que pensa.
Ela ficou em silêncio. Não por falta de palavras — Cassandra nunca as perdeu —, mas porque ali, deitada com ele, sabia: aquele era o momento mais íntimo que já viveram. E talvez o mais frágil. E talvez o último.
Mesmo partida, ela o admirava.
Admirava o fato de ele duvidar. De ele sangrar. De ele se recusar a tornar-se máquina, lenda ou servidão. Havia nele uma nobreza antiga, torta, quase extinta — como um livro que sobreviveu a todas as fogueiras.
“Mesmo partido," pensou, "tu és mais perigoso que todos os reis que beijei. Porque tu duvidas. E um monstro que duvida… é capaz de fazer o impossível.”
Ela fechou os olhos.
E por um instante, talvez um único,
o castelo adormeceu com eles.

Velian, sob a maldição ou bênção da imortalidade vampírica, percorre as ruas de Fortaleza, mergulhado em reflexões sobre sua existência eterna. Em meio a angústias e silêncios, ele confronta os dilemas do tempo, da vida e da morte, questionando o sentido e os limites da razão. Ouvindo um chamado visceral do Castelo Drácula, Velian mergulha em divagações introspectivas, onde a busca por respostas é ainda mais complexa e a solidão, ao lado da melancolia, levam-no a vivências atormentadoras. » Leia todos os capítulos.

Weslley Cunha
Weslley Cunha é um escritor cuja obra mergulha nas profundezas da existência humana e nos labirintos da mente, explorando temas que dialogam com a filosofia existencial e fenomenológica e psicanálise. Graduado em Letras, especialista em Literatura e mestre em Ciências da Linguagem, ele combina seu conhecimento acadêmico com uma sensibilidade única para a narrativa. Suas paixões literárias incluem a investigação das fronteiras entre o real e o imaginário... » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 16ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de maio de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
Símil a um olho, o obscuro pingente reluzia. A lótus negra decerto significava meu ainda existente vínculo com…