6 - No submerso da caverna, mergulhamos nossos corações
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
Diário de Sibila von Lichenstein
12 de outubro de 1870
Após o incidente com Eleanor, nada mais parece se ajustar às leis da razão dentro dessas paredes. Não tenho certeza se a presença dela tomou forma na biblioteca, ou talvez no meu sonho. Não estou enlouquecendo. Sei que este lugar — vasto, estranho, nunca antes conhecido por mim — é real. Ao vaguear por esse imenso templo da solidão, que é o castelo, eu cruzo com outros seres. Ouso supor que não apenas humanos habitam este lugar, mas também a mais variada gama de criaturas que desafiam qualquer classificação comum.
Acho que as circunstâncias do passado me moldaram e influenciaram de tal modo que não consigo mais me entregar... Não sou como uma folha à mercê do vento, fadada a se deixar levar. Sou mais como uma rocha que resiste às repetitivas investidas do mar, mesmo que revolto. Passo horas sozinha, deixando meus pensamentos livres para refletir sobre a minha situação neste lugar. Desejo voltar ao casarão de Viktor, ao mundo que eu conhecia. Eu não tinha um plano definido para depois dele... Mas tenho certeza de que não era isso que eu desejava ardentemente...
Sinto-me extenuada, passo os dias e noites em constante estado de alerta. Tenho medo de ser atacada novamente. Os hematomas que Eleanor provocou em meu pescoço deixaram marcas indeléveis — não só em minha pele, mas também em minha alma. Qualquer criatura pode ser hostil. Minha antiga amiga, pode voltar, tomada pelo desejo de vingança e pelo ódio.
Mas a solidão, antes tão comum e adorada por mim, tem se tornado, além da culpa que carrego, uma das piores sensações. Sempre que me dou conta que estou sozinha e desamparada, revivo as memórias das semanas após a morte de meu pai. As desperdicei enclausurada em nosso casebre, que agora me parece uma miniatura precursora desta prisão de pedra e ecos, pois estou sem nenhum contato humano.
Tenho a impressão de já ter cruzado com todas as espécies de seres possíveis... e ouso supor que até mesmo vampiros habitam este castelo. Certa noite, um hóspede me abordou com um sorriso cortês e se apresentou como sommelier. Ofereceu-me uma taça de sua adega pessoal, durante o jantar do castelo. Aceitei, por mera cortesia. O líquido era de um vermelho profundo, quase negro, e exalava um perfume metálico, adocicado e denso. Bebi um gole. Achei que o sabor, mesmo misturado à substância etílica, era inconfundível... Sangue. Puro, espesso, claro como um segredo antigo. Temendo, respondi que estava bom, mas estou quase certa de que, quando ele sorriu, vi duas presas no lugar dos caninos em sua arcada dentária. Logo depois, despedi-me educadamente e, com passos rápidos, dirigi-me ao meu claustro. Mas, ao bater a porta atrás de mim, lembrei-me do pesadelo com Eleanor e do que Meia-noite me contou, e tive medo de morrer dormindo.
Completamente tomada por esses pensamentos, que se multiplicavam como erva daninha, decidi interpelar a senhora que frequentava a biblioteca, quase sempre nos mesmos horários que eu... Eu almejava estabelecer algum tipo de relação, nem que fosse apenas superficial. Eu precisava... Ela não era muito de falar, ficava encurvada sobre pesados tomos de botânica, fazendo anotações e rabiscos.
Não parecia estar interessada em conversar, porém era minha melhor aposta. Tinha aparência humana, era mulher e velha. Por causa do que Viktor me fez, eu confiava mais em mulheres, apesar de me achar um verdadeiro monstro. Ademais, além dos hematomas, eu sentia uma ardência profunda neles, além de estar há dias sem dormir. Quem sabe, essa senhora, tão reclusa quanto eu, me desse a dica de alguma erva que me ajudasse.
— Olá... — cumprimentei, com a voz quase inaudível.
— A senhorita falou comigo? Hum... O que você quer, garota?
— Não pude deixar de observar que a senhora sempre está estudando os volumes de botânica.
— Sim... E o que a devoradora de livros de anatomia tem a ver com isso?
— Sinto muito, me perdoe, me perdoe, por favor. Não quis incomodar... Mas, se levantar a cabeça e olhar para o meu pescoço, verá que não estou bem. — Minha voz saiu esganiçada, num misto de desespero e vergonha.
— Se é para a senhorita me deixar em paz logo, vou lhe dizer o que fazer: procure a erva do descanso. Para isso, terá que caminhar até Séttimor. Lá, essa erva sempre cresce nos arredores da cidade.
— Erva do descanso...? Mas que aparência ela tem? Perdoe-me... Eu não conheço.
Ela começou a folhear o tomo que estava em suas mãos. Parou e mordeu os lábios, pensativa. Subitamente, rasgou uma página e a estendeu para mim:
— Tome, isto deve servir... E agora, não me perturbe mais!
De posse da folha, agora sentada à beira da cama, uma das mãos segurava a folha amarelada, a outra tocava o meu pescoço, que ardia e latejava de forma incessante.
Na folha, o desenho de uma erva com folhas divididas em sete pontas alongadas. O artista havia ilustrado o centro dessas folhas com um verde vivo e, num degradê, elas passavam a ser negras em suas pontas. Os caules também eram pretos, com raízes profundas que se comunicavam de ramo em ramo. Abaixo da ilustração, podia-se ler: Ervatum Nocte Requies, entre parênteses e abaixo, erva do descanso.
No verso da folha havia ainda uma descrição da aparência física da erva, acrescentando que ela crescia em grupos de sete e era encontrada nos rochedos ao redor da vila de Séttimor. Seu uso era em unguentos e cataplasmas para aliviar hematomas e dores espirituais.
Havia outro desenho no verso, um pequeno mapa desenhado delicadamente a mão, abaixo dessas instruções. O desenho não era parte da impressão original, alguém o fizera posteriormente à tiragem inicial. Com linhas finas e decididas, o mapa mostrava o Castelo Drácula, minha morada atual, e também mostrava a Floresta dos Pinheiros Tristes ao noroeste, uma linha tracejada atravessava essa floresta, cuja fama no castelo, dizia que era assombrada por almas penadas. Ouvira dizer que ali, até mesmo as árvores eram mortas.
O tracejado atravessa a floresta, depois acompanhava uma caverna, para então desembocar aos pés do que interpretei ser uma península. Na ponta dela, Séttimor estava desenhada. De um lado, rochedos a rodeavam; de outro, o mar que deveria colidir com os rochedos. Na área dos rochedos o autor dos rabiscos desenhara uma flecha e escreveu: “Região onde a erva do descanso cresce.” Entre parênteses: “Recomendável a colheita em estações secas.”, mas não dizia o porquê.
Não conhecia com propriedade o clima da região, mas certamente não era uma estação seca. Lá fora, uma fina camada de neblina espessa cobria os jardins de lavanda, que agora estavam secos, podres e molhados. Não poderia partir solo, necessitava encontrar uma maneira de seguir até o recanto da erva de forma mais segura, ou seja, acompanhada.
Sabia de rumores de que os recônditos do Castelo Drácula abrigavam uma exímia felina caçadora que fazia serviços de mercenária, e havia a possibilidade de tentar um acordo ou um contrato, dependendo da quantia que ela cobrasse para realizar tal feito.
Busquei apressada pelos corredores e até pelos jardins uma forma de contatar a felina, mas em vão, até que o espectro serviçal do Castelo me informou que eu poderia encontrar com ela em uma taverna ali próxima.
Decidi arriscar e conferir o ambiente, era extremamente necessário, caminhei até o estabelecimento e lá me deparei com uma ampla gama de marginais, bandidos, aventureiros, alquimistas, ferreiros, anões, várias criaturas transitavam o ambiente. Senti que a energia era pesada, olhares de ameaça estavam por toda parte, cheguei a tocar a adaga que eu tinha escondida em minhas vestes. Busquei saber dela e todos diziam que a pouco ela estava no balcão bebendo uma espécie de licor verde. Alguns se sentiam ameaçados, outros preferiam não falar nada, mas infelizmente ela não estava mais presente.
Saí apressada do lugar, ojeriza era a palavra, nem na Prússia eu ousara pisar em um lugar de tal estirpe, o Castelo eu até tolerava, pois apesar de só… ah, o que estou pensando? Nem no Castelo eu me sinto segura, olha o meu pescoço. Mirei meu reflexo numa poça do chão, os hematomas pareciam ter se espalhado pelo colo e queimavam de dentro para fora, eu precisava de ajuda!
Um rapaz com um capuz cor de carvalho se aproximou, achei suspeito. Foi muito rápido, então me virei rapidamente, mirando uma adaga que encontrei no castelo em seu peito.
— Acalma-te! — disse ele em pânico, senti em seu olhar e o tom de sua voz que ele estava trêmulo e nervoso com minha presença.
— Procura a criatura que tememos, não é mesmo? Aquela felina com um braço estranho assustador.
— Sim, preciso de um guia para chegar nos rochedos próximos da vila de Séttimor, ouvi dizer que ela faz pequenos trabalhos em troca de algumas moedas.
— Conheço uma estrada, eu sou cocheiro, se confiar em meu trabalho e por algumas moedas de ouro, posso lhe guiar para uma estrada próxima à caverna, aquela, onde os habitantes daqui a viram rondando.
— Eu agradeço pelo serviço, vou aceitar.
Paguei três moedas de ouro, aceitando a carona em sua humilde carruagem, guiada por dois corcéis escuros. Me aconcheguei na traseira do veículo.
— Diga-me, senhorita... Por que deseja ir a um lugar tão lúgubre?
— É um assunto pessoal, perdão, mas é de extrema importância que eu encontre um guia...
— Entendo, boa sorte, espero que aquela criatura lhe ajude, ela não parece ser muito sociável...
O comentário do cocheiro me deixou apreensiva. Conforme a viagem avançava, o frio, a chuva e um pequeno cansaço me abateram. A carruagem atravessava a Floresta dos Pinheiros Tristes. Abri as cortinas para poder ver por onde ele guiava, o clima estava tomado por uma neblina densa, eu sentia a umidade do lugar penetrar pelas minhas narinas, senti cheiro de mofo, ele vinha de camadas e mais camada de folhas mortas e apodrecidas no solo da floresta. Um temor antigo, prematuro, açoitava meu peito.
De repente, os cavalos rincharam assustados e a carruagem estacou. Sobressaltada, escutei o trotar espectral de inúmeros alazões fantasma que cortavam a estrada diante de nós. Pela janela, vi suas pelagens douradas manifestarem-se como um milagre do pós-vida, pareciam relâmpagos na noite, era lindo.
Estava deslumbrada e assustada. Tudo era novo demais, lúcido demais, intenso demais. Os acontecimentos que me assombravam surgiam como espectros famintos, devorando minha energia e apagando minha alegria. Meus fantasmas interiores, meus dilemas, dores e pesadelos dançavam em círculos ao meu redor. Havia algo de doentio nisso... e ainda assim, algo estranhamente libertador. Era difícil de explicar.
Fechei os olhos por alguns instantes e cochilei, aproveitando que a carruagem não estava balançando demais. Então a vi pela primeira vez, através dos meus sonhos. Desde que eu chegara misteriosamente a esse lugar, meus sonhos nunca mais foram os mesmos, havia algo de fantasmagórico, perigoso e real neles. Ainda não sabia se eram vaticínios ou meras manifestações do meu subconsciente.
Ela era muito bela, não entendi por que os habitantes da região a temiam. Não compreendia por que ela inspirava tanto receio, não pelo menos, até a ver com uma máquina de escrever de ossos, um pergaminho pingando sangue e um machado com um coração fincado em sua lâmina. Ela miava, e a máquina espirrava sangue e poeira. Então um pergaminho foi pulverizado no ar e um prisma, com um líquido esmeralda, foi canalizado e guardado em sua bolsa marrom de couro. Mas o que mais me deixou fascinada era a junção de metal e carne de que era feito um de seus braços, como estudante de medicina, eu nunca vira algo tão magnético e encantador quanto aquilo. Eu não almejara riquezas durante a vida, mas estudar aquele braço… Então ela me encarou, com uns olhos de tigre que rasgavam minha alma, e sorriu simplesmente.
Acordei com um trote ríspido da carruagem e o eco da voz do cocheiro que dizia:
— Chegamos, senhorita! — Desci apressada da carruagem, ansiosa para encontrar Arale. Começo a desconfiar de meus sonhos, até mesmo a acreditar que há alguma relação sombria entre eles, a realidade e o meu futuro incerto neste lugar além do tempo e da compreensão, onde me encontro. Logo, espero que a aparência dela seja a mesma que foi pintada em meu sonho.
— Perdão, qual seu nome? — disse o cocheiro solícito.
— Perdoe-me, mas prefiro manter o sigilo, gratidão pela viagem e seus serviços…
— Disponha e tome cuidado...
— É o que tento...
Avancei em direção à caverna, assemelhava-se a uma boca infernal, cheia de dentes de pedra, logo na entrada, não era nada convidativa. Aprofundei o caminho na intuição e fé de que ela estaria aqui, que esse seria nosso encontro inescapável, já estaria escrito em nossas sortes que iríamos no conhecer e enfim eu conseguiria chegar até os arredores da vila Séttimor e conseguir a erva almejada.
A caverna era completamente feita de ametistas, mas estava estreita, claustrofóbica e seu ar estava um pouco rarefeito. Continuei aprofundando-me cada vez mais em suas entranhas, e mais precária ficava minha visão e meus sentidos, apesar da luminosidade das ametistas.
Então senti uma picada, olhei minha perna e era uma agulha rubra, olhei ao redor e vi uma criatura baixa, achei que reconheceria, mas minha memória falhou. Minha visão estava ficando embaçada, mas antes que perdesse todos os sentidos e apagasse, pude ver uma adaga voando lentamente pelos ares, atingindo a testa da criatura, fincou-se bem no meio de seu nariz e ela caiu para trás morta e sangrando. Assim que me revirei, vi a alguns metros de distância uma felina com cabelos prateados e com um olhar furioso, então apaguei.
Não sei quanto tempo passou e quanto tempo fiquei apagada; mas, quando acordei, abri os olhos lentamente e pude ver que eu estava confortavelmente acomodada em uma espécie de espuma, deitada próxima a uma fogueira e aquela assustadora felina afiava seu machado.
— Acordou, sente-se bem? Possui alguma dor? — ela me questionou com uma voz doce e sensual, porém firme e durona.
— Muito obrigada, sinto-me bem, dentro do possível, mas estou nesta jornada para encontrar a erva que necessito para minha cura completa...
— Eu sei… — ela retrucou.
— Como sabe? Perdão a pergunta, mas por acaso você seria Arale?
— Sim, minha cara. Arale Fay´ax, aos seus serviços… Eu sabia que viria, senhorita Sibila.
— Como sabe? E como conhece meu nome?
— Minha máquina de escrever de ossos é um cósmico instrumento profético. Ela escreveu um pergaminho, que me revelou sobre sua jornada, sua aparência, seu nome… E ela ressoou, e eu sabia que viria pra cá… Quando senti seu cheiro, também senti o odor da criatura que te envenenou com uma zarabatana de pequenas agulhas feitas de rubi vermelho venenoso.
— Deveras prodigioso, nossa, muito obrigada, salvou minha vida! — respondi encantada com tudo o que vinha dela, eu não tinha conhecimento sobre nada daquilo, pergaminhos… caverna de ametista e criaturas perigosas com zarabatanas…
— Imagina, precisa ser mais cautelosa com monstros.
— Ironia demais você dizer isso, cara Arale Fay´ax.
Arale não entendeu por que eu disse que era ironia, e respondeu:
— Apenas Arale, por favor. Alguns me chamam de felina fantasma, mas eu não sei por que criei esta fama, apenas tento limpar este planeta de ameaças...
— Que criatura era aquela?
— Um simples Bokogobelinum, uma criatura que parece uma mescla de duende com pequeno suíno.
— Nossa… De onde eu vim, a Prússia, não há criaturas como essa.
— Eu estou caçando uma muito pior, uma ameaça muito mais nefasta, apesar de ele ser um mero Láparo, pelo que ouvi falar, e também preciso encontrar uma relíquia chamada Ovo Cósmico.
— Infelizmente não posso ajudar, mas preciso que me leve para a vila Sétimmor.
— Posso fazer isso… Mas terá de ser corajosa.
— Por quanto? — Eu achava que era corajosa o bastante.
— Façamos a viagem e depois decidimos, mas o que acha de, por enquanto, fecharmos negócio em 77 moedas de ouro Séttimoriano?
— Ok, eu aceito. — Eu não tinha outra opção, não sabia quanto aquilo valia realmente, mas aceitei.
— Vamos descansar mais um pouco e partimos ao amanhecer.
— Obrigada, Arale, o que está fazendo?
— Cozinhando um pequeno salmão que pesquei antes de vir para cá. Aqui, coma e ficará melhor... Sibila, certo?
— Sim, esse é o meu nome mesmo. Muito obrigada! O que você faz realmente?
— Eu caço demônios que ameaçam essa e outras dimensões, perdi minha família devido a um ataque de cyber-dracontes. Minha família e toda minha tribo era muito devota à espiritualidade de nossa deusa-mãe Ísis, e vivíamos em pirâmides de cristais de néon quando eles chegaram e escravizaram meu povo.
Eu não estava no momento, estava em um exílio espiritual com meu mestre xamã, ele fizera uma projeção astral e acessara a nave deles, a comandante mãe era uma reptiliana anciã, então ela ordenou o ataque e ele foi morto no astral, porque sua projeção foi detectada.
Quando retornei à minha tribo, todos estavam decapitados, alguns foram cremados, outros esfaqueados… Minha família deixara escondida nas matas, em um prisma sagrado, minha máquina de escrever de ossos, nosso legado e meu machado. Quando cheguei para obter minha máquina e meu machado, sofri uma emboscada pela líder, ela me nocauteou e então arrancou meu braço com sua garra mortal, desmaiei. A minha máquina, nesse instante, abriu um portal para onde eu estava e, em seus últimos momentos de vida, meu mestre fizera uma magia xamânica e fundiu tecnologia e magia em meu braço, deixando-o biônico. Então a máquina de escrever conjurou outro portal e percebi que eu estava no jardim do Castelo Drácula, e imagino que ele ou aquela que está sempre com ele possa ter me conjurado... eu não sei, mas isso me deu uma razão para viver, de alguma forma...
— Nossa... eu não entendi quase nada, mas compreendi sua dor...
Arale riu e então nos alimentamos e nos preparamos para dormir.
— Vamos descansar e seguir viagem em breve, te levarei ao teu destino.
— Muito obrigada, Felina Fantasma! — Arale miou em resposta.
Ao acordar, senti minha manga direita molhada, num salto acordei e imediatamente comecei a cutucar a felina que me acompanhava. Havia água dentro da caverna, e ela subia rapidamente.
Arale despertou calmamente, quando viu que a água subia para dentro da caverna, foi até a bolsa dela e retirou duas bolas de vidro transparentes, encaixou a cabeça dentro de uma delas, a qual se acoplou magicamente ao seu pescoço. Me estendeu outra e vendo minha hesitação, retirou novamente o globo de vidro da cabeça e disse:
— Vista a sua também, não precisa ter medo, é necessário para podermos mergulhar e sair do outro lado da caverna. Vista, rápido, não vê que a água está subindo cada vez mais rápido? Vamos! Depois imite os meus movimentos e siga a minha cauda para não se perder na escuridão. Cavernas submersas são muito perigosas, mas a máquina de escrever me mostrou o seu mapa, eu sei o caminho.
Então vestiu o dela novamente, colocou a própria mochila nas costas e me ajudou a colocar o meu. Eu não sabia que tipo de tecnologia era aquela, mas eu tinha de confiar nela, eu não tinha outra escolha, então deixei que ela colocasse o globo na minha cabeça. Não havia nada que permitisse a troca de substâncias lá fora, mas eu pude observar que de alguma forma mágica, o ar dentro do globo era renovado. O ardor em meu pescoço e em meu colo se intensificaram ao entrar em contato com ele, era pesado.
Arale, com o Machado na mão, começou a caminhar em direção à água que subia, eu fiquei junto a ela, a luz da fogueira já tinha se apagado há tempos, e a única coisa que eu conseguia ver com clareza era o rabo felino de Arale, ele brilhava com intensidade. Conforme ela mexia a cauda e os cabelos, diferentes partes da caverna e da água iluminavam-se.
Depois de poucos passos, mergulhou numa depressão grande e profunda dentro da caverna. Eu nunca tinha mergulhado em toda a minha vida, nem imaginava que isso seria possível, mas a segui, eu não queria morrer sozinha em uma caverna distante.
Ao mergulhar de olhos fechados, senti as gélidas águas penetrarem as roupas, meus poros, minha psique. Um temeroso arrepio álgido percorreu do alto a baixo das minhas costas. Isso tudo em questão de segundos, ao abrir os olhos, não vi muita coisa e me desesperei, tudo o que via era uma luz pequena mais ao fundo, muita areia do chão da caverna revolta se espalhando pela água à minha frente, dificultando minha decisão de onde ir.
Segui meu instinto e fui mergulhando mais profundamente, à medida que eu mergulhava, a luz ao longe aumentava de tamanho, mais algumas braçadas e mexidas de pernas, pude distinguir novamente os cabelos e o rabo felino de Arale em meio à escuridão total. Só assim, as batidas do meu coração se acalmaram. Ousei olhar ao redor, temendo perdê-la de vista novamente, mas o quadro que se pintava ao meu redor era tão incrível, que era fácil distrair-se. O gelo das águas parecia perfurar a minha carne, como mil agulhas afiadas e finas.
Eu ouvia somente o barulho da água sendo movimentada por nossos corpos em meio ao breu profundo, era excitante e relaxante ao mesmo tempo. Sentia-me animada em conhecer aquele ambiente e temerosa também. Olhei para as paredes iluminadas por Arale, continuavam sendo cobertas por ametistas, eu consigo perceber um animal ou outro escondido entre as frestas. Ao mergulhar mais profundamente, outra pedra preciosa começou a tomar o lugar das belas ametistas, eu sei que parece insano, mas havia muitas estalagmites e estalactites vermelhas, pareciam facas de vidro transparentes e afiadas. Inferi que eram rubis, e que aquele gnomo porco que me atacou as tinha colhido aqui para confeccionar a arma que usou para me atacar.
Mas isso não importava, eu tinha que focar em segui-la, chegando mais perto, senti como se estivesse entrando dentro da boca de um ser antigo e ancestral. As estacas rubras descendo do teto e vindas do chão se estreitaram em certo ponto, permitindo apenas a apertada passagem de Arale e a minha, estamos adentrando a boca desse ser de dentes afiados. Temi nunca mais conseguir fazer o caminho de volta ao ser engolida por ele.
Ao atravessar pela estreita passagem que aqueles espinhos formavam, raspei as costas em um deles e minha visão turvou-se, devido ao meu próprio sangue que tomou a água ao redor. Agora, além do pescoço e colo sempre a arder, minhas costas ardiam como nunca. Um pavor inominável e incontrolável tomou conta de mim. Agitei meus braços de forma desconexa, tentando afastar o sangue para poder localizar novamente Arale: minha única companhia e esperança naquele vazio molhado e profundo.
Ela, percebendo que eu sangrava, deslizou lentamente e arranjou uma forma de pegar minha mão e me guiar de uma forma firme e mais segura, sempre cuidando para que eu não me machucasse novamente.
Seu olhar marcante brilhava como amarelo-ouro luminescente, a forma que nadava era artística. Fiquei maravilhada, apesar da dor, com os movimentos rápidos e esguios que ela fazia, mesmo debaixo d’água turva, ela brilhava intensamente! Seus movimentos felinos e rápidos, pareciam um ballet aquático iridescente.
Atravessei com mais calma os corais. Vi vaga-lumes d´água e criaturas marinhas semelhantes a águas-vivas bioluminescentes, acompanhadas de peixes-morcegos, era horripilante e fascinante ao mesmo tempo, de onde surgiram essas criaturas inexistentes até então? Será que espreitaram pelos cantos escondidos da caverna e saíram apenas para dar o ar da sua graça e maravilhar as minhas retinas cansadas?
A pressão se intensifica, à medida que mergulhamos mais e mais nas entranhas submersas da caverna. Eu a sinto esmagando meus ossos e músculos, um aviso urgente para os meus pulmões, que apesar da redoma de vidro, pareciam se esforçar triplamente. Nadamos juntos mais alguns metros à frente e pressenti que estávamos alcançando o trecho final.
Acredito que ela tentou me dizer algo embaixo d´água, “abaixe-se” talvez, e então me guiou, abaixando a minha cabeça carinhosamente, para mergulharmos por debaixo de pequenos estalactites que cerravam a passagem. Ela precisou quebrar algumas pequenas pedras com o machado, como ela fazia isso enquanto estávamos mergulhando era um mistério.
Eu conseguia enxergar um pequeno feixe de luz que ia se afunilando conforme avançávamos. Então escorregamos finalmente de uma forma frenética por um tipo de espiral de pedras e cascalho, desembocando para fora daquela garganta diabólica, ao mesmo tempo fascinante.
Quando emergimos, encontramos uma praia pedregosa e hostil. E só então entendi por que a página arrancada do tomo dizia para procurar a erva em tempo seco, é que na estação das chuvas a caverna que eu e ela acabáramos de atravessar permanecia seca, já que a maré subia aquele ponto somente quando chovia o suficiente para submergi-la.
Ondas revoltas batiam nas pedras negras como ébano de uma imponente formação rochosa que se erguia contra o céu e dominava com desdém toda a paisagem praiana que nos circundava. Ao olhar para a sua imponência, notei que no seu alto uma misteriosa e também enegrecida vila se assentava, deveria ser Séttimor, isso significava que eu estava muito perto da erva que eu almejava para curar os meus hematomas causados pelos dedos fantasmagóricos de Eleanor. O sol já havia atravessado grande parte do dia, talvez não faltasse muito para anoitecer. Estávamos encharcadas.
Eu estava exausta e Arale ainda parecia estar com uma energia plena. Apontei para o capacete em minha cabeça, com um leve toque ele se desfez na mão dela, aquilo me deixou atônita.
— Você não se cansa? — soei um pouco ríspida, mas não foi intencional.
— Quando minha prioridade é a missão e a proteção, a adrenalina toma conta de meu corpo…
— Adrenalina felina é?
— Algo do tipo, venha cá, sente-se, preciso cuidar do seu ferimento.
— Estamos encharcadas, o que vai fazer, Arale?
— Confia em mim, não é?
— Claro que sim, lhe confiei a vida, é a minha única segurança.
— Vire-se de costas — ela pediu com educação.
Delicadamente retirou minhas vestes de cima. Eu cobria meus seios com as mãos enquanto ela limpava meu ferimento nas costas.
— Como está fazendo isso? Sinto-me bem mais relaxada e sem dores…
— Eu carrego sempre comigo algumas ervas e poções, infelizmente não possuo todas dessa região e deste planeta, é claro, pois estou há pouco tempo aqui e tenho apenas as do Castelo e algumas que trouxe comigo de minha tribo, são feitas apenas para estancar sangramentos, purificar infecções, algumas induzem sono, outras para sonhos lúcidos. As poções são para emergências, para curar e estabilizar ferimentos causadas durante batalhas, e também utilizo para a limpeza de meu machado e da máquina de escrever…
— Nossa, obrigada, mas por que precisa limpar uma máquina de escrever feita de ossos?
— Pronto, pode vestir-se, o curativo está feito… — enquanto ela se virava, me vesti rapidamente.
— Obrigada mais uma vez.
— Eu preciso sempre retirar fluidos energéticos que contaminem a máquina como miasmas e outros organismos pútridos, é como nos medicar, e o meu machado possui uma condição especial em sua lâmina que sempre preciso “alimentar…”
— Interessante, obrigada pelas explicações, como sou amante do conhecimento, sempre é bom obter mais conhecimento! E, mais uma vez, obrigada pelo curativo.
Percebi que ela parecia sem jeito e talvez fosse algo pessoal demais, não entendi o porquê, mas resolvi não questionar mais... Ela organizava as coisas em sua bolsa e me ofereceu alguns fungos para comer.
— Fungo? — eu hesitei. — Perdão.
— São maravilhosos, experimente, esses aqui são Shimejis Estelares, esses outros chamam-se Agaricus Bisporus, são suculentos, e esses solares aqui chamam-se Psilocybe, possuem propriedades espirituais…
— Me vê esse ensolarado… — Apreensiva, mordi e o gosto era um bálsamo iluminado. — Que delícia…
— Sabia que ia gostar.
Arale rapidamente, com exímia precisão, acendera mais uma fogueira para nos aquecermos e secarmos nossos trajes.
Observei a chama que crepitava, era muito bom e reconfortante estar na companhia daquela felina estranha, então consegui repousar e dormi logo, apesar do ardor causado pelos hematomas em meu pescoço persistirem.
Acordei não sei quanto tempo depois, após mais um pesadelo, desta vez com Viktor, que ainda em sonho me assombra. Ele me apareceu desfigurado, mas o reconheci pela voz senil, imperiosa e egoísta. Não vou descrever o sonho nesse diário, pois não quero me lembrar daquele ser nojento nunca mais enquanto meus pulmões respirarem, por isso o matei.
Ao olhar ao redor, percebi que Arale não estava próxima. Onde ela está? Gritei por ela, chamei por seu nome e nada. Eu escutava corujas e criaturas estralando galhos distantes. Morcegos passavam sobrevoando, onde ela está? Por que tive esse pesadelo? Será o reflexo do que mais me atormenta? "Este cogumelo ilumina nosso sonho como um sol da verdade..." Lembro-me de Arale dizer isso um pouco antes de eu adormecer. Não posso me arriscar, vou aguardar por ela aqui, as coisas dela estão aqui. Ela não deve ter ido longe e logo mais irá amanhecer, assim espero.
Eu sei que eu não deveria ter saído daquela área segura, mas algo me apertava o peito, como um tipo de ansiedade ou premonição. E se ela não voltar? Impossível, ela jamais me largaria… Como eu pude confiar tanto e tão rapidamente nela? Será que ela sente o mesmo? Acho que sim…
Caminhei um pouco pela mata adentro, seguindo alguns vagalumes e sons de coruja, até que avistei um clarão intenso e dourado. Corri mais adiante, me esgueirei entre os arbustos, escondida eu espiei, lacrimejei naquele instante, por quê?
Arale estava ajoelhada com uma expressão furiosa e sangue escorria do canto de sua boca. Um dos olhos estava com um hematoma. Algumas partes de sua veste estavam bastante sujas e rasgadas. Ela estava com um tipo de camisa branca de linho, ensopada de sangue, e um tipo de sutiã medieval que mantinha seu busto suspenso, além de uma calça marrom de couro cor de terra; seus braços estavam presos por um tipo de teia, que parecia ser feita de um miasma roxo e prateado.
A criatura a sua frente era um tipo de aranha mesclada a um corpo de uma mulher que exalava sensualidade e beleza, mas se deformando para uma forma grotesca, com patas horrendas e diversos olhos. Ela ria enquanto emitia um tipo de grunhido.
Lentamente caminhei para perto de Arale, foi então que avistei seu machado caído próximo de meus pés. O que devo fazer?
Não podia pensar demais. Percebi que suas orelhas felinas sentiram minha presença, então corri e peguei seu machado, era muito mais pesado do que eu imaginava, e com toda a minha força e energia restantes, o arremessei em sua direção, gritando:
— ARALE!
Ela olhou rapidamente com aqueles belíssimos olhos de tigre dilatados e soltou um tipo de rugido, liberando uma força descomunal que estourou as teias que a prendiam. Correu de quatro, impulsionando-se com seu braço metálico e agarrou seu machado de forma artística e acrobática. Tudo isso ocorreu em questão de segundos, meu fôlego e meus olhos não conseguiam captar. A aranha grunhia furiosa e tentou perfurar Arale no exato momento em que ela pulou, com uma de suas patas aracnídeas. Eu fiquei boquiaberta. Arale encravou o machado bem no meio da testa da aranha-mulher, que se debatia loucamente enquanto Arale regozijava. A criatura sangrou e derreteu em sua frente. Arale cambaleou. Corri e então a agarrei. A máquina de escrever de ossos, mesmo distante, disparou um raio cósmico, transformando aquela batalha em um pergaminho de sangue. Minha segurança e companhia o agarrou no ar e o recitou:
“Ela é silente, embora um parco murmúrio verta de suas duas bocas horrendas e escuras. Seu corpo é feito de tensões e pele, com dezenas de aberturas como vértebras cervicais. Em seu tórax resiste, aglutinado em pele e tendões, um tipo de crisálida, cujo nervo principal advém do que deveria ser a genitália da criatura. Parece guardar algo que pulsa e respira… é como um ventre. A criatura conduz-se em correntes, as quais parecem unificadas à sua pele, e seus dedos retorcidos e desproporcionais assemelham-se à forma como ela caminha, sempre retorcida, com a coluna para o lado. É bastante silenciosa quando não é vista; quando pretende atacar, seu murmúrio distante se transfigura em um eco seco e gutural que, ainda assim, somente sua vítima pode escutar — o que significaria que Morggore, seu criador, está bem próximo... É uma criatura inteligente e alimenta-se de medo e dor.
Não é essencialmente forte.
Gera pavor e exala repulsa, levando suas vítimas a uma crise de desespero dilatado, com doses altíssimas de adrenalina — muitas desmaiam ou têm ataques cardíacos em função do horror que lhes acomete. Se a vítima é racional e cética demais a ponto de não ter o terror despertado em seu âmago, Morggore não aparecerá a esta pessoa.
A criatura desvela-se para quem está só e tem medo. Seu objetivo é causar horror, pavor profundo, nada mais, e ele só aparecerá após a derrota de sua aranha…”
O pergaminho então é selado no prisma esmeralda e engolido pela máquina.
— Mais uma caça para o bestiário... — Arale conclui alegre e com a voz ferida.
— Precisamos cuidar dos seus ferimentos, vamos...
— Não... A prioridade é concluir a missão e lhe entregar a teu destino...
— Como? — Eu insisto.
— Sibila, por favor, não dificulte as coisas...
Quando finalmente percebo, em seu outro ombro, uma espécie de espinho gigante perfurou, provavelmente quando ela pulou...
— Eu precisei pular, pois senão esse espinho pegaria exatamente em você, Sibila...
— Arale... — Emocionada, eu não sabia o que dizer.
— Talvez você não resistisse, então por favor, vamos seguir e concluir o que me pediu...
Retornamos à fogueira. Ela recolheu a máquina de escrever e nossos outros pertences, e seguimos atravessando o local de batalha, chegando ao final da trilha, com dois caminhos e uma placa com duas setas de madeira.
A esquerda dizia: “Séttimor para cima”
E a da direita dizia: “Porto do limiar adiante”
— Eu preciso chegar ao porto, Sibila. Preciso seguir viagem. Tenho uma missão pessoal também, muitas, aliás, mas a prioridade agora é eu encontrar Allant Elirrahz...
— Infelizmente não conheço... — Eu digo, magoada.
— Imaginei, não tem problema. Aquela aranha era um Yokai, eu caço essas criaturas também. Ela era um filhote da criatura que estou buscando...
— Que criatura? — Pergunto, curiosa e óbvia.
Arale arfa, respira fundo enquanto tenta limpar o machado, e insisto para me deixar fazer um curativo. Ela concorda, enquanto me conta o relato que ouviu...
Sentamo-nos na beira de um lago com pedras ornamentadas pela natureza, onde pobres peixes marinhos lançados pela maré tentavam retornar ao mar, e então Arale começa a me recitar o que um pergaminho anterior ao de hoje, pertencente a uma antiga caçadora, havia transmitido para ela junto de sua máquina:
“A tecedeira dos destinos funde a noite de três véus, onde o pavor tece sua própria carne. Onde a beleza murcha, se funde à abominação, e a aranha vira ventre, e o ventre respira pavor. Chamam-na de Jorōgumo, a que ceifei com sua ajuda. Dizem as lendas, nas aldeias tomadas por brumas, mas há os que sussurram outro nome também, sua extensão, Morggore, num sussurro empedrado, como se cada sílaba fosse uma pedra enfiada na garganta. Jorōgumo, rebento de Morggore, é criação direta de seu abismo, uma continuidade de sua essência, feita da mesma teia de terror e desejo.
São dois nomes para o mesmo presságio. Uma entidade de dupla essência, dualidade profana. Ela não seduz apenas com beleza, nem assombra apenas com horror. Ela engravida o medo com desejo e pare o desespero em silêncio. Sob sua pele, o que um dia foi seda tornou-se membrana viva, espessa e pulsante, como o ventre de uma estrela negra prestes a explodir. Seu corpo, uma fusão de tensões arcanas e biologia renegada, se contorce como quem dança para os deuses errados. A teia que antes enredava corpos, agora costura a realidade com o irreal.
No centro de seu tórax, onde um coração humano repousaria, pulsa uma crisálida feita de tendões e ossos fundidos, um feto de horror onde habita o que não deve nascer. De lá, nervos escorrem como raízes em solo maldito, fundindo-se à sua genitália necrosada, a boca original de onde vieram os enganos e os lamentos. Jorōgumo-Morggore anda em correntes. Elas não a prendem. São parte dela. Rangem como dentes velhos roçando um ao outro, rangem em harmonia com seu andar desfigurado — uma dança espasmódica e lateral, como um réptil esquecido tentando lembrar como era ser mulher quando o ataque se aproxima… o mundo silencia. O murmúrio, aquele mesmo som que se assemelha ao soluço de uma criança afogada em pesadelo, emerge apenas para os ouvidos da presa. É íntimo. Como um segredo sussurrado no exato momento da morte. Nenhum outro ouve. Nenhum outro vê.
Ela não é essencialmente forte — não quebra espadas, não fere com garras flamejantes. Mas penetra na alma com agulhas feitas de lembranças do que poderia ter sido. Morggore alimenta-se de medo não como uma besta faminta, mas como um sacerdote ancestral em comunhão com o terror alheio. Ela oferece um culto sensorial: taquicardias, desmaios, suor frio, a orquestra do pânico. E quando a vítima enfim ruir, ela recolhe não o corpo, mas a experiência. O horror. O grito que não saiu.
Aqueles que são céticos, que não creem em assombrações, jamais verão Morggore. Ela não os deseja. Não por desprezo, mas porque ela é um reflexo do medo espelhado na alma de quem caminha só. Ela é necessária apenas para os que se esvaziam ao anoitecer. E mesmo os bardos, aqueles que tentam cantá-la, jamais a nomeiam em voz alta. Preferem rabiscar em pergaminhos apócrifos, trêmulos, ou soletrar de trás para frente, esperando que a noite não ouça. Pois onde o pavor dorme, Morggore desperta. E onde o desejo espreita, Jorōgumo sorri. Nas sombras onde os fios do mundo se cruzam, ela reina. Invisível como o vento, paciente como a noite.
Nas crônicas esquecidas que os bardos sussurram ao pé do fogo, nas estepes cobertas de neblina do Oriente antigo, fala-se da Jorōgumo, a aranha encantada que urde tanto o destino quanto o desejo. Criatura dos véus e dos enganos, seu nome ecoa como um sussurro em corredores de madeira velha e bosques silenciosos. Não é mera fera, tampouco um espírito errante; é lenda viva, entidade ambígua que transita entre o divino e o maldito. Com o torso de uma donzela de beleza hipnótica e o abdômen de uma aranha colossal, seus olhos negros não revelam emoção, apenas fome disfarçada de ternura. Quando ela caminha, o chão não a ouve. Quando ela canta, o coração vacila. Sua voz é doce como sake quente sob a chuva, mas cada palavra é um laço, cada sílaba uma seda venenosa. É ela quem embala guerreiros solitários em promessas de consolo. É ela quem espera, imóvel, sob os salgueiros tortos, onde a luz hesita em entrar.
Na arte ancestral do engano, Jorōgumo é mestra. Convida com o olhar, enlaça com os cabelos, prende com as pernas. Seus fios, de prata lunar e toque mortal, não são apenas armadilhas físicas, mas malhas de ilusão e encantamento. Os homens que nela confiam não morrem apenas: desvanecem, tornam-se ecos presos entre as fibras de suas teias, murmurando eternamente entre a seda e o silêncio. Alguns dizem que é uma maldição, que uma aranha comum devorou tantos corações que o próprio kami da enganação lhe concedeu forma humana como prêmio. Outros creem que ela é a guardiã de passagens esquecidas entre mundos, cobrando pedágios de paixão e sofrimento.
Como os espectros dos túmulos antigos, ela não busca redenção. Ela observa, eternamente à espera de mais uma alma cansada para envolver em seu casulo de promessas. Pois onde a espada falha e a palavra fraqueja, Jorōgumo triunfa com um sorriso. E se a encontrardes, não lutem, não falem. Apenas corram. Ou rendam-se à poesia de seu abismo.”
Eu estava horrorizada e impressionada, tudo fizera sentido, era por isso que todos que encontrei estavam em choque ou tremendamente assustados com ela, será? Com os olhos marejados, perguntei:
— Isso é uma despedida?
— Por ora, sim, minha cara companheira. Siga este caminho, será seguro.
— Muito obrigada, vou lhe pagar…
— Não precisa. O que preciso é apenas chegar ao porto e, de lá, a vida me levará para os mares do limiar. E lá, quem sabe, encontrarei o que procuro…
Nos abraçamos forte, como se ambas não quisessem, de coração, se separar.
Arale seguiu firme pelo caminho em direção ao porto. Eu fiquei admirando-a e, então, segui para o meu destino. Quando, novamente, olho para trás, vejo, na neblina que a noite trazia, Arale desaparecendo de minha vista. Olhei para o alto e suspirei cansada, mas esperançosa e grata:
— Séttimor, estou chegando.

Mergulhe em um mundo suspenso entre a morte e o delírio. Sibila desperta em um castelo cercado por campos de lavanda e vozes sussurrantes, sem saber como chegou ali, tem apenas a certeza de que matou Viktor Frankenstein. Mas naquela terra onde o tempo se desfaz e os mortos sussurram, certezas são as primeiras a apodrecer. Inspirado no universo de Frankenstein, este romance gótico reinventa personagens clássicos que desafiaram a morte e pagaram o preço. » Leia todos os capítulos.

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Aryane Braun
Aryane Braun é curitibana por nascimento, amor e dor. Formou-se em Letras pela UFPR e possui duas graduações na área da educação. Atualmente, trabalha em uma biblioteca de um colégio público em Curitiba e adora o que faz, pois ama o ambiente que os locais de ensino proporcionam. Afinal, que lugar melhor para trabalhar do que uma biblioteca para alguém que sempre gostou de literatura, antes mesmo de compreender o que ela representa em seu intelecto?... » leia mais

Marcos Mancini
Marcos Mancini é um escritor, artista e criador cujo trabalho transcende as fronteiras da literatura convencional, mergulhando nas profundezas da psique humana e explorando as complexidades da condição existencial. Sua obra reflete uma busca incessante por significado, através de uma escrita visceral que combina poesia, filosofia e uma rica variedade de estilos literários... » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 16ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de maio de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
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