A minha vida só me dá desgosto; por isso, darei vazão à minha queixa e me expressarei com a alma amargurada

Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Diário de Rute Fasano

Data incerta - A caneta falha, como se a tinta temesse escrever ou sou eu que temo? Mas preciso registrar tudo como venho fazendo desde o início, e se eu não escrever, talvez Mara tenha razão e tudo que passei tenha sido apenas um delírio causado pela bebida, mas eu sei o que vi e eu sei quem estava lá. Corremos de volta à clareira e nossos passos fazendo barulho nas folhas secas, Mara segurando meu pulso com força como se temesse que fossemos separadas de novo. Parte de mim queria voltar à clareira, a bebida ainda queimava na minha garganta com um sabor de nostalgia, um sabor de lembranças que nunca tive, mas de alguma forma desejei. Chegamos à clareira e não havia nada, nenhum vestígio das figuras encapuzadas, nenhum vestígio do banquete, nem mesmo o aroma, apenas o nada, como se ali não tivesse acontecido a poucos minutos uma celebração, apenas o vazio envolto em árvores. Mara ficou em silêncio, mesmo sem saber como, eu sentia sua decepção, sua frustração bem palpável, como um peso em meu peito. Tentei explicar a ela que realmente senti que Drácula estava lá.

— Mara, ele estava aqui por trás de uma daquelas máscaras, ou talvez atrás de todas. Eu senti ele me observar por trás dos olhos da criatura que me levou à mesa. Não posso provar, mas aqui tinha o cheiro dele, a presença, a risada, tudo estava aqui — eu disse tentando conter uma certa emoção na minha voz.

— Eu acredito em você. — ela murmurou. — devemos continuar.

— Continuar para onde? — eu falei muito irritada — não vê ele brincando conosco? Que ele brinca com aquilo que nós mais desejamos, isso, toda essa maldita celebração foi só uma encenação profana de Dracula da crença que Hadassa tinha, da crença que ela achou que poderia salvá-la, a mesma que a enlouqueceu, que a podou e depois tirou dela a vontade de viver. Pra no fim ela me amar como uma amiga, pois qualquer coisa além disso faria com que ela não fosse salva, e como uma boa amiga fui até o fim com ela. — eu tentava em vão segurar a fúria dentro de mim, então meu tom de voz aumentou — Ela não queria ter que amar a Deus mais do que a mim, mas ela amou, mas nem eu, nem Deus conseguimos salvá-la e Drácula, joga no meu rosto de maneira teatral que, talvez, só ele pode salvá-la. Eu não sei se quero continuar a seguir as orientações dele, é tudo confuso, é tudo sem clareza, é errado. — respirei fundo para conter minha fúria e disse com mais calma — Você acha mesmo que vale a pena continuar?

— Você quer Hadassa de volta, eu quero voltar a ser eu mesma e me livrar desse vínculo com você, então, sim, vale a pena. — ela disse com calma ignorando meu acesso de fúria.

Ficamos em silêncio e seguimos da floresta até uma abertura entre alguns pinheiros, a terra pareceu se curvar e diante de nós havia um mar escuro e, além dele, o castelo Drácula. Chamá-lo de castelo Drácula agora me parece um pouco infantil, acredito não existir um nome apropriado para o que vimos no horizonte, ele estava imenso, como se tivesse sido esculpido em uma montanha descomunal, havia pinheiros escuros em suas muralhas e muito musgo rastejando pelas pedras. Uma névoa fina deslizava por suas torres altas e finas como se fossem espetar aquele céu escuro. E o céu como um espelho que refletia aquele mar escuro que não se movia como deveria, suas ondas não seguiam a brisa, pareciam que respiravam. Eu ainda respirava com dificuldade, mas a realidade respirava muito bem ao nosso redor. E ali naquela praia que não fazia nenhum sentido, me dei conta que não conseguia ignorar o impulso de seguir para o castelo. Não sei o que me causa mais horror, saber disso ou ter o desejo de voltar à clareira. Desejo, sim, o desejo, palavra que agora mais me assusta. Não às criaturas, o castelo, mas sim o desejo de pertencer. Aquele vinho, a celebração, a heresia, tudo apenas promessas que ainda não foram feitas me atraem, seja como for, amanhã retornaremos ao castelo, se ele nos permitir entrar novamente.

Data incerta - Hoje, mas que nunca entendo como é andar em direção ao nada. Ao amanhecer, ou que se parecia com o amanhecer nesse lugar onde a noite parece apenas ficar mais clara, como um fim de tarde. Mara e eu deixamos nosso acampamento improvisado na areia fria, eu me sentia entorpecida, todo meu corpo protestava contra se levantar, como se soubesse de todos os perigos que estavam me esperando. O castelo ainda estava lá gigante e imponente, mas ainda distante, talvez até mais que antes, e quanto mais andávamos, mais ele se afastava, como se o solo se movesse sob nossos pés nos afastando do castelo. Foi então que vimos um veleiro escuro, preso a pedras cobertas de sal e líquen, e junto dele um homem que desenhava com carvão sobre um mapa estendido num grande caixote, as linhas tremiam quando a brisa do oceano passava, mas isso não parecia incomodar ele que continuava concentrado no mapa. Seus olhos, ou o único que parecia enxergar, seguia os riscos com precisão. Tinha uma barba grande e grisalha, cabelos à altura do ombro, branco como a espuma no mar; os olhos eram um de vidro em um azul claríssimo, e o outro de um azul quase humano. Seu nome era Allant, foi assim que ele se apresentou quando fomos até ele. E sua voz soou bem velha e profunda. Mara pediu a ele que nos levasse ao castelo, Allant nos encarou, e depois encarou Mara, por mais tempo. Seu rosto perdeu aquela calma despreocupa, e se enrijeceu.

— Você é um deles, não é? — perguntou com uma voz profunda e lenta.

Mara pareceu não entender e muito menos eu.

— Ah, não importa, nesse mar já vi tantas coisas indescritíveis que já nem me surpreendo mais. — Ele murmurou ignorando uma resposta e entrando no veleiro como quem escolhe não saber. Aceitou o pedido, dizendo que podia nos levar até onde o mar permitisse.

 — O oceano é uma entidade.  — Disse isso como se confidenciasse um segredo. — Há lugares que se erguem e afundam à vontade dessa entidade.

Subimos no veleiro, as velas esfarrapadas erguidas com um vento que eu não sabia de que direção vinha, o casco rangeu e assim a embarcação avançou. E o Castelo ainda não se aproximava.

— Vamos deixar que o mar nos oriente. — Mara disse olhando para mim e depois em direção ao castelo que insistia em se afastar.

E eu aceitando assim a sua lógica de que nunca é o caminho que escolhemos, mas o que nos é revelado. Sentada ao lado dela senti algo estalando dentro de mim, como vidro que começa aos poucos se partir. Não era medo ou ansiedade, talvez a minha falta de fé, como se meu ceticismo fosse uma redoma de vidro dentro de mim que me protegesse de qualquer ilusão, um ceticismo vitrificado, endurecido que agora contempla o abismo e se entrega aos poucos ao passo seguinte, sem tentar se questionar, porque talvez esse seja o único caminho que resta. O veleiro deslizou por aquelas águas desconhecidas, aquele céu como um manto escuro e um mar que respira, estávamos apenas sendo levados. Num certo momento, Mara se sentou à proa e tentou enxergar um caminho, como se tentasse decifrar tudo à nossa volta e o espaço entre nós e o castelo, mas o castelo havia sumido, parecia que o mar o havia engolido, agora só se viam estrelas que não deveriam estar ali. Eram estrelas demais, próximas demais e erradas demais, algumas se moviam lentamente e outras pareciam nos vigiar. Allant nos disse que às vezes o céu não é o céu, às vezes é uma coisa que nos olha de cima. Eu apenas respiro, olho para ele e concordo com a cabeça. Ele disse isso com um sorriso e um olhar fascinados, como quem perdeu o medo de tudo e agora vê tudo com sincera admiração.

Passamos por uma ilha, que como Allant afirmou, não existir antes, era branca como marfim, cobertas de árvores curvas também brancas que pareciam ossos, Allant não tocou o leme, o mar nos levou até lá e logo depois nos desviou. Allant apenas anotou com cuidado um novo risco no mapa e a ilha brilhou em seu pergaminho como uma cicatriz.

— Ilha do útero putrefato — ele murmurou — tem cheiro de coisas que só o abismo poderia parir.

Mara olhou para mim e, por um instante, juro que vi reconhecimento em seus olhos, mas não quis questioná-la, não agora. A noite chegou, ou mais noite do que já estava antes, pois a escuridão se confunde com tudo, Allant nos contou uma pequena história sobre uma criatura que vive sob as águas, Lwccirtt, ele soletrou para mim. Ele disse que às vezes, os mastros vibram não por causa do vento, mas porque a criatura passa por baixo. É uma criatura disforme que pode ser confundida com o oceano ou mesmo um céu escuro estrelado. Ele disse que uma vez viu uma luz fascinante, bela demais para ser real, sentiu uma sensação de perigo e seus ossos gelarem. Não vou mentir dizendo que não fiquei impressionada, mas estando no meio daquele oceano, indo sabe lá onde, eu fiquei com medo. E então, quando cada um foi para o seu canto se distrair enquanto o mar nos levava, eu vi a luz, e com ela o som que me fez lembrar do sangue correndo em meu corpo, um som fundo que por um momento me arrancou a lembrança do meu nome completo, por pouco não me arrancando da minha existência, e guardei isso para mim, pois percebi que Mara e Allant não viram ou ouviram nada. E agora me pego escrevendo aqui, nesta página apenas para me certificar que ainda sei quem eu sou. Rute Fasano, Rute Fasano, Rute Fasano. Como ele me soa pequeno, efêmero, um nada. Eu sei mesmo quem eu sou? Cada dia mais fica difícil responder essa pergunta.

Estávamos sendo levadas para onde o mar nos quer, não sabia se o castelo era o destino, nem sabia se queria ainda chegar até ele, só sei que o mar nos conduziu, eu tentava ignorar a luz e a voz que vinha com ela. E aos poucos um vento foi chegando, primeiro como um sussurro frio e úmido, para depois se tornar um rugido violento e gelado, batendo nas velas, fustigando os cabelos, vibrando os mastros. O mar se erguia furioso, mas não parecia o mar, era como um céu invertido, o barco tremia, nós nos segurávamos com força, tanta força que meus dedos doíam. Eu vi algo bem longe, radiante, andando sobre as águas, uma figura. Primeiro Drácula de braços abertos me esperando, o olhar e o sorriso cheio de promessas. Pisquei, era Hadassa viva intacta, com seus longos cabelos molhados colado ao rosto e o sorriso da sua época mais apaixonada pela vida. Pisquei outra vez e a forma se desfez se tornando outra coisa, feita de mar, de ossos, de céu e estrelas, horrenda demais para ser nomeada e bela demais para ser esquecida. E ela falava dentro de mim: “Venha.” A palavra não era som, era sensação, era gosto, era cheiro. Eu a sentia atrás dos meus olhos, na minha língua, em minhas narinas. “Se houver fé em ti, andarás sobre as águas e virás até mim.” ela falava. Não havia fé em mim, ou havia? Então eu pulei do veleiro, não me lembro do som do salto, nem da tempestade, só o silêncio e a sensação de acolhimento e sob meus pés a água endureceu e eu andava sobre as águas.

Tudo girava lentamente e as estrelas no céu, que era a coisa à minha frente, me chamavam por nomes que nunca ouvi e eu andava em direção dela sem ao menos saber o motivo, mas eu andava. O sal queimava meu rosto, minhas roupas colavam em meu corpo e cada passo meu era leve e eu apenas ia. Até que vozes reais me despertaram, “RUTE!” a voz de Mara, “MOÇA, PARE!” era Allant. Seus gritos como pregos nos meus ouvidos, me despertando do transe. Partindo a minha fé? Então afundei, sem luta, sem pânico. Senti a água entrar pelas minhas narinas, invadir minha garganta, encher meus pulmões, que queimavam como se eu estivesse inalando meu primeiro sopro do mundo e ainda assim era acolhedor. Meus braços boiavam sem direção, meus cabelos dançavam, tudo girava, meu corpo girava, eu não sabia identificar o que era o céu ou o fundo do mar, tudo estava em desordem, mas não havia medo dentro de mim, apenas alívio. Como se todo esforço, toda essa dor, toda essa busca sem sentido, fosse tudo um engano.

A vida veio da água, e na água tudo termina, eu sorria com esse pensamento, porque talvez, finalmente, eu tenha encontrado um lugar onde eu caiba. Tudo escureceu, tudo silenciou e o mar me acolheu. Porém o mundo foi voltando aos poucos em partes, primeiro a dor nas costelas, o sal na garganta e o ardor nos pulmões. E por fim alguém chamando meu nome, não um grito, mas uma voz firme cheia de fúria contida. Abri meus olhos, o céu escuro, nuvens preguiçosas, eu estava deitada sobre pedras úmidas que me gelava até os ossos, minha boca aberta, meus olhos pesados. Mara estava curvada sobre mim, e por um momento vi Hadassa em seu rosto e depois não a vi mais. Via a pele translúcida bela como uma estátua feita de luar, sua existência trêmula e seus olhos profundos como o mar que me engoliu. Ainda não sei se naquele momento ela me olhava como quem me protege ou como quem protege a própria vida, mas ali estávamos dividindo algo, que não sei se era um afeto ou luto antecipado. Ela me puxou para seu colo e eu chorei como alguém que sentiu bem perto um alívio imenso demais para se explicar. Chorei por ter sido arrancada de um descanso que me parecia divino.

— Você voltou — murmurou Allant que estava de pé ao lado de Mara parecendo aliviado. — Por pouco o mar não a tomou de vez — sua voz rouca e lenta — já vi muitos irem e não voltarem e poucos que voltaram já não eram os mesmos. Fico feliz que esteja bem. Agora que tudo está bem preciso deixá-las, o mar me chama de novo. Há muitas ilhas ainda para serem catalogadas.

Então sem se demorar ou sem se explicar demais, Allant subiu no veleiro, sem esperar despedidas e acenou uma última vez.

— Não se afogue de novo, moça, na próxima vez o mar pode não a deixar viva. — o veleiro partiu e aos poucos foi desaparecendo ao longe.

Mara não disse nada, pois entendo que ela só queria me salvar para se salvar. A água ainda escorria dos meus lábios e dos meus olhos mais nada. Quando me levantei, tremendo, vi que estávamos em terra firme, numa ilha rochosa, antiga e de aparência seca, árvores ressecadas com troncos retorcidos e o castelo Drácula, ainda desaparecido.

E agora estamos aqui, eu viva e ela calada esperando orientações. Talvez tenha sido um erro eu ter sido trazida à superfície, pois tudo que irei fazer a partir de agora é inaceitável, já que há algo que tenho tentado omitir, eu estou mudando e não é de uma forma positiva, já não consigo controlar meus pensamentos ou vontades que num momento comum eu facilmente controlaria. Eu pensaria muito antes de iniciar qualquer coisa fora da minha realidade, e o castelo é algo fora da minha realidade, ou era, já que agora não sinto parte de nenhuma realidade além da do castelo.

Enquanto escrevo isso fico me perguntando o que Hadassa dirá quando eu a trouxer de volta, será que ela ficará feliz em viver comigo nessa realidade ou vai me odiar por tirar dela a paz da morte? Ela irá me amar quando enxergar em meus olhos o mal, pois é isso que eu sinto, o mal em cada passo que dou em direção ao caminho de trazê-la, mas, mesmo assim não consigo desistir da ideia. Não culpo o castelo, pois já pude perceber que o castelo só deixa latente aquilo que já sentimos, só nos tenta com aquilo que realmente desejamos, então não o culpo, nem a Drácula, culpo a mim mesma por não resistir à tentação. Estou cansada de continuar, mas essa vontade me impulsiona, mesmo contra a minha vontade. E já que eu não posso me impedir, o que me resta é continuar e reclamar.

Castelo Vampírico
Entre as paredes sinistras do Castelo Drácula, Rute Fasano registra em seu diário as angústias de uma alma consumida pela perda e pela culpa. Assombrada por memórias que recusam o descanso eterno, ela mergulha em abismos existenciais enquanto busca sentido numa fé já desfeita. Para Rute, a única certeza parece repousar na própria morte ou, talvez, numa reversão obscura dela. Seu relato é um testemunho de saudade e consequências, onde a linha entre a vida e o fim torna-se tênue como um último suspiro. » Leia todos os capítulos.

Escrito por:
Valesca Afrodite Gomes

Valesca nasceu no Rio de Janeiro (RJ), cursa Ciências Biológicas, encontra-se no último período. Tem paixão por ciências, subcultura gótica, livros, seres sobrenaturais, ficção científica, cemitérios, igrejas e morcegos, ela também é voluntária em um projeto de divulgação científica chamado "Morcegos na Praça". Escrevia com frequência, mas afastou-se da prática ao... » leia mais
16ª Edição: Soramithia - Revista Castelo Drácula
Esta obra foi publicada e registrada na 16ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de maio de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.

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