A Escultura

MidjourneyAI

Carlos sempre flertava com a ideia de viver uma vida simples, sem muitas preocupações, de preferência numa cidade pequena. Como de costume, ele acordou cedo para comprar jornal na banca próxima a sua casa e, ao folheá-lo, se deparou com um anúncio na parte dos classificados, era o convite que ele estava esperando. Tratava-se de um incrível chalé em frente à praia, numa pequena e charmosa vila pesqueira. Um singelo sorriso surgiu de seus lábios enquanto guardava o jornal.  

Certo dia, ele resolveu conhecer o lugar, reservou o chalé por um final de semana e se apaixonou imediatamente, tudo era encantador, a sala ampla, um sofá aconchegante, uma cozinha bem planejada e bastante arejada, a poltrona de balaço feita de palha na varada, o quarto com uma janela linda de madeira, e abaixo da janela, uma confortável cama feita de madeira. Tivera uma estadia fantástica, deixou a vila com saudades. 

Anos se passaram e Carlos desejara voltar à vila, mas, desta vez ele queria se mudar, todos diziam que era uma loucura, preocupados em como ele iria se sustentar. Mesmo assim, contra todos os conselhos, ele planejou tudo escondido, estava cansado daquela vida caótica da cidade. Programou-se, economizou e estava decidido a se mudar, não foi fácil, mas ele conseguiu, com muita paciência e dedicação ele finalmente foi morar na vila, foram tantos fins de tarde contemplando o belíssimo pôr do sol, ouvindo o som das calmas ondas beijarem os grãos quentes de areia, os siris buscando abrigo subterrâneo para proteger-se das ondas, porém nada se compara com a grandiosa e misteriosa falésia que, estendia-se por toda praia.  

A principal fonte de renda da vila era a pesca, eram conhecidos por terem os mais belos exemplares de peixes, exportavam para todo o Brasil, ampliando, também, para mercado exterior. Foi justamente nesta peixeira que Carlos conseguiu um emprego, era um ambiente leve e tranquilo de se trabalhar. Não se importava com cheiro, ele estava feliz. Acordava animado, gastava por volta de dez minutos da sua casa ao trabalho. Às vezes ele acompanhava as embarcações que ancoravam no cais, trazendo a mercadoria, catalogava quantos peixes foram trazidos e quantos foram vendidos, as vezes ele fazia a limpeza dos peixes. 

Por volta das 4 horas da tarde, ele retornava para sua casa, tomava banho acomodava-se em sua poltrona de palha, sempre na companhia de seu café, sentindo a brisa refrescante do mar tocar seu rosto, enquanto admirava o mar e sua imensidão. Estava gostando muito daquele lugar, o clima era agradável mesmo com o imponente sol, a noite era mais fresca e nos finais de semana, as crianças dominavam a pracinha e as ruas, podia-se ouvir as traquinagens e os chinelos batendo contra os paralelepípedos; milho assado, algodão doce e cachorro-quente eram vendidos ao lado da igreja, na praça.  

Já nos dias da semana, era menos movimentado. Assim, Carlos vivera momentos felizes. Tinha um ótimo trabalho, ganhava bem e possuía o que ele mais buscava: qualidade de vida. Acordar, e dormir com aquele som das ondas quebrando à beira-mar, não tinha preço, mas aquela serena vila pesqueira escondia um segredo terrível.  

Fora em uma noite, na taverna do local, que histórias horrendas atravessaram a mente de Carlos, levando a uma profunda impregnação em seu subconsciente. Aquela noite terrível naquela taverna fizera com que a visão poética que Carlos tinha sobre a vila, fosse fragmentada em micro pedacinhos, tal qual um cristal quebrado. Desde então, quando se encontrava apoiado com os cotovelos na moldura da janela, observando com olhar sereno a despedida das arrastadas noites, assistindo o firmamento receber gentis pinceladas em tons flamejantes e ouvindo ao longe o cantar dos pássaros que anunciam o início do dia, pois cruzam o céu de ponta a ponta, repousando seus corpos nas folhas dos inúmeros coqueiros dispostos por toda extensão da vila pesqueira, tudo não era mais como antes, mesmo com o mesmo cenário.  

Sem demora, a inevitável luz matinal começara a surgir no horizonte trazendo o aprazível calor, ainda na janela, com aquele cenário. Carlos, então, bocejou. — “Essa insônia ainda vai acabar comigo!” — pensou enquanto esfregava seus olhos cansados, seguindo em direção ao banheiro. A passos vacilantes, desviou de algumas garrafas de bebidas, porém acabou tropeçando no lençol, o qual fora lançado ao chão. Finalmente chegou ao seu destino, viu-se no espelho, apático. Enxaguou seu rosto ornamentado pelas rugas, enquanto seus olhos castanhos desejavam deixar essa mísera existência. Penteou os poucos cabelos que lhe restavam, trocou de roupa, comeu metade de um pão adormecido, e foi trabalhar.  

A silenciosa praia escutava os passos de Carlos, ele seguia caminhando em alerta, sob os grãos fumegantes de areia. A mão esquerda elevada à altura dos olhos, o protegiam debilmente do impiedoso sol. Ao chegar no trabalho, seus colegas se espantaram com sua fisionomia, seu rosto denunciava as noites de insônia. O vigor que outrora trazia, sumira do seu corpo, dando lugar a uma fadiga constante. Joaquim, preocupado com seu amigo, questionou o que estava acontecendo, Carlos explicou tudo o que sucedera, sobre as histórias assombrosas que ouvira na taverna, bem como os terríveis pesadelos constantes e, ao ouvir tudo aquilo, Joaquim paralisou por segundos e disse que era melhor que Carlos esquecesse tudo o que ouvira, pois, as histórias, por mais bizarras que fossem, tinham um fundo de verdade. E, de fato, por um tempo, e com esforço, Carlos conseguiu esquecê-las, no entanto, elas sempre rastejavam até a superfície, assombrando-o. Sua alma havia sido corrompida pelo desconhecido. 

Novamente ele assistiu o doce amanhecer aquecer o dia e, mesmo exausto, foi trabalhar, pois, assim esquecia, por algumas horas, as lembranças. Ao chegar no trabalho, foi designado para receber uma grande carga e fazer as devidas anotações. O dia passara tão rápido que ele nem percebeu que a noite havia chegado, todos foram para suas casas, menos Carlos, pois o patrão confiava muito nele para aquele serviço. Ele, então, respirou fundo e pegou a caixa, foi recebido com uma baforada de odor pútrido, sentiu o gosto azedo do suco gástrico subir até a garganta, vislumbrou um peixe enorme, nunca visto antes, seus olhos esbugalhados eram vazios, exibiram um terror ancestral.  

De suas escamas fluía uma secreção escorregadia ao toque e sua boca estava costurada com náilon, como se protegesse um terrível segredo. Era a exata cena das histórias que ouvira. Tonto, Carlos lutava para se manter de pé. As escamas brilhavam, estranhamente, em tons de azul fluorescente. Apesar de todo o horror, ele foi até o fim, queria descobrir a verdade. Após amolar sua faca, cortou o náilon, a criatura emitiu um gemido repugnante enquanto ele prosseguia, com as mãos tremulas, na incisão na criatura. O som da pele sendo dilacerada ecoava no silêncio. Carlos contemplou as escamas bailando no ar, com olhos perplexos ele finalizou o corte e fitou as vísceras espalhando-se sob a mesa. 

Desta vez ele desmaiou. Quando pôde retomar a consciência, minutos depois, a cena grotesca permanecia ali. Ele apoiou suas mãos na mesa e notou algo nas entranhas da criatura, era uma estátua esverdeada, com mais ou menos 40 centímetros, ela era disforme, coberta por escama, ostentava inúmeras patas longas e arqueadas que ocupavam toda a extensão do corpo, por fim, múltiplos olhos complementam a escultura medonha. Carlos ergueu o nefasto objeto à altura dos olhos, os contornos pareciam ganhar vida, pensou ele ao admirar a escultura: — “Essa é justamente a representação da criatura que algumas pessoas desta vila maldita prestam culto”. 

Antes de desmaiar pela segunda vez, ele a ergueu aos céus, suas mãos cobertas por vísceras, e suplicou por alguma intervenção divina, desabando em seguida naquele chão coberto por escamas e entranhas, desta vez, ele teve uma visão de eras remotas, onde o mundo era governado por seres multidimensionais, eles habitavam no espaço-tempo, e um desses seres era a temível escultura que acabara de ver, ela se locomovia com rapidez devido suas enormes patas, gerando gigantescos vórtices. Esse ser era de tamanho imensurável, seu corpo era repulsivo, gelatinoso e amorfo; seu brilho era assombroso. Aquela verdade era muito espetaculosa para a ínfima mente humana. 

Carlos abriu seus olhos inertes após a súbita visão, seu corpo tremia compulsivamente e, enquanto ele balançava a cabeça em negação, gritou de forma gutural, chegando a ficar sem voz. Em seguida levantou-se ainda nauseante, enxergou a carnificina, viu, também, a maldita estátua e, tomado pela insanidade, ele ergueu a faca e extirpou seus olhos, ao mesmo tempo que gritos obscenos e risos histéricos eram ouvidos por toda vila. Seu corpo entrou em choque e despencou em meio às tripas. 

Texto publicado na 2ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de fevereiro de 2024. → Ler edição completa

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