Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Era, sem dúvida, o melhor velório a que eu já tinha ido, não pela comida, mesmo que o bolo de ossos moídos fosse bastante crocante e os brigadeiros tivessem aquele sabor único de infância traumática. Não, o encanto, ou melhor, o diabo estava nos detalhes: ninguém ali precisava se preocupar em morrer de novo, mas convenhamos que é um alívio danado quando já se está morto. O salão principal parecia ter sido decorado por um coveiro muito entediado. Balões inflados com pulmões humanos balançavam no teto, emitindo estalos úmidos sempre que se tocavam. As velas, dispostas em fileiras, não derretiam em cera, mas em camadas de pele liquefeita que pingavam sobre toalhas bordadas com crucifixos invertidos. A cada gota que caía, os convidados riam como se presenciassem uma situação muito engraçada.

No centro da sala erguia-se o bolo: três andares de ossos moídos envernizados em glacê amarelado, de onde brotavam velas azuladas. Quando o primeiro pedaço foi cortado, não saiu recheio, mas um murmúrio coletivo, vozes dos mortos pedindo que ninguém os comesse. Os convidados, é claro, devoraram as fatias como crianças famintas. Um detalhe digno de nota: o cheiro era insuportável, mas ninguém parecia se importar. Pelo contrário, havia quem respirasse fundo, como se inalasse um perfume francês. Na vitrola tocava risadas de crianças desaparecidas, era uma trilha sonora que deixava qualquer chá de bebê no chinelo. De tempos em tempos, um dos balões estourava, cuspindo um sopro gelado de ar que, suspeito eu, fosse o último de alguém que não fez nenhuma falta.

Eu me lembrava de ter chegado, mas não lembrava de ter saído em algum momento, aliás, ninguém ali lembrava, éramos todos convidados, e o castelo não permitia que a festa acabasse. No auge da celebração, quando alguém abria a caixa com o coração pulsante, eu ria, ria porque não sabia de quem era aquele coração, mas tinha certeza de que não era o meu, ou talvez fosse, e o castelo apenas o tivesse me emprestado por mais uma rodada. A reunião prosseguiu com brindes em taças cheias de um vinho espesso demais para ser vinho. Um bruxo ao meu lado, com humor mórbido, cochichou:

— É da safra de 1897, o ano em que Drácula foi publicado, dizem que fermentaram com mais do que uvas.

Ri, nervosa, até perceber que algo se movia dentro do líquido. A cada brinde, a cada corte de bolo, eu pensava: “Este é o melhor velório de todos os tempos.” E era mesmo. Onde mais se poderia estar morto, estar vivo, e ainda assim se sentir um convidado de honra?

Foi então que o defunto da noite entrou, ele surgiu do nada, como se tivesse sido cuspido pelo próprio chão do salão. Vestia um terno antiquado, gasto e ligeiramente úmido, como se ainda carregasse a terra da cova em seus ombros. O rosto era pálido, com olheiras bem fundas. Um sorriso exagerado, costurado nos cantos por pontos malfeitos, se abria de orelha a orelha, revelando dentes amarelados e um hálito de formol. Os olhos muito escuros piscavam a todo momento, às vezes vivos, às vezes mortos, refletindo o brilho azulado das velas de pele liquefeita. No peito, uma flor murcha brotava de um alfinete, e a cada movimento seu, caíam pequenos fragmentos de terra, como se a cova o chamasse de volta, mas ele, teimoso, preferisse ficar para mais uma apresentação.

— Bem-vindos ao meu velório, queridos! Boa noite, plateia, ou seria boa morte? Enfim, tanto faz, não é, aqui ninguém sai vivo mesmo.

A plateia ria.

— Deixem-me apresentar, sou o defunto da festa, literalmente. E devo dizer que nunca estive tão animado. Quem diria que morrer era o segredo para finalmente dar uma festa que preste? Vamos aos destaques do cardápio? — Ele falava e apontava para a grande mesa. — O bolo foi feito com ossos moídos, muito crocante, nutritivo e cheio de cálcio. Cada fatia vem com um brinde exclusivo, o sussurro de um morto aleatório. É tipo o brinde do kinder ovo, mas com mais trauma. Já os brigadeiros...ah, esses são especiais. Você morde e, ou sai um verme, ou uma lembrança horrível da sua infância. Eu experimentei três e agora sei que minha mãe realmente preferia meu irmão.

A plateia gargalhava com cada comentário que ele fazia sobre o cardápio.

— A lembrancinha da noite? Uma caixa com um coração ainda pulsando, mas relaxem, ninguém sabe de quem é, mas pode ser seu, pode ser meu. A decoração também merece aplausos, vocês não acham? Velas que derretem como pele liquefeita, e não em cera. Sustentável? Sim, vegano? Nem tanto, mas quem liga, não é?

Mais gargalhadas histéricas.

— Balões feitos de pulmões inflados, se estourarem perto de você, considere-se beijado pelo além. E a música, claro, vem de uma vitrola amaldiçoada que em vez de melodias, toca risadas de crianças desaparecidas, muito mais autêntico que sertanejo universitário, vocês concordam?

E mais gargalhadas histéricas.

— Agora, o ponto alto, temos escritores fantasmas que escrevem melhor mortos do que quando estavam vivos, vampiros bêbados de sangue ralo batizado com água benta, sim, isso mesmo que vocês ouviram, porque sangue fresco já virou mainstream e leitores que entraram no castelo e nunca mais saíram. Ah, e eu, claro, seu anfitrião preferido ou não, que não pode ser expulso, afinal, eu fui enterrado aqui.

A plateia morria de rir.

— E o Castelo, esse grande sacana, adora brincar de mestre de cerimônias, ele tranca as portas, sopra brisas geladas e sempre me lembra: “Mais um ano está chegando, prepare o ritual.” E eu respondo: “Pode vir, Castelo, só não esqueça do open bar.” E o mais incrível é que a festa nunca acaba. A cada vez que você pensa que terminou, alguém novo chega e tudo recomeça. É como um Natal em família, só que divertido.

Mais e mais risadas.

— Por isso eu digo, com toda a certeza de um cadáver satisfeito: Este é o melhor velório que já existiu, porque, afinal, não se pode matar o que já está morto e agora, vamos brindar de novo. — gritou o defunto. — Quem tiver cálice, levante, quem não tiver, pode usar o crânio do vizinho. Moléstia eterna!

A multidão explodiu em aplausos e risadas histéricas, outros levantaram seus cálices e seus crânios. Então, como sempre, a festa recomeçou. A primeira convidada entrou, perplexa, reparando nas decorações bizarras, e todos aplaudiram como se fosse a atração principal e eu, com meu cálice de vinho que tinha gosto de sangue ralo, levantei-me para brindar:

— Um brinde à eternidade da festa, porque não se pode matar o que já está morto.

Todos riram de forma histérica, insana, até que o bolo voltasse a ser cortado e os murmúrios dos mortos se repetissem, como no primeiro dia, pois era, afinal, o melhor velório que nunca terminou.


Escrito por:
Valesca Afrodite

Valesca nasceu no Rio de Janeiro (RJ), formada em Ciências Biológicas, encontra-se no último período. Tem paixão por ciências, subcultura gótica, livros, seres sobrenaturais, ficção científica, cemitérios, igrejas e morcegos, ela também é voluntária em um projeto de divulgação científica chamado "Morcegos na Praça". Escrevia com frequência, mas afastou-se da prática ao... » leia mais
19ª Edição: Revista Castelo Drácula®
Esta obra foi publicada e registrada na 19ª Edição da Revista Castelo Drácula®, datada de outubro de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula®. Todos os direitos reservados ©. » Visite a Edição completa

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