Memento Mori
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
A existência era gélida, angustiante, e drenava suas forças. Ela já havia passado, há muitos e muitos anos, pela excitação do novo, das descobertas e experiências intangíveis. Não tinha mais curiosidade sobre o que viria a seguir, a noite não era mais a mesma e as pessoas eram cada vez piores e repulsivas**. Naquela noite, em específico,** até o mar, a única coisa que parecia acalentar sua alma, estava agitado demais.
— Minha alma! — disse em voz alta, sorrindo. Há quanto tempo não devia ter uma? Deve ter nascido com uma alma bem ferrada, afinal, para ter se fodido tanto em tão pouco tempo de vida. E não bastasse isso, as inúmeras sequências de escolhas erradas que fez ao longo dos muitos anos, dariam vários capítulos em um livro maldito.
Bom, o fato era que ela preferia o mar em seu estado calmo, por mais incoerente que isso possa soar, sabendo de toda sua imensidão, movimento, energia e seres de todos os tipos que o habitavam, dos microscópicos aos grandes leviatãs. Ainda assim, contemplar a água se movimentando levemente trazia um pouco de paz e conforto ao seu interior, sempre à beira da explosão.
O vento batia frio e úmido em sua pele, e trazia um pouco de areia e o cheiro de que tanto gostava. O céu estava estrelado e via, ao longe, pequenos pontos de luz amarelada de barcos pesqueiros. Olhou para baixo e observou uma embarcação passando sob a ponte que ligava a ilha à cidade — provavelmente seu lugar favorito no mundo. Ela pareceu esboçar um pequeno sorriso no canto de sua boca, mas logo pensou em Maria.
— Puta que pariu, Maria, você tinha que foder tudo! Não é possível que me deixou sozinha nessa merda de universo. — Seu hábito de falar sozinha e ter intensas discussões consigo mesma parecia só piorar. Quem convive muito tempo com a solidão acaba desenvolvendo certas habilidades adaptativas que podem ser muito interessantes. Há alguns anos, ela sentia que estava vivendo a melhor fase de sua existência, algo parecido com uma nova vida. Não estava mais sozinha, havia conhecido Maria e ela mudou seus dias. Toda perseguição, medo, fome, solidão, pareciam ter entrado em modo de stand by. Se conheceram bem ali, onde estava naquele momento, sobre aquele mar e sob aquele céu escuro e estrelado. Maria a viu de longe, parada em cima do parapeito, imóvel e com os braços abertos, parecendo um anjo prestes a cair.
— Ei, o que você está fazendo aí? Posso te ajudar? — Sem resposta, continuou: — Meu nome é Maria, estava dirigindo e vi você. Por favor, desce daí e vamos conversar!
Com um leve rotacionar da cabeça, Maria viu seus olhos pela primeira vez, verdes como esmeraldas, contrastando com sua pele clara e cabelos pretos.
— Posso me aproximar? Entendi que não vai conversar comigo agora, né? Só quero ajudar! Você é linda, está uma noite linda, mas muito fria... — Maria se aproximava lentamente enquanto conversava, quase sem respirar, tinha medo de que ela saltasse dali. Não passava carro algum naquele instante, não havia vento e o mar parecia estático, sem ondas ou som. Ao se aproximar, a uma distância de menos de um braço do parapeito, a mulher ofereceu a mão àquela alma triste e solitária — e ela aceitou. Quando as duas já pisavam sobre o meio-fio, Maria respirou pela primeira vez e percebeu sua taquicardia, respiração acelerada e suor frio.
— Daniela... meu nome é Daniela. — Ela mal abriu a boca para falar, parecia estar em outro lugar, outra dimensão, em outro corpo.
— Oi, Daniela, posso te dar um abraço? — Maria falava com o olhar fixo nos olhos verdes, marcantes e que pareciam contar tanta coisa. Enquanto se aproximava, uma pergunta ficava em sua mente: como uma criança pode ter um olhar que carrega tanto peso?
A garota aparentava ter seus sete ou oito anos de idade, muito bonita, com cabelos pretos caídos na altura dos ombros, porém, um rosto bastante abatido e aparentando preocupações e o peso comum aos adultos. Caminhava como se estivesse dopada, na verdade, fora conduzida por Maria e colocada no carro, no assento do passageiro.
— Daniela, você consegue me dizer onde estão seus pais ou qual o telefone deles? — A menina se manteve calada.
— Eu quero ajudar você, mas não sei por onde começar. Se você quiser ligar para eles ou amigos, ou algum parente, pode usar meu telefone.
— Não tenho ninguém, não tem mais ninguém, sou só eu.
Ao dizer isso, lágrimas escorreram de seus olhos e, instintivamente, a mulher lhe deu um abraço apertado.
— Você tem algum documento? — A menina fez uma negativa com a cabeça. — Então, vamos fazer uma coisa, vou com você à delegacia e tudo vai ser resolvi... — antes que Maria terminasse a frase, a menina arregalou os olhos, dilatou as pupilas, segurou com força o braço da mulher e gritou:
— Não é pra gente ir pra polícia nenhuma, eu não posso ir à polícia! Pra polícia eu tô morta! Se a gente for até lá e eles ficarem sabendo, vão me matar e vão matar você também!
— Calma, Daniela, não tô entendendo nada! Quem vai matar? Como assim você está “morta” pra polícia?
Naquela noite, a vida de Maria mudou. Aos poucos foi entendendo que Daniela não podia andar à luz do dia para não sofrer uma combustão; descobriu que a garota não comia frutas ou biscoitos, mas precisava caçar todas as noites, desde ratos até humanos, pois se alimentava de sangue — sangue esse que fluía nas veias de Maria e que esta não entendia o porquê de a garota não atacá-la; passou também a ser perseguida por um bando de criaturas com dentes caninos enormes, que pareciam voar durante a noite e as caçavam como bestas, sem descanso. A menina parecia ser tratada como algum tipo de oferenda necessária a um ritual cabalístico ferrado que precisava ser feito para que o mundo não acabasse — bem do tipo filme “B”, mas tudo na vida de Maria, naquela época, parecia um filme B. Maria demorou a digerir a ideia, mas entendeu e aceitou que aquela menina era um vampiro. E descobriu também que, naquele dia, na ponte, a menina pretendia se jogar, ela já não aguentava mais sua existência e solidão.
De início, a mulher não compreendia como poderia ser ruim, viver para sempre, poder viajar o mundo, não ser afetada por doenças, fazer, literalmente, o que tivesse vontade. Era tudo o que ela queria — mandar seu chefe ir se foder, bater à porta do escritório de merda onde trabalhava, largar o puto de seu namorado que vivia comendo outras enquanto ela o esperava com a mesa posta e ir embora. Matar vários filhos da puta, viver a luxúria até não aguentar mais, ser perene e atravessar as eras. Caralho, isso seria incrível, era a vida perfeita. Porém, aí que estava o problema: para Daniela não era perfeito, porque não era vida. Era viver escondido, só, atravessando o tempo em uma existência angustiante, vendo e sentindo as dores do mundo. E, em seu caso, presa em um corpo que não acompanhava sua mente — uma mulher, com mais de 100 anos, com corpo e feições de menina, que fora transformada à força, sem romantismos ou poesia envolvidos. Maria não conseguiria, mesmo que quisesse, compreender sua dor, porém tentou acolher da melhor forma que pôde.
Começaram a partir dali, um novo capítulo em suas existências, firmando uma espécie de pacto silencioso que tinha como objetivo, ressignificar seu tempo na Terra. Pode soar muito pretencioso — e era —, mas era o que fazia mais sentido para as duas naquele momento. Juntas, viajaram pelo mundo, observaram o céu noturno de diferentes locais, quase morreram por vezes a fio, leram, ouviram as mais variadas canções e discografias, amavam o cinema e artes em geral, aprenderam diferentes idiomas e caçavam em par. Na verdade, Maria acompanhava e ajudava Daniela na caçada — sabia seduzir muito bem as presas e deixá-las entregues à predadora criança. E isso a excitava bastante. Entretanto, nunca Daniela cogitou matar sua companheira ou condená-la à vida eterna. Estabeleceram uma relação de amizade muito forte, em alguns momentos, eram mãe e filha, em outros, mãe e mãe e, em vários, filha e filha, mas sempre, cúmplices da existência.
Um dia, de repente, como todas as mudanças de rota que a vida pode tomar, Maria foi embora e Daniela nunca mais a viu ou teve notícias. Nos primeiros dias ainda ouvia seu coração bater, um som fraco perdido no tempo, e isso servia de combustível para manter suas buscas. Procurava por Maria em todos os locais que frequentavam, nos bares e restaurantes, nas casas de show e de swing, hospitais, delegacias. Invadiu, inclusive, os covis de bestas ancestrais que as perseguiram por anos... e nada. Em alguns momentos e, em alguns momentos, e locais, o som do coração de sua amada parecia ficar mais forte e isso despertava em si um mecanismo de alerta feral, mas nada se concretizava. A criança se tornara quase uma lenda urbana; por onde passava, o número de assassinatos aumentava, as gangues ficavam vorazes e em modo de vigília, e as notícias sobre um psicopata ou serial killer se espalhavam. Ela se tornara o que a perseguia: uma criatura predadora, fria e monstruosa, que matava por matar e destruía por mais puro instinto. Não tinha sede por sangue, mas por aplacar sua dor e encontrar respostas, encontrar Maria. Talvez porque ela representasse sua tentativa de redenção no universo, não sabia mais dizer. Acima de tudo, a procura por sua companheira havia se tornado algo autodestrutivo; ela não se alimentava, não dormia, apenas matava, procurava, vigiava e não sentia. Não sentia mais nada, por nada ou ninguém. Desde que fora condenada à vida eterna, Daniela já não se sentia mais viva. Porém, agora percebia que a morte real a espreitava como um abutre e era dilacerada, todos os dias, por um punhal agudo que a estripava repetidamente.
Uma noite, ao acordar após exaustão extrema, ela parou de ouvir e sentir o coração de Maria. Não sabia se um dos vampiros a matara, se fora atropelada, ou o que acontecera, mas nunca mais a viu. Preferia crer em uma fatalidade como assassinato, acidente, sequestro... era menos dolorido do que encarar que a companheira a deixara, simplesmente, por não querer mais sua companhia. Pensava que Maria já não aguentava mais olhar seu rosto de boneca maldita, ou ouvir seu choro e lamentos noturnos, ou quem sabe, sentia vontade de ter uma vida comum, caminhar ao sol, amar alguém normal. Nenhum dos outros motivos mais pertinentes tinha tanto peso para Daniela quanto esses. E isso doía. Em algum momento, ela já havia lido em novelas chorosas vampirescas ou visto em filmes, vampiros chorando sangue. Era tudo uma bobagem romantizada, mas no dia em que Maria foi embora, ela acreditou ser verdade, pois perdera ali seu fluido vital.
E, naquele momento, do alto da ponte onde estivera na noite que conheceu Maria, o céu estava bonito e estrelado. Não havia visto uma noite tão perfeita em sua existência centenária, a Via Láctea parecia ter sido pintada para sua apreciação. Seu rosto era acarinhado por uma brisa leve e fresca, com o cheiro do mar que tanto gostava.
E o mar? O mar estava agitado, intenso, com ondas violentas estourando nas pedras, pronto para receber o corpo de Daniela, que , por dentro, estava calmo. Não sabia se tinha uma alma outra vez, mas se tivesse, devia tudo a Maria. Ao pensar nisso, pouco antes de ser abraçada pelo mar que tanto amava, a menina sorriu.
Luiz E. Tassini
Luiz Tassini é mineiro, de Belo Horizonte, mas mora em São Paulo. É apaixonado por horror, suspense e sci fi. Já escreveu de poemas a crônicas, foi colunista em blogs e, atualmente, se aventura nos contos. Participou de diversas antologias, em diferentes editoras. Produz conteúdo sobre Horror no @eitaquehorror, no Instagram. Trabalha também com revisão, preparação e revisão de textos, tradução e leitura crítica. É pai de dois meninos, uma gata, uma cachorra, é marido e veterinário. » leia mais...
19ª Edição: Revista Castelo Drácula®
Esta obra foi publicada e registrada na 19ª Edição da Revista Castelo Drácula®, datada de outubro de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula®. Todos os direitos reservados ©. » Visite a Edição completa
                        
            
  
  
    
    
    
  
  
    
    
    
  
  
    
    
    
Caríssimo Dom Søren. No meu coração reside uma profundeza triste que, como uma tenra maré, movimenta-se em ondas frígidas sobre a areia…