Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Caríssimo Dom Søren. No meu coração reside uma profundeza triste que, como uma tenra maré, movimenta-se em ondas frígidas sobre a areia mísera de meus sentimentos vazios. Queria escrever-te há tempos, todavia, ensandecidos momentos aconteceram comigo, de modo a levarem minha ausência existencial a uma encruzilhada perigosa. Jamais imaginei que teria de decidir entre a vida e a morte, sem propriamente viver e sem propriamente morrer.

Meu bem, esta é a última carta que te escrevo. Há cerca de sete meses, tive o prazer de sentir descomedida paixão pelos teus olhos, teu cuidado, tua inteligência. Vi-te observando as antiguidades da vitrine que adornei com tanto apreço. Chovia como agora em meus olhos melancólicos, lembra-te? A belíssima Endinsür, tomada pelas águas, intensificando a beleza vitoriana das torres. Tão fascinante quanto a tua presença.

Eu escrevia, entretanto, tua sombra fez-me notar o teu atento admirar e fitei-te até que teus olhos intuitivos sentissem minha curiosidade. Tua íris tocou a minha como se um beijo aos lábios tu me deste. Por instinto, desviei o olhar e decerto que tal atitude instigou o teu desejo. Entraste à loja, vindo direto a mim, imperante e belo. “Bom entardecer, senhorita” — dissera. Toquei o livro do balcão para evidenciar minha solidão pela ausência de um belo anel de compromisso. Teu sorriso nascera e era poderoso, fez-me tua sem que soubesses.

“Intriga-me este lugar... estes objetos... intriga-me também o teu belo semblante e, se me permites dizer, os teus lábios...” — proferira como um poema sussurrado. Sorri-te em recíproco, apenas porque não poderia dizer-te nada à altura. Queria ter revelado que os artefatos possuíam beleza sombria, todos encontrados em ruínas inexploradas de Morttan, trazidos por meu pai, marinheiro obscuro de Krvieröm. Hesitei, no entanto, receando que me julgasses atormentada — no cerne, amado, eu de fato sou. “São relíquias anônimas, de outroras ou porvires” — disse-te, n’um elogio ao mistério. “A mais fascinante relíquia é, decerto, a que observo n’este instante...” — afirmara. Mergulhei em ti, ouvindo sobre teus estudos sobre artefatos do passado, sobre teu amor por antiguidades; amei tua voz e soube, n’esta tão primeva prosa, que eu o amaria eternamente. D’aquele instante até o momento em que toquei a maldição, fui verdadeiramente feliz.

Se trago ao presente tal memória, é porque a revivo em nome d’esta descomedida paixão — mantém-me ainda esperançosa, se é que posso nomear de tal forma esta brasa tardia que me arde enquanto cultivo a desolação. Quatro meses após nosso vínculo inicial, n’uma noite solitária, um dia antes do meu aniversário, fui instigada a perscrutar uma caixa de relíquias trazidas pelo Marhero Larsen, em nome do meu falecido pai. “São pertences do capitão” — proferira. Sua voz era intensa, seu olhar de mil jardas. O tanto que presenciara em suas navegações, decerto que jamais poderá um dia ser revelado. Agradeci-lhe pelo gesto de consideração, fora o único presente para aquela data tão importante. Pouco depois de sua partida, uma música melancólica germinou no interior daquela caixa assim que, por descuido, a deixei cair quando tentava guardá-la em um alto armazenamento.

Era uma profunda elegia, lenta e sorumbática. O som ficava cada vez mais alto conforme eu me dedicava a libertá-lo. Entre muitos itens já enferrujados, logo vi a caixinha de ferro fundido, perfeitamente esculpida, forrada em veludo laranja, ornada de arabescos e detalhada em folhagens secas. Um pássaro de ouro, com seu cântico triste, girava devagar enquanto suas asas mecânicas movimentavam-se sutis, como se ele pudesse realmente voar. A princípio, sua beleza fascinou-me como jamais outro artefato fizera. Em seguida, segurando-o em minhas mãos e fitando o seu girar contínuo enquanto ouvia a elegia infeliz, lembrei-me da morte de meu pai e, então, sorri.

A alegria emergiu de um abismo de saudade que, de súbito, já não mais existia. Todo o desgosto pela morte de meu amado pai, e de seu corpo jamais encontrado, fora apagado em um átimo de segundo. Fui envolvida por todo o amor que por ele senti, tornando poeira quaisquer angústias existidas um dia entre nós. Amado Søren, o artefato mágico era inominável! Capaz de extinguir os males de nossa alma, dissipando o sofrimento tal como o vento impiedoso faz com as frágeis flores dos ipês. Como eu poderia resistir ao seu cativante poder? Ninguém no mundo humano, meu querido, almeja o tormento da angústia — muito menos se contenta com o peso da desgraça do passado.

Diante de tamanha descoberta, atraí à memória toda a consternação que pude, remoendo o pretérito, rastreando as lágrimas, perseguindo, com horrífica negligência, quaisquer pequenas lembranças condoídas, construídas sobre o fundamento do abatimento, da infelicidade. E um estímulo intenso de liberdade e prazer me acometia assim que eu as encontrava em minha mente, revivendo, pela última vez, o abatimento que possuíam. Era êxtase, arrepiando minha tez, ascendendo em meu cerne um radiante deleite, um regozijo pulsante, um contentamento perturbador em razão da sua força descomedida. Era perverso — agora posso dizer.

Desde então, busquei o artefato sempre que tenros desagrados me ocorriam, seduzida pela felicidade perpétua. Cativada pelo deleite exorbitante das doses violentas de alegria, almejei mais tristes vivências. Quis que os piores males me acometessem para que mais ledice me fosse dada por aquela mórbida elegia. Ouvia, em tempo integral, o cantar lastimoso do pássaro de ouro e, mesmo quando selava o artefato, para adormecer em silêncio, sua melodia ecoava em meus sonhos, afastando pesadelos cruéis. Eu estava, mais do que enfeitiçada, imersa em profunda dependência — adoecida pelo fanatismo absoluto. Por isso, meu querido, não mais te escrevi e tampouco respondi às tuas cartas — fiquei, no âmago profundo, feliz por teres viajado a Sihren, assim não encontrei mais contigo e não realizei a maldade mais terrífica que viera à minha mente.

Por diversas vezes pensei em tirar a tua vida, meu amado. Pois tanto que me alegrava a tua existência! Ver-te ensanguentado em minhas mãos, enterrar-te n’uma lôbrega manhã e, então, ser julgada. Tais horrores causariam, decerto, a mais afrodisíaca alegria ao serem destruídos pelo pássaro da elegia. Se ouso dizer, — com o respeito que mereces, entretanto, com a sinceridade que é preciso para que compreendas — eu buscava o clímax da exultação, o frenesi mais desumano da euforia. Isso só poderia ser possível mediante o sofrimento mais pernicioso — e meditei por dias em como causar a mim mesma o martírio mais medonho de toda a minha existência. Eu pensei tantos horrores... sinto repulsa do que pensei, sinto-me frágil, um boneco ventríloquo já descartado. Como pude não perceber que aquele raro item poderia possuir uma verdade amarga em sua delicadeza?

N’aquela quente manhã, entretanto, ao despertar de uma noite sem sonhos. Não pude lembrar-me de nada além de ti, do pássaro e de meu pai. Todas as minhas memórias foram assassinadas sem que eu pudesse notar. Até mesmo a vitrine, agora degradada em poeira, não me era reconhecível — eu não sabia a razão de sua existência e o porquê ela pertencia a mim. Até mesmo Endinsür, minha amável pólis, parecia-me fantasma às minhas mais tenras recordações. Tudo se fora, adentrei a mais profunda melancolia e dor, uma angústia real e quase tangível — meu impulso primevo foi abrir a caixa da elegia para me libertar daquele horror e sentir o prazer qual eu estava obcecada. Todavia, a tua carta me salvara antes do que acredito que seria o ato final do macabro teatro da minha decadência.

Cultivando amor por ti, antes de ouvir o pássaro de ouro, recebi tua carta no instante precedente. Tirou-me do transe execrável e decidi lê-la primeiro — impulsiva, apenas deixei o artefato e segurei suas palavras em minhas mãos. “Adorável Marina, talvez teu silêncio represente teu desinteresse em mim... mesmo assim, devo dizer-te que as lembranças agradáveis dos teus olhos, das conversas amenas e das poesias que me escreveste, ainda que me doam mediante a infelicidade profunda de não ter o teu amor, serão, pois, as mais preciosas lembranças da minha vida...” — escreveste.

Choro, amor, e escrevo-te porque compreendi. Perdi tudo o que lembrava, cada partícula da minha história, porque todas as tristes lembranças se vinculavam às felizes, n’um ciclo natural de vida. Lembrava-me, ainda, de meu pai, pois, a caixa viera dele; lembrava-me de ti, pois, nenhum mal nos acometera n’estes tempos; lembrava-me do pássaro, pois sua elegia era perfeita, sinônimo do mais sublime enlevo. Nada mais, nada além. Portanto, tive em mãos a decisão de esquecer a caixa que, afinal, trouxe-me a mais triste angústia e agonia: perder minhas memórias, esquecer-me de quem sou. Este seria o fim, abri-la pela última vez e esquecê-la para sempre.

Segurei a relíquia amaldiçoada em minhas mãos trêmulas. Era o momento final, o último prazer exorbitante. Entretanto, eu não tive coragem. Temi, embora almejasse o deleite que apenas ela me proporcionava. Questionei no instante se, ao esquecê-la, olvidaria também a sua maldição, caindo outra vez em seus encantos cruéis. Questionei se não devia, na verdade, destruí-la — e esta última, meu amor, foi a minha decisão final. Com abstinência do júbilo que ela me proporcionava, entretanto ainda sã, coloquei-a no chão e, com um machado de jardim, acertei-a no centro, mediante uma força que viera do vazio abissal do oblívio. Doeu-me tanto... era tão perfeita...

O objeto se destruiu de imediato e sua elegia não tocou. Porém, no súbito momento, uma surpresa malévola atravessou meu crânio, como uma luz feita de breu, em paradoxo, penetrando minha fronte — confirmara o que a intuição já sabia: o artefato tinha uma maldade ainda maior por detrás da sua benevolência em acabar com a infelicidade de seus ouvintes. Sob a crença de que, finalmente, eu estaria livre; fui acometida por todas as lembranças amarguradas de outrora — não apenas minhas, mas de todos aqueles que um dia ouviram o pássaro.

Vi horrores inomináveis como se causados por mim, mortes e assassinatos. Estive em tragédias terríveis e fui íntima do mais abominável e repugnante. Eu jamais imaginei que as lembranças voltariam, que o pássaro as guardava em seu âmago, como um totem da desgraça. Senti as dores de incontáveis estranhos, os vi definharem em nome daquela maldição e, dentre tantos desconhecidos, havia meu pai — senti sua amargura e o vi se atirar ao mar quando sua última lembrança se foi. Perturbado pelo vazio, com o pássaro de ouro como única recordação, ele optou pela morte em um ato de apavorante desespero. Saber daquilo me despedaçou tanto... e eu gritei em prostração por todo aquele infortúnio, na expectativa de que fosse apenas um pesadelo.

Querido Søren, não posso compartilhar a vida contigo, pois agora ela é feita tão somente de tristeza eterna. Sinto-me uma tumba, enterrada na dor. Não há mais lume em meus olhos, tampouco beleza em meu sorriso. Estou aos pés da angústia, ajoelhada, refém da desolação. Tu mereces uma mulher alegre, que não tenha vivido perversões de origem infernal e traumas que sequer a pertencem. Sei o quão difícil deve ser acreditar em mim... não te culpo, meu Dom, não te exijo. Agradeço por todo o teu cuidado e amor; sou grata, em especial, às palavras da tua última carta — que me salvaram da minha loucura. Amo-te com o que me resta de vivacidade... levarei este amor comigo.

Peço-te que jamais acredite na indulgência de um artefato misterioso e rogo por teu perdão. Estou juntando os fragmentos d’este pássaro... aguardo pela coragem, vinda no vento, ordenada pela violência da maré. Eu levarei comigo essa maldição. A insuportável dor d’estas tantas pessoas... as imagens horrendas em meu cérebro... a dor aguda, o medo constante... tudo terá um fim, amor, quando estiver afogado no índigo oceano.


Escrito por:
Sahra Melihssa

Poeta, Escritora e Sonurista, formada em Psicologia Fenomenológica Existencial e autora dos livros “Sonetos Múrmuros” e “Sete Abismos”. Sahra Melihssa é a Anfitriã do projeto Castelo Drácula e sua literatura é intensa, obscura, sensual e lírica. De estilo clássico, vocábulo ornamental e lapidado, beleza literária lânguida e essência núrida, a poeta dedica-se à escrita há mais de 20 anos. N’alcova de seu erotismo, explora o frenesi da dor e do prazer, do amor e da melancolia; envolvendo seus leitores em um imersivo, e por vezes sombrio, deleite. No túmulo da sua literatura macabra, a autora entrelaça o terror, horror e mistério com o belo, o fantástico, o científico e o botânico. » leia mais
19ª Edição: Revista Castelo Drácula®
Esta obra foi publicada e registrada na 19ª Edição da Revista Castelo Drácula®, datada de outubro de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula®. Todos os direitos reservados ©. » Visite a Edição completa

Leituras recomendadas para você:
Sahra Melihssa

Poeta, Escritora e Sonurista, formada em Psicologia Fenomenológica-Existencial e autora dos livros “Sonetos Múrmuros” e “Sete Abismos”. Sahra Melihssa é a Anfitriã do projeto Castelo Drácula e sua literatura é intensa, obscura, sensual e lírica. De estilo clássico, vocábulo ornamental e lapidado, beleza literária lânguida e de essência núrida, a poeta dedica-se à escrita há mais de 20 anos. N’alcova de seu erotismo, explora o frenesi da dor e do prazer, do amor e da melancolia; envolvendo seus leitores em um imersivo, e por vezes sombrio, deleite. A sua arte é o seu pertencente recôndito e, nele, a autora se permite inebriar-se em sua própria, e única, literatura.

Anterior
Anterior

9 - Toda dádiva reclama seu tributo

Próximo
Próximo

O Velório que Nunca Acaba