Castelo Vampírico: Não se ponha o sol sobre a vossa ira

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Diário de Rute Fasano

31 de dezembro? — Antes que começasse a me ensinar algo, a criança de cabelos escuros veio até mim com um tecido de algodão e um vidro âmbar com um líquido que, pelo cheiro, parecia ser álcool. Limpou a ferida no meu antebraço e o enrolou com cuidado com outro tecido de algodão, dando pequenos nós em suas pontas. Após todo esse procedimento, ela colocou suas pequenas mãos nas minhas, me fazendo sentir uma onda quente e reconfortante que me envolveu. Senti como se meu corpo vibrasse, como se as minhas moléculas estivessem vibrando e aquecendo. Um súbito medo tomou conta de mim. Fechei os olhos e senti como se meu corpo encolhesse e se tornasse leve. Abri os olhos e estava na altura da menina de cabelos negros. Eu havia me transformado em uma criança outra vez, e uma felicidade parecia me inundar, tomando o lugar daquele medo inicial.

Logo, outra criança, com uma sombra um pouco maior do que a da menina de cabelos escuros, veio até mim. Segurou minhas mãos sorrindo, e a mesma sensação de calor reconfortante me envolveu. Dessa vez, mantive meus olhos abertos. Senti-me crescer e fui preenchida por pensamentos confusos que começavam a me incomodar. Depois, outra criança, com uma sombra grande e curvada, me tocou. Meu corpo pesou e senti um cansaço físico, mas minha mente parecia mais clara. A experiência era ao mesmo tempo fascinante e assustadora, uma montanha-russa física e emocional. Voltei para meu corpo original, um pouco atordoada. As crianças me olhavam com curiosidade, parecendo esperar algum comentário meu sobre a experiência, mas eu estava sem palavras. A menina de cabelos pretos veio até mim sorrindo.

— A transmutação não é apenas física. Ela envolve a essência, a percepção e o controle do próprio ser no fluxo do tempo. Há aqueles mais aptos que conseguem ir além da transmutação temporal, conseguem se tornar outras versões deles mesmos e até outras pessoas. — disse isso com um sorriso inocente.

Minha mente estava em turbilhão, mas fisicamente eu estava cansada. A menina percebeu isso.

— Agora, como prometido, vou te levar aos seus aposentos. Acho que a aula foi demais para você. — falou isso com preocupação no rosto, parecendo sincera.

— Talvez voltar aos meus aposentos neste momento não seja uma boa ideia. — Eu disse preocupada. Não me sentiria segura lá nesse momento.

Ainda atordoada pela experiência de transmutação, perguntei a ela se haveria um lugar seguro para ficar. Ela confirmou com um aceno de cabeça e caminhou comigo pelo castelo. Enquanto isso, minha mente fervilhava com as novas informações. Caminhamos por entre corredores e subimos várias escadas. Eu acompanhava seus pequenos passos rápidos e ritmados. Ela me levou até uma área do castelo onde havia uma escada em caracol que ia muito mais alto do que eu podia enxergar.

— Suba por essa escada até o fim. Você vai encontrar um observatório e poderá ficar lá por enquanto. Mas aconselho que volte para seus aposentos depois, pois lá é sempre o lugar mais seguro. — disse ela ainda com aquele sorriso infantil estampado no rosto.

Fui subindo aquela escada e refletindo sobre aquele conhecimento, até que a compreensão me atingiu. Drácula, a figura que tanto me causava temor e que às vezes me confundia, aparecera para mim de diversas formas, idades e aparências diferentes durante minha permanência aqui. Ele tinha a capacidade de transmutar, assim como aquelas crianças naquele salão. Lembrei-me do nosso primeiro encontro no corredor, Drácula como um jovem de aparência andrógina e olhos cor de violeta; do nosso encontro na capela, onde ele parecia um Cristo vampírico grotesco; e no baile de máscaras, como um homem de meia-idade imponente que parecia carregar o peso dos séculos em seus olhos profundos. Cada uma dessas suas formas parecia trazer uma presença distinta, uma aura diferente. Agora fazia sentido, Drácula talvez dominasse a transmutação. Ele podia escolher a aparência e a idade conforme sua vontade. Todas aquelas formas eram manifestações do mesmo ser, utilizando a transmutação temporal para se moldar.

Drácula não era apenas um vampiro imortal, ele talvez também fosse um mestre do tempo, com capacidade de navegar pelas eras e se adaptar a qualquer situação. Porém, para confirmar qualquer hipótese que meu cérebro poderia conceber sobre Drácula e seus poderes, eu precisaria de mais conhecimento. Preciso encontrar uma biblioteca, talvez aquela em que tive uma conversa com minha doppelganger no mundo espelho. Talvez essa biblioteca exista nessa versão do castelo também. Uma sala com um computador facilitaria meu trabalho na hora de juntar as informações, mas isso talvez seria pedir demais. Terei que me contentar apenas com papéis e livros. Terei que vencer certos temores também, explorar mais o castelo e sempre me lembrar que estou lidando com um ser que talvez transcenda qualquer limitação e entendimento humano.

Enquanto essas ideias se assentavam em minha mente, cheguei ao observatório. Entrei naquele cômodo, fechando a porta atrás de mim. Havia uma abóbada de vidro que permitia uma visão clara do céu. No centro, um telescópio, um instrumento ao qual estou familiarizada. Sentei-me numa poltrona ao lado de uma mesa cheia de papéis antigos com belas ilustrações de planetas e símbolos astronômicos. Observei o anoitecer enquanto fui tomada novamente por pensamentos que chegavam em turbilhões. Estava me sentindo dividida entre aceitar que Hadassa se foi e essa nova obsessão de trazê-la de volta com o conhecimento que talvez Drácula pudesse ter sobre a morte. Por que devo aceitar? Por que devo desistir? Ainda assim, ouço minha voz interior me advertindo sobre os perigos de se buscar conhecimentos que não compreendo. Tentei me convencer a desistir e aceitar a realidade, mas o que é a realidade se tudo aqui parece uma ilusão tentando se passar por realidade? Fui tomada por uma fúria por não conseguir parar meus pensamentos. Meu corpo tremia, senti minha mente se despedaçar em questionamentos complexos demais.

Anoiteceu totalmente e me deparei com um eclipse total quando olhei para a abóbada de vidro. Levantei-me e decidi investigar os céus, na esperança de encontrar alguma distração. Posicionei-me e comecei a ajustar o telescópio, procurando algo naquele breu, minhas mãos tremiam. Um vento atormentado soprava, fazendo as árvores e as flores mortas do jardim abaixo, mal iluminado por um antigo poste de luz, balançarem de maneira assustadora. Ao longe, pude ouvir o som de ondas quebrando com violência contra as rochas. Fiquei surpresa com isso, pois não sabia da existência de mar tão perto do castelo. A natureza parecia responder de modo violento ao eclipse, como se estivesse compartilhando comigo meu tormento interno.

Minha mente foi assaltada por lembranças rápidas de quando Hadassa e eu observávamos as estrelas juntas, falando da beleza cósmica, a beleza que agora apenas me traz angústia. Lembrei-me dela sempre repetindo: “Somos poeira das estrelas, Rute. Do pó viemos e ao pó voltaremos. Isso é maravilhoso, não é?”. Era mesmo maravilhoso ouvi-la falar disso, mas saber que agora ela talvez não passe de restos do que um dia foi me entristece. De repente, uma sombra cobriu o telescópio. Levantei-me e vi, através da abóbada de vidro, uma figura gigantesca e disforme pairando no céu como um manto escuro salpicado de estrelas. Emanava uma fúria que nem de longe poderia ser comparada à minha. Olhava diretamente para mim com o que pareciam olhos em espirais. Fiquei paralisada de terror. Será que, de alguma forma, essa figura era uma manifestação dos meus sentimentos? Ou apenas um alerta para que eu desista dessa empreitada? Ou algo ao acaso que calhou de eu observar? Não sei. Só sei que as dúvidas, o terror e a ira dentro de mim continuaram. Devo aceitar a morte de Hadassa e deixá-la descansar em paz? Ou devo seguir em frente nessa ideia de que sei ser perigosa e trazê-la de volta?

Fechei meus olhos por um momento, esperando que, assim que eu os abrisse, a figura desaparecesse. E ela desapareceu, mas a sensação de terror permanecia. Deixei o telescópio e me virei para a poltrona, dando alguns passos. Tudo em mim pesava. Minha mente se questionava se Hadassa merecia uma segunda chance ou se eu queria me dar uma segunda chance, não importando o que fosse necessário para isso. Eu me sentia em frangalhos, tonta, com dores pelo corpo; fazia tempo que eu não tinha uma boa noite de sono. Senti algo escorrer pelo meu antebraço e vi que a ferida estava sangrando muito através do tecido. Senti-me fraca. Mal havia chegado à poltrona e apenas me deixei cair na escuridão.

Texto publicado na 8ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de agosto de 2024. → Ler edição completa

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