Um alto preço
Diário de Greta Tsylla, especialista em pesquisa de eventos sobrenaturais
21 de Janeiro de 2000 - Sempre considerei minha existência entrelaçada ao tecido do universo, mais firme do que qualquer mortal ou imortal poderia imaginar - pelo menos assim eu considero. A escuridão não era apenas meu refúgio, mas a minha essência. As sombras que se estendem pela vastidão do universo não eram apenas um manto que me cobria, mas uma extensão de mim mesma. A luz do dia era uma afronta para mim, um lembrete cruel de que minha não-vida estava limitada a esgueirar-se por becos e esgotos. Contudo, havia uma lenda, e mesmo que eu não confie em lendas, já que não passam de histórias atraentes, algumas possuem um fundo de verdade, e meu trabalho é estudar essas verdades e o quanto elas podem ser perigosas para nós criaturas das trevas. Mesmo que seja talvez 1% da verdade, porém nesta lenda em específico eu senti uma pontada de esperança. Imaginei ser algo relacionado aos seguidores de Set, mas não encontrei referências que os ligassem a essa lenda, então continuei.
Em minhas pesquisas, na SchreckNET e bibliotecas empoeiradas, encontrei poucas referências a esse evento muito específico. A noite eterna, que como dizia em um manuscrito deteriorado, libertaria todas as criaturas das trevas do domínio da luz. Onde não haveria mais aurora a temer, apenas a escuridão sobre a face do abismo. E nessa escuridão eu poderia andar pela terra livremente, não mais relegada às sombras dos túneis e esgotos por necessidade, mas por escolha. Nessas minhas pesquisas eu soube também de um artefato, um relicário de um metal estranho e decorados com símbolos que mais pareciam arabescos, linhas entrelaçadas sem início ou fim, esse relicário revelaria se a noite eterna estava prestes a acontecer. Meu ceticismo começou a apitar, mas já havia chegado longe nas pesquisas para voltar atrás depois de tudo, depois de muitas trocas de informações e negociações consegui o tal relicário, com o aviso de que muitos tentaram e não conseguiram e outros ainda desistiram. Mesmo que isso não passasse de uma lenda, pelo menos eu a testaria e chegaria à conclusão de que era mesmo apenas uma história atraente. Os manuscritos que encontrei e os poucos relatos encontrados na SchreckNET, diziam que esse artefato nas mãos certas faria a noite eterna se tornar real. Eu estava ansiosa, pois sabia que poderia ser o momento, que sem saber, eu aguardei por séculos. Mas tudo parecia fácil demais, sem rituais, sem cânticos, sem palavras em línguas estranhas ou mortas.
Me instalei em um túnel ferroviário abandonado, onde o silêncio era acolhedor e todas as noites de eclipse por oito anos eu esperei a noite eterna, havia combinado comigo mesma que só esperaria por dez anos e depois desistiria dessa ideia. Neste período vivendo entre túneis e cemitérios, minha solidão foi amenizada pela presença de Amanita, uma gata rajada que se afeiçoou a mim e me trazia “presentes” toda a noite para me alimentar. Depois de um tempo ela deu à luz a Cortinarius, Lepiota e Russula, e minha solidão planejada e meu silêncio acolhedor teve fim. Numa noite de eclipse, me retirei para o centro de um antigo cemitério acompanhada dos quatro felinos, como tinha feito por oito anos. Sentei-me perto de um túmulo e esperei, a escuridão ao meu redor se tornou densa. Me levantei e segurei o relicário em minhas mãos, sabendo que se fosse o momento ele me diria.
A lua cheia iluminava o céu, enquanto eu olhava o eclipse lunar começava a se desenrolar. A sombra da Terra lentamente cobrindo a lua, a tingindo de vermelho e mergulhando tudo em trevas. O ar parecia parar como se a própria noite estivesse prendendo a respiração. Respirei fundo, ou pelo menos fiz o gesto, pois há muito séculos o ar não me era necessário. Eu estava focada, me sentindo em sintonia com o universo. Então devagar abri o relicário, dentro dele havia um pequeno espelho, cuja superfície não refletia, mas absorvia luz. Olhei para ele e, por um momento, nada aconteceu. Até que um brilho fraco começou a emanar do espelho, crescendo em intensidade. Ah! Até que enfim, murmurei aliviada. As sombras começaram a se movimentar ao redor de mim, imitando cada movimento meu. A sensação era inebriante, algo que eu nunca havia experimentado antes. As sombras moldavam-se e dançavam ao meu redor. Era como se as trevas me reconhecessem como sua soberana. Eu sentia como se pudesse moldar a escuridão, moldar o mundo à minha vontade, trazer ao mundo a noite eterna e libertar todas as criaturas das trevas. Me sentia confortável com todo aquele poder, todo aquele conhecimento borbulhando no meu cérebro, toda aquela escuridão fazendo parte de mim e eu dela.
Mas conforme todo esse poder crescia, algo começava a mudar. As sombras se tornaram mais densas, quase sufocantes. A escuridão que anteriormente parecia ser uma comigo, agora era uma prisão. Uma dor lancinante começou a percorrer meu corpo como se injetasse um líquido corrosivo em minhas veias. As sombras haviam ficado fora de controle, me envolviam com força, me apertando, esmagando. O poder que me acolheu estava me consumindo. Gritei, tentando recuperar o controle, mas parecia um esforço inútil. Tentei lutar contra aquilo e por um breve momento pude sentir como se a escuridão que me apertava estivesse me dando oportunidade de pensar se eu queria continuar com aquela tortura. Com esforço abri minha mão esquerda e consegui soltar o relicário que caiu no chão. As sombras ao meu redor se dissiparam de repente, e eu me encontrei deitada na terra úmida e recém mexida daquele cemitério, o poder e o todo aquele conhecimento perdido e minha esperança destroçada.
A noite começou a dar lugar ao amanhecer, e mais uma vez, eu estava condenada a esgueirar-se pelas sombras dos becos escuros. A frustração era intensa, uma dor profunda tomava conta da minha alma. Eu havia vislumbrado todo um conhecimento, vislumbrado o que poderia ser e, ao mesmo tempo, percebi que o preço a pagar pela noite eterna seria a minha própria destruição. Voltei aos túneis levando comigo o relicário como um lembrete de que eu deveria cuidar melhor da minha não-vida. Caminhei pelos becos, agora mais consciente do que nunca, de que os lugares úmidos e escuros eram meu lar, que eu não deveria entender isso como uma maldição, mas como um limite que eu apenas deveria respeitar. Me instalei em uma casa abandonada num bairro pouco movimentado e levei comigo Amanita, Cortinarius, Lepiota e Russula. E retornei as pesquisas de outras lendas ou qualquer evento sobrenatural que merecesse atenção. E foi assim que rejeitei a façanha de me tornar a salvadora, aquela que libertaria o povo que é obrigado a andar em trevas, para usufruir da noite eterna. Não achei nenhum ser das trevas merecedor de tal bênção, já que pagaria com a minha não-vida, um preço muito alto a se pagar. E eu não poderia fazer isso tendo agora pequenas vidas para cuidar.
As sombras eram solecismos factuais; um ruído medrava-se horrífico. Algo físico entre nós inibia-nos, impedindo quaisquer aproximações; uma divisão vítrea, perceptível…