Diário de Anton S. Miahi IV

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Diário de Anton S. Miahi IV
(Escrito no Castelo)

26 de junho —Ainda tenho essa lembrança. Pareceu-me que haviam se passado horas desde que fui barrado em Séttimor. Ioam era uma figura imponente, sua altura e braços longos contrastavam com suas mãos ossudas e frias, que pareciam esculpidas na pedra. Apesar da sua aparência pálida e gelada, havia uma força oculta em seu corpo. Seu rosto disforme, com olhos profundos e insondáveis como os de um cadáver, brilhava com íris vermelha, a cor incandescente das brasas de uma fogueira antiga. Cada vez que ele falava, uma fumaça escura e espessa escapava de seus lábios, como se suas palavras fossem substâncias tóxicas. Sua pele, escurecida e marcada por uma deterioração que eu ainda não compreendia, parecia se desintegrar sob a luz tênue. Ele vestia roupas tão desgastadas e rotas quanto os trapos de um espectro, reminiscências de um passado longínquo.

Após a visão de Ioam, um som grave e profundo começou a ressoar ao meu redor, ecoando com a intensidade dos disparos de canhões franceses, mas muito mais ensurdecedor. O estrondo parecia vibrar nas minhas entranhas, e eu não pude evitar levar as mãos aos ouvidos na tentativa desesperada de abafar o barulho.

Ergui os olhos para o céu, e percebi que o firmamento estava em transformação. As estrelas, antes brilhando em uma disposição familiar, agora pareciam se afastar umas das outras, ou talvez fossem movidas por alguma força invisível. O silêncio que se seguiu era pesado e opressivo, interrompido apenas pelo açoite do vento que sussurrava através das árvores com um som cortante e sinistro. Os uivos que antes preenchiam o espaço haviam cessado abruptamente, deixando uma sensação de vazio angustiante que se alojou no fundo do meu peito.

Quando finalmente consegui focar meus olhos, o céu revelou um panorama disforme. As estrelas, uma vez conhecidas e tranquilizadoras, agora se assemelhavam a olhos, incontáveis e vigilantes, observando cada movimento meu com uma intensidade perturbadora. Traços de luz prateada serpenteavam pelo firmamento, como fios de prata entrelaçados em uma tapeçaria cósmica que pulsava com um brilho etéreo e desconcertante. Cada ponto de luz parecia vibrar, lançando reflexos que distorciam o espaço, criando uma sensação de ser observado por uma presença cósmica e implacável.

Naquele instante, a percepção do meu corpo mudou de forma radical. Eu já não tocava o chão; sentia-me flutuando, suspenso no vácuo etéreo do desconhecido. O espaço ao meu redor parecia se estender indefinidamente, envolto em uma neblina tênue que impossibilitava discernir onde o vazio terminava. Ao fundo, a voz de Ioam reverberava como um eco distorcido, suas palavras se dissolvendo em um buraco negro de incompreensibilidade. A realidade parecia desvanecer-se ao meu redor, e eu era engolido por um mistério insondável, onde o céu se convertia em um enigma aterrador.

Sentia-me como uma marionete nas mãos de um artista cósmico, meu corpo leve e sem resistência, completamente desprovido de qualquer sensação de segurança. Meu olhar então foi atraído para uma vasta criatura que parecia se fundir com a imensidão do espaço negro. Seus olhos brilhavam intensamente, como dois faróis cortando a escuridão infinita. Era uma presença de beleza aterradora, com cada olhar parecendo um abismo profundo de mistério e poder.

Por um instante, algo que se assemelhava a uma boca surgiu, ou pelo menos uma paródia dela — longa e serpenteante, como um tentáculo emergindo do vazio, sem um rosto que pudesse caracterizá-la. Dois olhos adicionais se formaram na figura, fixando-se em mim com uma curiosidade quase infantil, como um médico examinando um paciente com um interesse quase científico.

A criatura então falou, sua voz ecoando no espaço entre as estrelas, preenchendo o vazio com um sussurro místico e terrível que parecia vibrar nas paredes do cosmos.

— Se sente sozinho? — Sua voz era profunda e reverberante, como se estivesse sendo projetada de uma caverna antiga. O tom não parecia ameaçador, mas carregava um peso de sabedoria infinita. — Você viu?

Eu não consegui responder imediatamente; parecia que minhas palavras estavam congeladas no vácuo. Então, como se fosse uma revelação, a resposta surgiu em minha mente.

— Sem solidão, então. Apenas dor. Você também sente isso, não é? — A criatura parecia ouvir meus pensamentos como se fosse um eco no vácuo. — Você a viu.

Meus olhos se arregalaram de assombro. Como ele podia ler minha mente?

— Sou aquele que "apenas existe", uma testemunha de mortais e imortais. — Sua voz retumbava em meus ouvidos com uma ressonância quase física. — O que você viu não era uma assombração ou uma miragem. Estava aqui, mas não exatamente aqui. Um reflexo da existência, do tempo… Uma distorção.

Ele vasculhou minha memória, e eu comecei a compreender que a jovem que eu vira era real, mas ela estava em um lugar além da compreensão.

— O tempo… O Castelo… Drácula… A feiticeira… — Ele fez uma pausa, como se estivesse ponderando as palavras certas para usar. Sua consciência parecia mergulhada em uma profunda contemplação. — Você se prende… Sim… Você continua lá. Vejo seu pesar, sua angústia…

As memórias começaram a emergir, como fantasmas que se arrastam das sombras profundas, insistindo em revisitar cada canto de minha mente onde eu desesperadamente tentava afastar o passado. Eram imagens vívidas e carregadas de uma dor esmagadora, uma angústia que se enraizava em meu peito, cortante e implacável, como uma lâmina fria. Eu via novamente os rostos dos amigos caídos, irmãos de combate cujas expressões distorcidas e pálidas ainda eram um reflexo do horror da batalha. Mas nada era tão insuportável quanto a visão de meu próprio irmão, René.

Ele era apenas um garoto, meu irmão mais novo, com seus dezesseis anos de vida ainda intocados pelo tempo. A lembrança do momento em que a baioneta prussiana encontrou seu alvo é vívida: o golpe cruel e certeiro atravessou o ar, um movimento frio e calculado. Em meus braços, seu sangue quente e espesso tingiu a terra ao nosso redor, formando uma mancha vermelha que parecia impregnar minha alma. Sua vida esvaiu-se lentamente, como um fluxo ininterrupto de dor e desespero, e eu só pude segurá-lo, impotente, sentindo seu último suspiro enquanto a batalha rugia em um estrondo ensurdecedor ao nosso redor. Aquele instante, um fragmento de tempo dilacerante, está gravado em meu ser como uma ferida profunda que nunca cicatrizará.

Senti uma lágrima quente e salgada escorregar pela minha face, seu caminho um rastro úmido que refletia a dor que eu sentia. Meu coração palpitava a cada lembrança, como se fosse cravado por uma faca afiada, rasgando e dilacerando minha alma com cada pensamento. O tormento parecia interminável, como um rio de tristeza que fluía incessantemente da minha alma para meus olhos. Nunca pude voltar a Sevilha para dizer à minha mãe sobre sua perda. A culpa de não ter conseguido protegê-lo é um fardo pesado que carrego, um peso que faz com que meus dias sejam um tormento constante e insuportável.

— Anton, teu passo é um eco de dor... Mas há esperança, o futuro ainda pode ser moldado pelo agora... — Pela primeira vez, o eco cessou, e a criatura parecia sentir uma centelha de compaixão pela tormenta que se desenrolava em minha mente. — Observa os muros do Castelo com atenção... Examina com cuidado os habitantes que o povoam... Penetra o véu sombrio da realidade e rompe as correntes do tempo.

A sensação de dor começou a se desfazer como uma neblina ao amanhecer. Meu corpo, antes tenso e pesando como uma âncora, começou a relaxar. O peso emocional que me oprimia parecia se dissolver, dando lugar a uma estranha sensação de alívio. Olhei ao redor e percebi que o horizonte, o Castelo, e até mesmo Séttimor haviam desaparecido. Estava envolto em um espaço escuro e desolado, onde a única presença era a da criatura, que agora parecia me envolver em um abraço etéreo.

— O vazio deste mundo guarda segredos profundos, esconde o que não pertence ao natural... — A voz da criatura tornou-se mais grave, quase professoral, com um tom que parecia refletir séculos de sabedoria. — Olga vê o ordinário como monótono... Não, ela aprecia o que reside no Vazio. Ela encontrou o que buscava entre suas sombras.

A menção de Olga gerou um frio inquietante. Quem era ela, e por que sua presença parecia tão relevante? Onde ela estava no Castelo?

— A dançarina... Mora no Castelo... Em algum lugar além do espelho do mundo... O tempo aqui é maleável, as linhas do destino se entrelaçam e se cruzam. Muitos caminhos se encontram e se perderão... — A criatura fez uma pausa, como se mergulhasse em um oceano de pensamentos. — Um nome... Nauärah... Pequena... Voa... Corre... Dança!

O nome parecia familiar, um eco do que eu havia visto na festa de Séttimor. Mas o que significava estar no "espelho" do mundo? Por onde andei no Castelo, só encontrei quartos vazios, salas empoeiradas e portas trancadas, um labirinto de desolação.

A angústia se entrelaçava com a esperança enquanto a criatura falava. Eu sentia uma conexão com o mistério que me envolvia, uma promessa de que as respostas estavam à espreita nas sombras do Castelo. O vazio, embora aterrador, parecia ser a chave para desvendar os segredos que buscava.

— Nauärah, como encontrarei este fantasma no Castelo? — Minha pergunta se perdeu no vazio, uma busca desesperada por respostas em meio à crescente inquietação.

Senti um peso inesperado sobre mim, como se lençóis pesados me envolvessem em uma prisão de tecido. A escuridão era densa, quase palpável, e meus olhos demoraram a se adaptar. O corpo estava uma mistura de dor e cansaço, uma sensação de desgaste físico que lembrava os treinos extenuantes com o sargento Jean. Levantei-me com cuidado, o esforço era visível em cada movimento lento e cuidadoso, como se estivesse tentando sair de um pesadelo denso e opressivo.

A dor e a fadiga eram intensas, desconcertantes, um lembrete constante da estranheza do lugar. Sentei-me na beirada da cama, tentando orientar minha visão em um ambiente que parecia ser meu quarto no Castelo. Um frêmito de desconforto percorreu minha espinha enquanto me dirigia até a janela, cujas cortinas estavam fechadas como um véu que escondia o que estava além.

Ao abrir as cortinas, a luz da lua se projetou pela janela, revelando o cenário noturno que parecia tanto familiar quanto alienígena. As roupas do baile ainda estavam em mim, um lembrete vívido da noite passada. Uma avalanche de memórias intensas e perturbadoras invadiu minha mente, como se fossem sombras que se arrastavam de volta para a superfície.

Caminhei com dificuldade até a mesa de frente para a cama e me deixei cair na cadeira com um suspiro cansado. A mente girava, tentando unir as peças de uma noite que parecia se estender interminavelmente. As visões de Séttimor e da criatura que se apresentava como aquele que “apenas existe” eram fragmentos confusos, enquanto dois nomes ecoavam incessantemente em meus pensamentos: Olga e Nauärah.

Cada pensamento era uma lâmina afiada, cortando através do nevoeiro da confusão. A sensação de estar em um labirinto mental, cercado por sombras e ecos do passado, criava uma atmosfera de suspense e inquietação. O Castelo parecia guardar segredos nas entrelinhas da realidade, e eu estava prestes a desvendar um enigma que prometia levar a uma revelação sombria.

Diário de Anton S. Miahi VI
(Escrito no Castelo — Part. III)

02 de agosto 1871 — Ao despertar nesta manhã, senti um peso inusitado em meu corpo, um cansaço que transcendia o mero físico. Ao sentar-me no lado direito da cama, percebi que o ar não estava frio, mas carregado de uma estranheza intangível. Minha mente, lenta e nebulosa, parecia vagar por entre sombras, como se encharcada pelo licor do sargento Miguel, aquele líquido esverdeado que ele alegava ser uma herança familiar, mas que sempre me pareceu mais um veneno disfarçado.

Com esforço, reuni a coragem necessária para me erguer daquele leito, arrastando meu corpo pesado até a janela, ainda fechada. No instante em que toquei a madeira fria, algo inexplicável aconteceu. A realidade ao meu redor começou a se desvanecer, como se fosse um reflexo em águas turvas. Meu quarto se tornou um eco de si, sobreposto por imagens distorcidas, simultaneamente familiares e estranhas.

Cambaleei, tombando ao chão, enquanto o espaço ao meu redor se desdobrava em camadas desconexas. Formas se duplicavam e se desfaziam, detalhes surgiam e desapareciam como se eu estivesse preso entre dois mundos, ambos reais, ambos irreais. O conhecido e o desconhecido se entrelaçavam em uma dança perversa, desafiando minhas percepções e deixando-me à mercê de um enigma insondável.

Ouvi o ranger pesado e longo de quem estava espreitando atrás da porta, até que ela silenciou, pronto o som de passos pesados de solado de couro no piso de madeira ecoava em minha mente, então se seguiu duas vozes. Uma delas reconheci devido ao convívio, Narcís. Tentei olhar na direção deles, mas tudo girava de uma forma que me impedia concentrar-me, então fechei os olhos.

A outra era de um barítono baixo, meus ouvidos podiam haver me enganado, mas quando consegui ouvir podia ouvir que era mais. Ele falava firme, e não pude compreender o que era dito.

Tentei abrir os olhos novamente e ver quem seria o outro na sala, ele tinha a pele escura, os cabelos aparados, a barba era bem-feita. As vestes dele eram semelhantes à de um aristocrata.

O segundo retira um relógio do bolso enquanto se agacha ao meu lado. Consegui ver o mostrador do relógio, adornado com delicadas engrenagens visíveis mediante um cristal impecável, marca o tempo com uma precisão perturbadora. Cada tic-tac parece ressoar no ar, como um sussurro de algo antigo e esquecido. Ao redor, o tempo parece distorcido, curvando-se à vontade dele, que observa Anton, caído e vulnerável sob os poderes temporais que o relógio exala.

Perto da porta, em meio à escuridão que o envolve, está Nestor, o mordomo sombrio do Castelo Drácula. Sua figura alta e imponente é uma sombra que vigia, seus olhos atentos ao que se desenrola diante dele. Ele permanece imóvel, mas o ar ao seu redor parece pulsar com uma energia inquietante, como se ele estivesse em perfeita sintonia com o poder sinistro que emana do relógio na mão de daquele ao meu lado.

— Monm, creio que subestimas a delicadeza do tempo. — A voz de Nestor cortava o ar com uma precisão quase cirúrgica, cada palavra um golpe de aço frio que parecia reverberar pelas paredes do quarto. Seus olhos, escuros e intensos, fixavam-se em Monm com uma desaprovação palpável, como se visse em cada fração de segundo um erro iminente.

Por um instante, Monm baixou a cabeça, uma sombra de aborrecimento cruzando seu rosto antes de erguê-la novamente com um brilho desafiador.

— Ah, Nestor, sempre tão preocupado com as minúcias. O tempo, para mim, é uma tela em branco, pronta para ser pintada com novas realidades. — Sua voz era um sussurro leve, quase musical, enquanto girava o relógio de bolso entre os dedos, o brilho verde musgo lançando padrões de luz nas paredes, criando uma dança de sombras inquietantes. — Anton é apenas… — Ele olhou diretamente para Nestor, um sorriso sarcástico curvando seus lábios. — Uma pincelada ousada.

— Essas tuas pinceladas ousadas podem desmoronar todo o quadro. — Nestor estreitou os olhos, a voz agora carregada de um tom sombrio e ameaçador, como o crepitar de um incêndio distante. — Anton está à beira do abismo, e um passo em falso poderá custar-lhe muito mais do que o simples passar dos segundos.

— Ora, ora, que dramático! Não se preocupe tanto, meu caro. — Monm respondeu com uma leveza desconcertante, a voz quase um murmúrio divertido. — O abismo é fascinante, não acha? — Ele girava o relógio de bolso, o som metálico quase hipnótico. — Um lugar onde a lógica se perde e a realidade se distorce. Anton deveria sentir-se privilegiado por ser uma das raras almas a vislumbrá-lo.

— Brincar com o tempo é arriscar, Monm. — Nestor intensificou sua aura vermelha, o brilho ardente criando uma aura ameaçadora. Sua voz agora era um trovão profundo e grave, reverberando pelas paredes do quarto. — E já que tanto aprecias as chamas, cuidado para que não acabes queimado por elas.

— Fogo, gelo, tempo… — Monm riu suavemente, inclinando-se sobre Anton com uma expressão de curiosidade quase paternal. — Tudo isso são apenas ferramentas nas mãos certas, Nestor. Agora, veja, observe como a realidade se dobra e se molda. Anton está aprendendo uma valiosa lição sobre a natureza efêmera do tempo, algo que poucos têm o privilégio de entender…— Seu tom era cauteloso, mas carregado de uma ameaça sutil. — Ou sobreviver.

— Cuidado, Monm. As forças que invocas são antigas, mais do que tu podes controlar. — Nestor falou com uma voz baixa e imponente, carregada de uma autoridade que parecia emanada das profundezas de sua própria experiência. — Eu, que servi e ainda sirvo a poderes além da compreensão, sei o que ocorre com aqueles que ultrapassam seus limites. Não subestime o preço.

— Ah, Nestor, se a eternidade não nos oferece diversão, qual é o propósito de possuí-la? — Monm ainda sorria, mas com um brilho calculista em seus olhos. — Anton é apenas o começo. O tempo é vasto e cheio de surpresas… vejamos onde ele nos leva.

Monm, ainda agachado ao lado de Anton, girava o relógio de bolso entre os dedos, sua aura de fogo-fátuo verde musgo projetando sombras inquietas nas paredes do quarto. Anton, prostrado no chão, começava a recobrar a consciência, mas o peso esmagador do tempo manipulado por Monm ainda o oprimia. Nestor permanecia à porta, sua presença imponente ardendo em tons de vermelho, como uma brasa viva, seus olhos quase ocultos na escuridão de seu rosto severo.

— Monm, estás brincando com forças que nem tu compreendes plenamente. Anton não é uma peça descartável para teus experimentos. — Nestor afirmou, a voz cortante como um fio de lâmina. — Ele pertence a Drácula, e Olga tem planos para ele que não envolvem teus caprichos temporais.

— Oh, Nestor, sempre tão zeloso pelos interesses de teus mestres. — Monm respondeu com um sorriso irreverente, seu tom leve e brincalhão. — Mas não te preocupes, Anton é mais resistente do que aparenta. — Olhando para Anton com um brilho enigmático, ele continuou, — Ele sobreviveu ao toque do tempo até agora, não é verdade, meu jovem?

— Liberte-me... Monm, por favor... não aguento mais essa sensação… — Anton suplicava com a voz entrecortada, a angústia evidente em cada palavra. — Essa confusão... não sei mais o que é real…

— Vês, Monm? Estás levando-o ao limite. Liberta-o antes que destruas sua mente. — Nestor interrompeu, sua voz grave e cheia de autoridade, como um trovão distante que prenuncia uma tempestade iminente.

— Ah, Anton... a realidade é tão relativa, não achas? — Monm se aproximou mais de Anton, sua voz um sussurro sedutor carregado de mistério. — Mas compreendo teu desejo. O tempo pode ser um mestre implacável... ou um aliado inesperado. Estás começando a vislumbrar o que poucos têm a chance de ver. Por que apressar o fim dessa experiência única?

— O que é isso... o que estou vendo? O que fizeste comigo? — Anton perguntou com os olhos arregalados, sua voz carregada de uma curiosidade desesperada. — Por que parece que o tempo se distorce ao meu redor?

— Ah, meu caro, estás tocando a própria essência do tempo, uma dádiva rara. — Monm sorriu misteriosamente, um toque de empatia em seu olhar. — Mas não te preocupes, vou acalmar as águas para ti... por enquanto.

— Não brinques com ele, Monm. Já cometeste um erro irreparável em outra ocasião, um erro que ainda te assombra. Anton não é o veículo para tua redenção — Nestor falou com uma frieza penetrante, sua aura vermelha pulsando com uma ameaça velada.

— Erro? Que palavra pesada, Nestor. Prefiro chamar de... aprendizado! — Monm respondeu, visivelmente afetado, mas escondendo sua vulnerabilidade sob uma camada de sarcasmo. — E quanto a Anton, talvez haja mais nele do que imaginamos. Quem sabe ele seja a chave para corrigir... certas coisas.

— O que estás insinuando? Conheces este jovem de outro lugar, não é? De outra linha temporal, talvez? Monm, não ousarias... — Nestor estreitou os olhos, sua suspeita palpável.

— Insinuar? Eu? Nunca, Nestor. Apenas... vejo um potencial em Anton, algo que me é familiar — Monm olhou para Anton com uma expressão quase melancólica, mas logo retomou seu tom espirituoso. — Uma história que pode ter sido... ou ainda será.

Tentando me levantar, minha curiosidade superou o medo. Senti o peso invisível do tempo se moldando ao meu redor, como uma neblina densa que sussurrava promessas e perigos. O quarto, que antes era meu refúgio familiar, pulsava com uma energia estranha e inquietante, como se estivesse prestes a revelar segredos há muito enterrados. Os olhos de Monm, carregados de um enigma silencioso, me observavam com uma intensidade quase paternal, enquanto Nestor permanecia como uma sombra vigilante à porta, sua presença uma advertência de que minha curiosidade poderia me levar a lugares de onde não haveria retorno.

— Que história? O que estou destinado a ser? E por que… — minha voz tremia enquanto tentava me erguer. — Sinto que há algo em mim que ainda desconheço?

— Tudo a seu tempo, meu jovem — Monm ajudou-me a levantar, falando com suavidade. — Por agora, saiba que o tempo tem mais camadas do que o mundo à tua volta pode mostrar. E talvez, só talvez, tu sejas a peça que faltava para completar o quebra-cabeça que comecei há muito tempo.

— Monm, cuidado com teus jogos. Drácula e Olga não tolerarão falhas. Anton deve ser preservado para seus propósitos, e qualquer desvio será... corrigido — Nestor advertiu, sua aura vermelha pulsando como uma ameaça iminente. — Não esqueças tua posição.

— Oh, Nestor, sempre tão rígido — Monm suspirou, com um brilho astuto nos olhos. — Não te preocupes, Anton será bem cuidado... desde que ele esteja disposto a aprender com o tempo.

A conversa entre Monm e Nestor se desfez em uma tensão que parecia quase palpável, um manto de expectativas e incertezas que me envolveu. As palavras de Monm ecoavam na minha mente, como se uma porta estivesse prestes a se abrir para um mundo que mal comecei a entender. O quarto ao meu redor agora pulsava com uma vida própria, as paredes sussurrando segredos antigos em uma língua que mal conseguia captar. O brilho verde-musgo do relógio de Monm lançava sombras dançantes, enquanto a aura vermelha de Nestor formava uma barreira opaca entre mim e os mistérios ainda não desvendados do castelo.

Levantei-me com esforço, minhas pernas vacilantes encontrando um novo equilíbrio. O tempo, sinto agora, não é mais o mesmo. Algo profundo e irrevogável mudou, transformando o que eu conhecia em algo maleável e desconcertante. Decidi ir até a janela, movido por uma necessidade urgente de reconectar-me com algo familiar. Aproximei-me com uma mistura de curiosidade e temor, puxando a cortina e abrindo a janela com um esforço que me pareceu quase mágico.

O que vi me deixou atônito. O inverno, com seu manto de gelo e silêncio, havia desaparecido, dando lugar a uma primavera vibrante e exuberante. O ar que entrava pela janela era fresco e perfumado com o aroma das flores que desabrochavam em cores intensas e inesperadas. A luz do sol, cálida e brilhante, filtrava-se através das folhas verdes e brotos floridos, criando uma tapeçaria de luz e sombra que dançava ao ritmo do vento. A confusão e a esperança se entrelaçavam em meu peito, como se a primavera representasse um novo começo, uma chance de reescrever minha história em um mundo onde as regras da realidade se esticavam e se dobravam conforme o capricho do tempo.

Sentia como se estivesse em um lugar que desafiava a compreensão, onde cada decisão poderia moldar não apenas o presente, mas também o futuro de maneira inexplicável. O castelo ao meu redor sussurrava meu nome, prometendo revelações e perigos que poderiam me levar além dos limites do que eu conhecia... ou me destruir no processo. A sensação de estar entrelaçado com o desconhecido me envolvia, e eu estava prestes a descobrir se este novo tempo seria meu aliado ou meu destino.

Texto publicado na 9ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de setembro de 2024. → Ler edição completa

Leia mais em As Crônicas do Castelo Drácula:

Anterior
Anterior

Capítulo 5 — Tangíveis Ilusões

Próximo
Próximo

Horrífico