Capítulo 5 — Tangíveis Ilusões
Na densa floresta verdinegra, ouvi pequenos grilos ao longínquo; o horizonte era um mistério verdejante enquanto a única luz ambiente advinha da vela em minhas mãos. Seu lume era dourado-pálido, no entanto, revelava uma névoa carmim ao derredor, como se na aragem pairasse uma úmida cerração hialina que se desvelava escarlate, tão somente, pela flama. Talvez sua transparência queimasse, pois, era viva e, desfazendo-se pelo fogo, avermelhava. A frigidez orvalhada pelo que me parecia ser um profundo entardecer, no entanto, arrefecia-me a tez de modo terrífico e... eu buscava por alguém ou algo que pudesse me trazer respostas. Por vezes as árvores ramosas, com suas espessas folhagens, na cinesia do vento, ecoavam como sussurros estranhos que diziam infindáveis verdades distorcidas. Eu era uma andante sem rumo, consumida por uma inquietude intensa, uma busca inconsciente e, porventura, uma saudade. Mesmo com a beleza lôbrega do lugar, onde a flora esmeraldina em sombras horríficas a cada segundo se emaranhava impedindo-me de sair de sua imensidão, eu pressentia ser preciso permanecer ali e, de fato, o era.
Quando parei minha peregrinação exaustiva e notei minha pele molhada sendo vítima dos ares irrigados, ciente de que minha vela apagaria a qualquer momento, ouvi um cântico agudo e lôbrego. Era como o canto de um Merulaxis stresemanni, porém, duradouro, pouco rompido, mais harmônico como uma música triste e serpenteante ao fundo, como se sua siringe expressasse o sibilar de uma cobra; a imponência do som era tanta que ecoava pelo frondoso arvoredo. A criatura era, decerto, grande; pude sentir apenas ouvindo-a; entretanto, quando o seu canto se extinguiu, senti uma presença aquecida atrás de mim e, quando me voltei para fitar a presença, era tarde demais. O calor de seu corpo cingira-me violento e senti suas mãos em minha cintura, sutis. Olhei-o de soslaio, seu rosto era como o daquela noite de lua azulescida e, dos seus olhos negros sem esclera, escorria uma lágrima negrume.
— Tu foges de mim, Áurea, mas, por quê? — Murmurara em seu tom naturalmente grave. Assombrei-me e senti toda a minha tez responder à sua voz.
— Como sabes... meu nome? — Indaguei trêmula. Ele lamuriou um singelo som intenso e lúbrico; seus braços envolveram-se em mim, mais apertados, colidindo, em profundez, os nossos corpos. Ouvi-lo me chamar de Áurea não me trouxera a repugnância símil a que senti quando Seth o pronunciara.
— Eu sei de tua essência, minha Ennehris... — Senti seus lábios em meu pescoço. — Sei também de nosso vínculo... — Lëvri acariciara meus cabelos. — Eu não matei Lorrt, Áurea... — Suas palavras esvaíram lôbregas, baixas e quentes; quis beijá-lo e amá-lo, todavia, o verdejante arvoredo sucumbia e tão logo a umidade da pele arrepiada fez-se apenas o reflexo de algures. Despertei, ainda na biblioteca, confusa e silente; sussurrando o nome de Lëvri... com uma saudade estonteante oprimindo meu coração e uma solidão sufocante afogando-me em seu oceano hediondo. Não entendi como pude adormecer, tampouco quando. Não me recordava de sentir a areia do sono infindo sob meus olhos. Quando fitei o ambiente, notei em meu colo um pequeno papel cuja escrita revelava-me: “Lembra-te de mim”, mas, era a minha letra, curvilínea como eu a conhecia. Não quis compreender, evitava a dor da lembrança.
Desejei que Lëvri não fosse o culpado pela morte de Lorrt, por isso sonhei. E vi-me ali, só. Comecei a caminhar para além daquele aposento de livros eternos e segredos sombrios. Permanecia-me como se flutuasse na imensidão escura e silente e, às vezes, o silêncio me refugiava de minha própria existência em suas obscuras complexidades; em contrapartida, indicava-me que não havia ninguém ao redor e, portanto, o espargir da solidão, de modo suave, aflorava minhas mais terríveis angústias. Eu sabia que não estava só naquele Castelo, todavia, observei-o atentamente, enquanto vagava a esmo por entre os seus cômodos e passadiços estreitos. Mesmo notando criaturas que me eram semelhantes, humanos ou, porventura, algo mais; tudo me parecia uma ilusão mórbida, dado que a sensação de ausência me consumia, ainda assim.
Em algum dos lugares por onde vaguei com furtividade, encontrei um diário perdido, o qual me trouxe sensações melancólicas — parecia ter sido escrito há anos, no entanto, não havia tempo em tal lôbrego lugar, e do tempo eu nada poderia esperar — apesar de senti-lo dentro de mim, vívido em seu tiquetaquear longínquo. Desejei lê-lo, não o tempo, mas o diário; decerto eu leria o tempo, se assim pudesse, compreendendo-o em sua totalidade soturna. Não podia, contudo, fazê-lo ali; era preciso um lugar que apaziguasse minha alma sôfrega, alhures que controlasse meus instintos, minha sede e, confesso, uma alcova para aprisionar os meus ímpetos lúbricos, os quais eu sabia serem parte de minha nova natureza.
Seth permanecia em silêncio. Na verdade, eu não o sentia residir em minhas entranhas. Isso avultava a solidão; ele decerto se irritara profundamente com a minha vontade de exorcizá-lo de mim. Quis, naquele átimo, que ele compreendesse que, embora a solidão me arrastasse como uma correnteza brusca e violenta — e dela eu fugisse como um veleiro em descontrolado alto-mar — eu não suportava uma presença perene como a de Seth, que me impedia de existir tal qual o meu desejo… de reencontrar Lëvri... E, principalmente, me impedia de reencontrar minhas memórias. Eram confusas as emoções e árduos os sentires que permeavam meu ser, porque, apesar de tudo, Seth estivera presente como o guardião que fora destinado a ser. E o que alçou em minha tez quando seu olhar amargurado fitou meus lábios e seu bruto toque cingiu meu pescoço foi inexplicável; aquilo embargou os meus sentidos e soterrou meus racionais argumentos em relação a Seth — e não sei se me excitei pelo que sou em minha natureza insondável ou pelo que ele é em sua natureza insondável. O mesmo, em outros aspectos e por motivos diferentes, ocorreu quando sorvi o sangue daquele rapaz que nunca mais encontrei. O prazer sexual lumiava como uma faísca imortal e imoral, e o sangue que aquecia minha garganta fazia surgir, em minha úmida intimidade, um contínuo frenesi. Se ao menos eu me lembrasse de tudo naquele momento… quiçá me viria a compreensão de ser essa intensidade realmente minha, embora parecesse pertencer só àquela que me tornei. A dúbia vontade: renegar a dor da memória ou lembrar-me de tudo; isso era o que levava à exaustão a minha mente.
A solidão, como o amor e o ódio, era buscada por mim quando eu não a tinha e repudiada quando suas trevas me conduziam em uma valsa horrífica. A culpa, quem carregava, era ela: a solitude, o isolamento em mim mesma que sempre me levava ao afogo dos pensamentos aflitivos. “Ennehris ou Áurea? E por que “Aesatt”? O torso da solidão é o apoio às minhas fúnebres queixas. Pode ser que seja melhor sem memória alguma” — eu pensava— “como uma folha em branco para se pintar de acordo com o novo eu. Um recomeço. Não seria, contudo, desprezível da minha parte exterminar toda uma vida que outrora vivi? Não sei… um recomeço… sem as cruzes do passado… isso não poderia ser uma blasfêmia? — soa-me como um alívio; todavia, sei que conviver com o absentismo nunca promoverá a serenidade que idealizo ao consumar o caminho do esquecimento. Dói-me lembrar que esqueci de tudo, e há tantas perguntas que habitam meu coração… Desde meu despertar, estive envolvida por um veludo verdinegro cujo peso sobre meu corpo impediu-me de sentir alívio e paz, sufocando-me, por vezes, em seu interior esmeraldino. Como esperança, apenas as suas margens, na possibilidade de deixá-lo; enquanto, em seu cerne, a sensação de morte pela degradação da minha essência olvidada e desta nova essência sem sentido. Uma cinesia entre o desvelar do presente e o sondar do passado — confuso porque, aqui, nada disso existe; e o que existe é uma infinitesimal parte irrelevante. Falta-me conhecimento… eu assumo a minha ignorância.”
A cada pensar, almejei compreender aquele lugar e entender a sua existência com uma avidez maior do que a que eu nutria por mim mesma; isto porque, se era preciso conhecimento, eu só poderia encontrá-lo em tal castelo-entidade, que era, decerto, um baú encorpado por segredos e verdades que valiam mais do que minha existência transiente. E despertei ali, afinal, por alguma razão. Segundo Olga, fui encontrada pelo “Espectumbral” — uma criatura fantasmagórica destinada a vagar pelos planos em busca dos “escolhidos”. Eu deveria tê-la questionado mais, Olga decerto sabia muitas coisas e me explicaria a respeito deste lugar, no entanto, eu estava imersa em minhas meras fragilidades quando a encontrei, ébria demais em minha íntima desolação. Eu estava certa de que o Castelo permitiu meu renascer; caso contrário, por que não despertei do coma antes de ser encontrada pelo espectro? Eu sentia, consequentemente, um elo abissal com aquele recôndito; parecia-me um lar para meu eu morto e para meu eu renascido. “Talvez seja o momento de encontrar um sepulcro para enterrar o que não hei de me lembrar; aquela que fui, que nunca mais serei” — pensei. “Algo simbólico, algo que possa representar, em força emblemática, uma Áurea danificada por fissuras de oblívio… e nem sei se sou Áurea... não sei quem é Áurea…”
Os sôfregos pensares se quebraram quando, descendo uma escada em espiral, avistei uma monumental porta de madeira maciça e pesada; tive dificuldades em abri-la, mas o fiz e a ouvi rangendo como se há anos estivesse selada. Havia um grandioso espaço naquele calabouço, com incontáveis barris e garrafas de vidro acomodadas na horizontal, em altas estantes. Adentrei o recinto penumbral e sentei-me em uma das poltronas dispostas em seu centro, enquanto o aroma de frutos fermentados me envolvia. Havia apenas aquelas duas poltronas e, entre elas, uma pequena mesa com duas taças de cristal e um castiçal com três velas acesas. Mais ao fundo daquela adega antediluviana, escuridão e profundezas sombrias. Indaguei-me sobre o quão extenso poderia ser aquele lugar e, sem fechar o soberbo umbral que abri com tamanha dificuldade — com medo de aprisionar-me para sempre —, segurei o castiçal e caminhei para as entranhas da adega. Foi como mergulhar em um oceano de vinho, embriagada por suas propriedades afrodisíacas. Somente quando não pude mais enxergar aquela porta, sentei-me ao chão, abri o diário; ousei retirar uma das garrafas e abri-la. O vinho era rubi, e mesmo sob tão tênue luminosidade, pude notá-lo em cores e aromas: rubro vívido, aroma intenso de cereja, notas ferrosas e o sabor… intenso e estonteante.
“15 de junho de 1871 — Volto uma vez mais a este caderno velho e surrado. Talvez já tenha se tornado um hábito colocar, nestes diários, minhas angústias e pensamentos, e eventuais alegrias nessas páginas. Já não sei quantos escrevi; em meu escritório devo ter uns quantos armazenados na velha estante ao lado esquerdo da mesa de trabalho, junto com meus livros queridos.” — iniciei a leitura. “Já faz algum tempo que me correspondo com uma personalidade do leste da Europa. Devo ter, em minha maleta neste momento, umas três cartas e pelo menos dez telegramas. Segundo as correspondências, temos afinidades intelectuais. Algo poderoso em cada uma delas me compelia a responder, uma sensação indescritível, mas aqui tentarei traduzi-las. Devo dizer que o que senti era provocante, uma emoção que ainda agora me deixa agitado, ansioso, como se houvesse um feitiço em cada palavra…” — li, notando tratar-se de um homem, um homem humano, pois nada é tão emocional como os humanos; eu sentia e percebia isso. Em mim, tudo o que havia era, sim, intenso, porém com um vazio sepulcral inigualável. Sentia falta de ser humana, ainda que não me lembrasse disso; a certeza da minha humanidade de outrora era real. E não parecia residir tal vil condição de vazio no coração deste que escrevera, ao menos, não pude perceber nas entrelinhas.
“Não! A cada onda das letras, elas estavam me atraindo, conduzindo minha existência, e por fim, guiando minhas mãos para responder tão rápido quanto me fosse possível. Senti-me como um apaixonado respondendo a uma amante, numa carta secreta, revelando segredos obscuros. Por vezes, como uma inocente criança confessando à mãe seus feitos do dia com total ingenuidade e despretensão.” — definitivamente, era um humano. Sorvi mais do líquido rubi, e meus olhos lacrimejaram.
— Criaturas como eu, olvidadas, jamais compreenderiam o que é o confessar de uma vestal infância e, ouso dizer, muito menos o verdadeiro amor em seus obscuros segredos — proferi em um murmúrio amargurado.
Com estranheza, o liquor em meus lábios conduzia meus olhos por aquelas linhas, era possível que estivessem vívidas a ponto de invadirem minha imaginação, reverberando uma voz fictícia que narrava as verdades daquele diário. Em certo momento, colidiam-se as letras, dúbias, entrelaçadas com a luz tenra que se difundia pelo ambiente silente. Era deleitável… o sabor que inebriava e as palavras que dançavam. “A vista era montanhosa, com pequenas cidades sombrias e tristes, nos tons de cinza, marrom e branco…” — lembro que ouvi, ouvi sim, e não li, pois era nítida aquela voz suavemente rouca, em um tom de baixo tenor, distinguindo-se em meus pensamentos como se vinda do mundo externo, era tão real que olhei ao redor por instantes, perscrutando a penumbra.
Decidi sentar-me à poltrona que encontrei outrora. E pus o vinho sob a pequena e rústica mesa de centro. À minha frente, o assento, semelhante ao que eu estava, era como um convite insólito; aquela intensa voz e aquela afrodisíaca bebida poderiam advir de uma alucinação causada pelo diário? — eu pensava. Ou seria, como único culpado, o licor rubinegro? Antes que uma resposta pudesse encontrar minha racionalidade que já se perdia na imensidão de mim, vi uma linha… a linha de uma nívea silhueta vaporizada, instigando minhas retinas, seduzindo-as em um tenro receio fantasmagórico, trazendo-me a dúvida de ser um escárnio de luz e sombras. Todavia, quanto mais o tempo passava — embora, em sensação, ele estivesse profundamente estagnado —, as linhas formavam uma silhueta perfeita… com um semblante fidedigno e, o que deveria ascender-me o terror mais hediondo, seduziu minha ébria curiosidade.
O que se desvelava, à minha feição enlevada, era uma sombra cujos detalhes erigiam-se à medida em que o derredor se contorcia de maneira turva e gradual; uma face viril, em perfeição visível, embora ainda translúcida, tinha em sua fronte um assombro que talvez derivasse da mesma razão que o meu encanto arrebatado, pois, seus olhos castanhos estavam direcionados ao meu rosto, fixos e incrédulos. Movimentei-me devagar, como se quaisquer sopros de cinesia pudessem levar à evasão daquilo que pensei ser um fenômeno espectral, quiçá uma memória d’um alguém ou, ainda, uma realidade multiforme, paralela à minha, uma voragem no tempo-espaço. Ainda segurando a taça, ergui minha mão direita na direção do homem cujo contorno do rosto já era tangível e os cabelos, castanhos como os seus olhos, já manifestavam uma textura mais próxima da realidade e mais distante do que era, tão somente, linhas esvanecidas.
Em minha túrbida consciência, incontáveis pensamentos se originavam; por ínfimos instantes acreditei que, porventura, fosse algo de meu passado materializando-se, ou de meu futuro. Porque não poderia ser, eu acreditava, um fenômeno ocasional. O silêncio densificava-se tanto quanto a escuridão que entornava sobre o ar uma esverdeada sombra crepuscular; a adega frígida transfigurava-se em uma metamorfose tardia e lôbrega, ao mesmo tempo em que chamas de uma lareira olvidada, douravam as nuances trêmulas do ambiente. O gosto ferroso e amadeirado ainda exortava meu paladar. As notas de cereja fermentada eram evocadas pelas papilas e tive a impressão de sentir minhas retinas dilatarem-se. Eu tocaria aquela face e, se fosse real, então, as pontas de meus dedos sentiriam o calor, ou a frialdade, de sua bronzeada tez.
Apoiada sobre a mesa de centro, destinada àquilo que pensei ser a melhor forma de compreender aquela estranha conjuntura, avancei um pouco mais e, quando, prestes a tocá-lo, pude ouvir sua respiração inquieta; surpreendi-me com seu brusco movimento. Levantou-se, fugaz, e a brisa de sua cinesia movimentou meus cabelos, no entanto, até aquele átimo, eu nutria uma infinitesimal certeza de que tudo era delírio e, portanto, tentar tocá-lo levar-me-ia à poltrona à frente, esvaindo-se como névoa a sua gravura. Era perceptível, pelo quanto a sua viril presença impulsionara o ar, que não se tratava de um espectro viandante. Então, cessei meus movimentos, embora tenha ficado naquela posição por um tempo até minha mente assimilar o ocorrido. Logo, eu o ouvi. Sua voz era aquela que pouco antes se espargia pelo ambiente, ou pela minha mente, eu não saberia dizer.
— Quem é você? — Dissera, irredutível e no mesmo tom rouco. Eu não pude respondê-lo, à princípio, eu estava um tanto paralisada pela surpresa de seu movimento e por toda a inebriante situação; ainda mais por ser a mesma voz que outrora imaginei… ou ouvi. Mesmo assim, meus olhos o seguiram e vi com perfeição absoluta todo o seu corpo. Quando movimentei meus lábios para respondê-lo, ouvi um estalo vindo do carvalho que eu me apoiava e não demorou para a mesa se quebrar logo após o ruído. N’um impulso, segurei, firme, o que estava à minha frente e vi meu corpo cair ao chão, embora não só, pois puxei o homem austero por seu casaco marrom e caímos, reais e tangíveis, sobre o assoalho. Não como previ, mas o senti no toque abrupto e, no instante seguinte, próxima de seu rosto, um pouco temerosa, o respondi.
— Sou Áurea… — Murmurei. Por tanto questionei o meu não pertencimento a nome nenhum e, naquele minuto, sentia-me conduzida a dizer “Áurea” para um completo estranho que me olhava, rigoroso e, decerto, hesitante. Um estranho cuja face, agora tão próxima, e o corpo, agora tão próximo, era antes um vapor dúbio e penumbral. Sobre ele, o calor em um câmbio equivalente e uma singular sensação, elevaram-me o embaraço, todavia, o turvamento pelo vinho ainda me adornava, delgado, persuadindo o insondável.
— Parece que a mesa decidiu se juntar ao caos e quebrou as pernas. — Murmurou com um sorriso tênue, tendo à fronte a feição desconcertada. — É um prazer te conhecer. — Ajustou-se e segurou-me a cintura e as mãos, para que eu me levantasse com segurança; sua força e estabilidade eram impressionantes. — Sou sargento Miahi, Anton Stefan Miahi. É um prazer. — Proferiu, denunciando a hierarquia que decerto o fazia acentuar o que me parecia ser sua austeridade natural. O silêncio nos envolvera por segundos, eu o observava atenta, tentando fazer com que os efeitos do liquor sombrio não me impedissem de firmar sua feição em minha memória.
— Você está bem? — Indagara-me enquanto recuperava-se da queda e fitava-me tal como eu fazia com ele; sei que sorvera do mesmo vinho que eu e, quiçá, por isso, estivesse mirando seus olhos em mim; no entanto, talvez buscasse incorporar os acontecimentos recentes e nada mais. Não me esqueci do mistério de sua materialização, apenas fui distraída com seu hálito que carregava o êxtase olfativo do brumal liquor e, portanto, avançava sobre mim com o mesmo poder sensual.
— Estou bem… — Murmurei um pouco mais baixo, talvez não tenha sido ouvida. — Achei que tu eras uma ilusão fantasmagórica. — Revelei, tentando deixar minha voz mais nítida e menos lânguida. Sorri em seguida, fitando sua expressão cordial.
Contudo, algo pairava no ar. O silêncio pós-desastre que soara envolvente tanto quanto denso estivera antes de tudo acontecer, ornara o ambiente em um medonho insulamento mudo. Em certo aspecto, tudo passou a soar aterrador; quis acreditar que nos olhos de Anton residia a mesma macabra percepção, pois, o clima de apreensão erguia-se a modificar tudo entre nós, sua força era invisível. Apesar do tragicômico momento ocorrido segundos antes, apesar de trocarmos palavras de conforto em uma apresentação benigna, todo o ambiente se modificara, tremeluzindo anômalo e, ainda, distorcido; uma disformidade infinitesimal e absurdamente apavorante, com as luzes mórbidas ecoadas e translúcidas. Avultavam-se em uma lentidão intimidadora. Eu sentia. Eu via. Símeis a sonidos trépidos e agudos. Respirei fundo, em busca de um alívio daquela complexa hiperestimulação dos sentidos. Anton me olhava e sua existência transpassava uma segurança que, na instabilidade em que eu me encontrava, seria minha égide caso tudo saísse do controle. O sabor adocicado em meus lábios delatava-me que aquele líquido rubinegro poderia ser a razão da estranha sensação persecutória que despontava opaca e tétrica em meu ser.
— Anton… — Proferi com temor e sei que meus olhos se umedeceram e, pela primeira vez desde meu despertar, eu senti um medo entranhado, com uma raiz insondável. Quis indagar Anton sobre a umbra que se instalava em meu âmago, sobre aquelas sombras bizarras que penetravam os cantos da visão; ia questioná-lo, porém não pude, algo estava me sufocando. “Seth… onde estás?” — pensei. Sob o medo mais legítimo, vi-me como aquele pássaro negro detrás da clausura enferrujada e consumida pelo musgo; com o peito arfante, prestes a ser consumido por algo bem pior que a morte.
Sargento Anton Stefan Miahi, nascido em tempos de paz, educado para ser historiador e pensador, foi lançado ao tumulto da guerra contra os prussianos. Com 30 anos, vi-me arrancado de minhas reflexões e posto a cavalo, liderando homens em batalhas que desafiam a própria lógica que tanto prezo. Sou um homem de razão, porém, a guerra ensina que a racionalidade é uma vela frágil em meio aos ventos do caos.
_"Sou um filho da lógica, mas a guerra é um pai severo que ensina a loucura."_