Castelo Vampírico: Você será como um jardim bem regado, como uma fonte cujas águas nunca faltam
Diário de Rute Fasano
01 de janeiro? — Acordei num sobressalto e com a respiração pesada. O silêncio incômodo era apenas interrompido pelas batidas frenéticas do meu coração, eu estava de volta ao meu quarto. Meus olhos percorreram o aposento à procura de qualquer coisa que indicasse perigo, parecia que a criatura que feriu meu braço não estava mais lá. Meu braço esquerdo latejava, olhei para ele e percebi que estava envolto com novos curativos. Quem teria feito isso? A última lembrança que eu tinha era uma raiva tremenda e minha ferida sangrando, depois disso apenas escuridão. Levantei me sentindo zonza e vi meus óculos sobre a mesa ao lado do meu diário. Não sei como ele ainda sobrevive a tantas quedas e desmaios. Coloquei os óculos e olhei pela janela e o dia estava bonito, e eu não sentia mais aquela vontade de me esconder dentro daquele quarto. Queria ir para fora sentir o calor do sol no meu rosto. Decidi que esse momento seria ótimo para explorar e fui para aquele jardim que estive no dia da grande lua, onde avistei Hadassa.
Fui de encontro ao jardim e senti um aroma de terra molhada, ervas e algo mais que não pude identificar, isso me atraiu. Então me deparei com um canteiro de rosas muito vermelhas, cheguei perto delas para sentir seu cheiro e era tão pungente, toquei devagar suas pétalas aveludadas e parecia que uma lembrança ia se formar em meu cérebro. Até que, um pouco mais além desse canteiro, pude perceber lírios prateados e lírios vermelhos feito aranhas mexendo suas pétalas de forma suave, como aqueles que eu havia visto no vale dos settimôros. Esse pensamento me trouxe aquela solidão incomoda, interrompendo uma lembrança sobre as rosas que tardou a se formar. Caminhei um pouco mais apreciando a luz do sol que iluminava agora aquele jardim. As estátuas de anjos e damas esculpidas em mármores não passavam mais aquela melancolia de antes. Agora pareciam contemplar a profusão de vida naquele jardim. Um pouco mais a frente havia uma figura curvada sobre um canteiro, era uma senhora idosa de cabelos grisalhos presos em um coque frouxo e alguns fios rebeldes escapando aqui e ali, suas mãos mexiam nas flores de maneira delicada. Parei, e já ia refazer o meu caminho para não a incomodar.
— Ah, Rute-besin, não tenha medo. — Ela falou sem nem se virar, como se me esperasse. — Venha e sente-se, está com cara de quem não dorme bem há tempos. Venha, tome um chá comigo.
Havia uma mesa de madeira com duas cadeiras perto do canteiro onde ela se encontrava. Sentei-me, relutante, à mesa; havia um bule e duas xícaras de cerâmica marrom com formas desenhadas em diversos tons de verde. Dali emanava parte daquele cheiro de ervas que me atraiu ao jardim. Eu estava intrigada por ela saber meu nome.
— Nós nos conhecemos? — Falei em dúvida enquanto apreciava aquele aroma que parecia me acalentar. Ela se levantou, caminhou devagar e se sentou à minha frente, sua aparência era amável. Sua pele branca marcada pelo tempo e levemente avermelhada por longas horas sob o sol. Vestia o que parecia ser uma túnica preta com pequenas flores vermelhas bordadas no busto. Um colar com um grande pingente dourado e uma pedra vermelha em seu centro e brincos com belas gotas negras.
— Oh, não pessoalmente, mas eu a conheço, Rute-besin, sei que gosta de violetas, rosas, orquídeas, lírios, dálias... — Ela contava nos dedos enquanto falava. — E observar a fauna e a flora. Ah! Você possui uma orquídea roxa, que eu cultivei também. Espero que você esteja cuidando bem dela.
Me lembrei da orquídea que apareceu em meu quarto depois do meu primeiro encontro com Drácula. Me perdi em pensamentos me lembrando daquele momento e do cheiro de rosas que Drácula possuía, o mesmo presente nas rosas do jardim. Ah! Era essa a lembrança que queria se formar. Senti um formigamento em meu braço ferido, que me trouxe de volta ao momento, e o levantei para olhar. Vi um belo besouro de um verde-esmeralda que eu nunca havia visto. Não é como se eu conhecesse todos os tipos de insetos existentes, mesmo tendo um apreço especial por insetos, mas esse besouro específico não parecia fazer parte de nenhuma fauna que eu conhecesse. Eu estava fascinada por aquele exoesqueleto brilhoso, ouso dizer que quase hipnotizada com seu andar lento sobre a minha ferida. Ele me lembrava os besouros da família Buprestidae, só que o brilho deles costuma ser metálico, esse possuía uma luminosidade que parecia emanar de dentro dele, de uma beleza única.
— Oh, então é aí que você estava, Alyric-besin. Venha minha criança arteira. Já falei para você tomar cuidado por onde anda. — Ela retirou com delicadeza o besouro do meu braço, se levantou e o colocou com carinho no meio de algumas flores no jardim. — Ah, crianças, é uma pena que cresçam tão rápido e logo se vão. — Essas últimas palavras dela foram ditas com um certo pesar na voz. — Ela voltou à mesa e se sentou à minha frente. — Alyric-besin parece ter se afeiçoado a você, minhas crianças se sentem bem perto daqueles que os respeitam. — Enquanto falava serviu o chá quente com mãos cuidadosas. O cheiro se espalhou e era tão bom, respirei profundamente e assim encontrei de onde vinham aqueles cheiros que eu não sabia descrever muito bem, vinham do chá e da senhora a minha frente.
— Tome, isso vai te ajudar, besin. Foi feito com uma planta que só cresce aqui, nas terras do castelo. Cura até as feridas da alma, é o que dizem. Talvez te ajude a ter uma boa noite de sono hoje. E a propósito meu nome é Ameritt. — Disse ela com o mesmo tom doce que usou para falar com o besouro.
— Obrigada. E… prazer em conhecê-la. É... qual espé… — E lá estava eu de novo tropeçando em palavras, tentando formular uma pergunta. Inspirei e expirei, enquanto Ameritt, me olhava com paciência. — É…qual é a espécie daquele besouro?
— É um Agrilus Eridahem. Essa espécie é endêmica do Castelo. Você só a encontrará aqui, são ótimos polinizadores, além de serem criaturinhas divertidas de se conversar. — Ela deu uma boa gargalhada ao dizer isso. — Excelentes companhias também. Vamos, beba seu chá, juro que ele irá te ajudar.
Concordei com um aceno de cabeça, e inalei o vapor do chá antes de beber, o cheiro era muito bom e o seu calor parecia espantar o desânimo que me dominava. Bebi o chá e senti aquele sabor terroso e com um amargor suave, equilibrado com um toque de doçura e algo picante. Não importava o quanto eu tentasse, não conseguia identificar o sabor ou compará-lo a qualquer outro. O chá descia pela minha garganta, um calor aconchegante, como se me acariciasse por dentro, soltando todos os nós nas minhas entranhas. Ouvia Ameritt falar com um tom doce, quase que maternal, dos besouros que estavam sob seus cuidados. “Minhas crianças” ela dizia orgulhosa, detalhando tudo que elas faziam por ela e o que ela fazia por suas crianças. Que suas crianças conheciam todos os lugares do Castelo e cada hóspede nele. Falava sobre sua anatomia, sobre as plantas que eles mais gostavam de polinizar. Disse o quanto ficava triste por suas vidas serem tão curtas. E que depois de mortos fazia uma bela sopa de funghi com os besouros. Eu estava fascinada com a forma que ela falava sobre eles e ficaria a ouvindo por horas. Até que ela falou sobre comê-los, e percebeu meu semblante de dúvida.
— Não, Rute-besin, eu não os mato, nunca. Apenas os como quando já se foram. Eles possuem propriedades mágicas, me alimentar deles é como ter um pouco deles dentro de mim. — Ela me olhou com um sorriso de pesar, e acenei com a cabeça para ela saber que eu compreendia. — Acabei me estendendo demais, quando começo a falar das minhas crianças acabo me empolgando um pouco. — Fez uma pausa e levantou com delicadeza sua xícara enquanto me olhava e tomou um gole do seu chá. — E você Rute-besin, tem algo a dizer? Você está muito tensa e abatida.
De alguma forma aquele chá parecia ter não só soltado os nós das minhas entranhas, mas também a minha língua, pois quando dei por mim, eu já havia confessado mais do que pretendia.
— Bem... Meu corpo anda cansado de sentir. Tenho tentado voltar à razão, mas estou cansada de pensar nela e ficar triste com isso. Tenho suspeitado que o castelo talvez tenha algo a ver com essa vontade de ir além do pensamento usual, da razão, da mesmice. Me sinto compelida a experimentar de tudo, provar hipóteses, fazer parte de experimentos. Como um…— Parei para respirar tentando encontrar as palavras. — Como um animal de teste, receptivo a qualquer experiência que me ofereçam. — Não conseguia segurar as lágrimas, comecei a chorar na presença de Ameritt, sem me preocupar se o que eu dizia faria sentido a ela ou não. Me envergonho de chorar na frente de outros, mas ultimamente tem sido difícil segurar qualquer sentimento dentro de mim. Ela assentiu em silêncio, os olhos fixos nos meus enquanto eu continuava.
— E pensar que, desde que cheguei ao castelo, o explorei com terrível medo. Agora, me exponho a ele com curiosidade, sem cautela, procurando uma resposta que nem sei se eu realmente quero. — Comecei a gesticular de maneira incontrolável enquanto falava. — Todos esses sentimentos plantados, tão bem cuidados e nascidos por causa dela, todos cultivados, para no fim não valerem de nada, já que ela, a pessoa para quem cultivei tudo isso, não está mais aqui.
Ameritt ficou em silêncio por um momento, depois colocou uma das mãos enrugadas sobre a minha, seu toque era leve e reconfortante. Reparei numa aliança grossa de ouro, de aparência bem antiga em sua mão esquerda.
— Rute-besin, o luto é uma planta teimosa. Ele se agarra ao solo mais árido, mas o que você está sentindo não é apenas luto. Você sabe, o castelo tem uma vida própria, ele mexe com a mente e com o coração. Talvez ele esteja tentando te mostrar algo que você ainda não entendeu. Algo além do luto, além da razão. Espere aqui. — Ela se levantou e caminhou para além de onde minha visão alcançava, demorou alguns minutos. Minutos esses que aproveitei para me recompor e enxugar as lágrimas. E logo ela apareceu, com uma tigela de barro e uma colher de madeira em uma mão e um pequeno pote de vidro em outra.
— Tenho algo para seu braço e para seu estômago. Para o caso de você continuar explorando hoje. — Colocou a tigela na mesa e olhou para mim como se pedisse minha permissão, pegou a pomada dentro do pequeno pote e a aplicou em meu braço com movimentos delicados, quase como se estivesse cuidando de uma planta ferida. O cheiro das ervas me acalmou e a pomada parecia diminuir aquele latejar insistente.
— Esse castelo é uma entidade viva, Rute-besin. — Ela falava com uma voz baixa e suave. — Ele sente, ele responde. E ele tem segredos que nem mesmo eu, em todos os meus anos aqui, consegui desvendar. Mas uma coisa é certa, ele nos muda. E talvez, só talvez, ele esteja te preparando para algo maior do que seu luto. Algo que pode, de alguma forma, trazer um tipo de paz que você ainda não encontrou. Ou a resposta para uma certa questão que te perturba.
Suas palavras pareciam me consolar. Algo além do luto, da razão, e talvez até da culpa. Ainda não sabia muito bem o que pensar, mesmo que eu sentisse o conforto com suas palavras naquele momento, eu ainda teria que refletir mais sobre aquilo.
— Passe essa pomada duas vezes ao dia e ela vai sarar sua ferida. — Ela falou me dando o pequeno pote de vidro que coloquei no bolso da calça. — Arylic-besin disse que ela está infeccionando, então precisa de cuidados. Tome a sopa, ela também irá ajudar na cicatrização.
Tomei a sopa devagar, sua textura cremosa. Seu sabor, assim como o chá, terroso, era como lamber o solo úmido de uma floresta. Não que eu tivesse lambido um, mas se tivesse esse talvez seria o sabor. O cheiro da sopa era como o de dias de chuvas em meio a natureza, só que ao invés de ter um cheiro fresco, ele era quente e reconfortante. Senti algo com a minha língua, os besouros, é claro. Mastiguei devagar, segurando a vontade de cuspir. Percebi Ameritt me olhando como se me analisasse. Senti a crocância do exoesqueleto, e para minha surpresa era bom, um sabor amadeirado com um leve amargor, me lembrava nozes. A sensação era de ter a natureza descendo para dentro de mim. Se assentado no meu corpo, se espalhando por meus nervos e músculos, me enchendo de vitalidade. Fluindo como um rio e repousando no jardim que parecia crescer em minhas entranhas. Terminei a sopa, Ameritt percebendo logo se levantou, pegou a tigela e a levou. Me levantei e fiquei em pé perto da mesa esperando sua volta. Ela voltou e logo me preparei para me despedir.
— Sim, sim! É hora de você ir. E eu entendo. — Ela não me deu nem a chance de formular uma despedida, o que é o básico para se viver em sociedade, mas que às vezes é difícil para mim. — Rute-besin! Me prometa que vai voltar de novo e que vai tratar essas suas feridas. Nós vamos adorar a sua presença aqui mais vezes. — Ela segurou minhas mãos entre as suas, e de pé, perto de mim, pude perceber o quanto ela parecia frágil e pequena, mas seus olhos, de um azul acinzentado, diziam ao contrário. Sorri para ela.
— Eu prometo que voltarei, e… obrigada pelo chá, a sopa…Ah! e a pomada também. — Disse sem saber mais o que acrescentar a esse péssimo agradecimento. Me sentia uma criança tímida perto dela. Soltei suas mãos e sai andando em direção ao castelo. Voltei para Ameritt para mais uma pergunta.
— Para onde devo ir para talvez… — Novamente estava tentando encontrar as palavras. — Encontrar o que preciso? — Disse receosa.
— Se você seguir para além desse jardim, bem ao fundo, talvez você encontre o que precisa no centro naquela floresta. — Ela se virou e apontou para além de algumas árvores altas bem distante de onde estamos. — Tenha cuidado, minha criança, com o que pode encontrar lá.
Agradeci e segui o caminho apontado por ela. Olhei para trás quando já havia alcançado alguma distância. E ela já havia voltado aos seus afazeres no jardim. Depois de me despedir de Ameritt me percebi inquieta, ansiosa para explorar o que mais tivesse para ser explorado. Enquanto caminhava pude observar como aquele jardim era bem cuidado. E a diversidade de flora que tinha nele. Se eu tivesse ficado lá e observado mais tempo, talvez também me surpreenderia com a fauna. Diversas estátuas de tamanhos diferentes espalhadas por diversas áreas do jardim e bem ao longe um grande chafariz, talvez de pedra, adornado pelo que parecia pequenos anjos, jorrava incessante uma água límpida. No ápice do chafariz havia uma escultura do que parecia também um grande anjo que transparecia certa introspecção. Talvez eu o veja mais de perto no futuro.
Antes de entrar na floresta, vi que à minha esquerda havia um velho cemitério. A natureza parecia ter tomado conta daquele espaço, uma profusão de verde cobrindo o chão daquele terreno. Lápides antigas, algumas inclinadas, outras afundadas no solo, envoltas por trepadeiras e musgos que se agarravam às pedras desgastadas. Um belo mausoléu de pedra também envolto por musgo e rosa-trepadeiras, mas bem cuidado. Me senti tentada a seguir em direção a ele. Na minha direita, mais ao fundo do jardim, que agora eu estava saindo, tinha uma pequena casa de pedra. Rosas-trepadeiras, em tons de um vermelho profundo e outras em um rosa suave, entrelaçam-se pelas paredes de pedra, subindo ao longo das paredes, emoldurando a casa. Na entrada principal uma pequena escada de pedra que levava ao portal da casa. Os degraus desgastados pelo tempo, ladeados por mais rosas-trepadeiras. A porta com um arco de pedra que parecia me convidar. As janelas altas e abobadadas se estendiam do chão até o teto. O jardim ao redor da casa tinha caminhos sinuosos de pedras e canteiros cheios de flores. Se tivesse que adivinhar, coisa que não tenho o hábito, eu diria que aquela é a casa da Ameritt.
Eu tinha que seguir em frente, para a floresta, esses lugares poderiam ser investigados outra hora. Andei um longo caminho no meio daquelas densas árvores e encontrei um arco de pedra em ruínas, envolto com trepadeiras e heras. No passado talvez tenha sido a entrada de uma pequena casa, mas agora era só ruínas. Havia um alçapão no chão de pedra, levantei a portinhola e olhei para a abertura. Uma luz bem fraca me fez enxergar uma escada. Inspirei e expirei, devagar comecei a descer. Me deparei com um portão de ouro velho, com um lampião que emitia uma luz fraca. Borboletas delicadas na cor de marfim, repousavam na superfície dourada. Como se tivessem guardando aquele portão velho por eras, talvez. Empurrei o portão devagar, para não assustar as borboletas. O portão cedeu com um gemido baixo. As borboletas permaneceram, fizeram apenas leves movimentos, desafiando qualquer explicação lógica que eu poderia encontrar para explicar aquele comportamento incomum.
Passei por aquele portão, e para minha surpresa, encontrei uma biblioteca. Ah! Eu estava feliz, até que enfim uma biblioteca. O dia de hoje parecia estar bom demais para ser real e eu iria aproveitá-lo antes que eu, ou algo fora do meu controle, estragasse ele. A biblioteca estava envolta em relva e vegetação, era como se a natureza tivesse tomado aquele lugar para si mesma. O teto era de vidro, que permitia a entrada de uma luz difusa, que penetrava com dificuldade uma espessa camada de musgo e folhas que cobriam tudo. Eu estava dentro de uma estufa, sendo que desci por uma entrada subterrânea. A explicação lógica seria uma estufa subterrânea, escavada a vários metros abaixo da terra, com apenas o teto de vidro para a entrada da luz solar, que construção fascinante. Havia prateleiras com dezenas de livros empilhados, muitas delas estavam inclinadas pelo peso dos livros e talvez também por conta da umidade. Uma coleção de livros de biologia, alquimia, matemática, história e esoterismo. A pessoa dona dessa coleção talvez estivesse buscando respostas além da ciência e da magia conhecida.
Conforme avançava, contemplando todos os títulos ali presentes, percebi alguns sinais no centro daquela estufa. Círculos desenhados no chão, agora cobertos de musgo e relva, velas derretidas. Em algumas prateleiras havia recipientes de vidro com substâncias que possuíam um brilho estranho. Quem quer que fosse a pessoa que utilizava esse lugar, tinha interesses bem peculiares. Segui mais adiante, e havia três portas, cada uma afastada uma da outra, quase que escondidas por camadas de musgo. Abri a primeira porta, e fui recebida por uma enxurrada de cheiros, ervas secas, enxofre, umidade e um leve cheiro de metal. Uma grande mesa de madeira maciça, havia um equipamento de destilação montado, com tubos e vidros sinuosos, conectados a alambiques, retortas e balões. Havia uma prateleira com diversas vidrarias, tubos e frascos. Havia sinais de, talvez, experimentos falhos, fragmentos de vidro quebrados, cobertos de ervas e manchas estranhas. Um almofariz com um pilão jogado a um canto da mesa, ao lado de uma balança e uma ampulheta. Ervas secas penduradas no teto. E, em um canto mais afastado da mesa, um forno. Eu me encontrava em um velho e abandonado laboratório.
Sai dali e fui investigar as outras portas. A segunda porta resistiu às minhas tentativas de abri-la. Lancei meu corpo com força sobre ela, que finalmente cedeu. Entrei naquela sala escura e úmida, musgo e cogumelos cobriam tudo naquela sala, livros, móveis e quadros. Exceto um único livro fechado em um pedestal de pedra. Sua capa de um couro envelhecido muito escuro, quase preto, com finas ranhuras, bordas reforçadas com metal. As páginas amareladas que eu podia observar pelas bordas, o livro parecia estar em bom estado — levando em consideração tudo naquela sala. Me aproximei, hesitante, e o toquei e sua textura era áspera. Gravado na capa, finas linhas que se espalham, se emaranhado, formando um símbolo que não tem início nem fim. Abri o livro e folheei algumas páginas e o que eu pude enxergar, com a pouca luz que entrava pela porta, fez irradiar do meu peito aquele formigar que me tira o sossego. Desenhos de criaturas que desafiavam a lógica, sua anatomia e anotações que eu não compreendia. Símbolos alquímicos, ciência e magia misturados entre rabiscos e ilustrações. Me forçar a compreendê-las fazia com que eu me sentisse à beira de um ataque de pânico.
Fechei o livro com as mãos trêmulas e sorri comigo mesma, apesar do desconforto. Parecia que eu havia encontrado o que eu estava procurando. Fui até a terceira e última porta que abriu com facilidade, tinha muita umidade. As paredes e teto cobertos de musgo verde escuro, o chão tomado por um tapete de cogumelos de diversas cores, alguns até luminescentes. Todos espalhados em cada canto, outros também nas paredes, fazendo com que eu não conseguisse definir o que esse lugar poderia ter sido. Aquele cheiro forte de madeira em decomposição e umidade que alimentava os musgos e os cogumelos. Fechei a porta e voltei à segunda sala, hesitei, mas peguei o livro. Eu tinha que levar ele comigo. O som inesperado da chuva forte batendo no teto da estufa me alarmou. Batidas rápidas que logo aumentaram e ficaram intensas, gotas explodindo contra o vidro com violência, pareciam fazer o vidro vibrar. Coloquei o livro por baixo da camiseta e me preparei para enfrentar a chuva.
Corri em disparada até o castelo, entrei e, mesmo já protegida da chuva, continuei correndo até chegar no quarto. Entrei, coloquei o livro na escrivaninha e tirei as roupas molhadas e as estirei em uma cadeira. Tomei um banho demorado, pois estava protelando para voltar para o quarto e encarar aquele livro. Saí e fiquei sentada na beirada da cama olhando para o livro. Pensei em Ameritt, com seu chá e seus besouros, quase como um sonho, se comparado com o que eu estava prestes a fazer. O castelo havia explorado os meus segredos, e agora eu estava começando a explorar ainda mais os seus. E talvez agora não houvesse mais volta.
As sombras eram solecismos factuais; um ruído medrava-se horrífico. Algo físico entre nós inibia-nos, impedindo quaisquer aproximações; uma divisão vítrea, perceptível…