Quitandas da Vovódelícia

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

“As mãos das mulheres piedosas cozeram seus próprios filhos e serviram-lhes de alimento”
Livro das Lamentações 4;10

O ano era 1994, o mês era agosto, um período terrível no Cerrado. Nessa época do ano, o tempo é quente e seco. Uma camada de poeira e fumaça paira no ar. A baixa umidade relativa do ar torna os dias abafados e sufocantes. Respirar é quase um suplício; a pele, ao mesmo tempo ressecada pela manhã, fica também bastante pegajosa à tarde, devido ao calor que causa uma sudorese constante. Verdadeiramente, é uma época praticamente insuportável.

No esporte, após a tristeza pela morte de Ayrton Senna — o maior piloto de Fórmula 1 da época — numa triste manhã de domingo, no mês de maio, logo a alegria voltaria aos lares brasileiros com a conquista do tetracampeonato mundial pela seleção brasileira de futebol, numa animada tarde de domingo, no mês de julho. Mesmo mês em que entrou em vigor o Plano Real. O país ganhava uma nova moeda e a perspectiva de uma tão sonhada estabilidade econômica. Tudo parecia estar às mil maravilhas, até mesmo para o jovem Cláudio Martins, que acabara de conseguir seu primeiro emprego, iniciado já no primeiro dia do mês de julho.

Oriundo de uma família simples e muito humilde, o jovem Cláudio, após uma infância bastante sofrida numa pequena cidade do interior do estado — lugar onde não havia muito trabalho, tampouco perspectivas para um jovem sem muitas posses —, se mudara com a família para a capital. O pai — um humilde homem do campo — logo conseguira emprego como vigilante noturno numa garagem de ônibus urbano. Sua mãe — uma cozinheira bastante talentosa — arranjara uma ocupação como auxiliar de cozinha numa pequena escola do bairro onde moravam. Ele, após quase seis meses fazendo pequenos biscates, também conseguira um trabalho fixo num supermercado, no cargo de entregador.

O supermercado não era muito grande, por isso não havia muitas entregas a serem feitas. Sendo assim, Cláudio auxiliava na seção de hortifruti, repunha mercadorias nas prateleiras e também era responsável pela precificação dos produtos. As entregas — quando havia — eram feitas apenas para clientes do próprio bairro e adjacências, num raio de no máximo 5 quilômetros, pois as mercadorias eram transportadas numa velha bicicleta cargueira. O trabalho em si não era de todo ruim. Cláudio era um adolescente pobre, mas cheio de sonhos e precisava de dinheiro para ajudar nas despesas do lar e também custear suas vaidades juvenis.

Morando na capital, cursando a primeira série do Ensino Médio e com 16 anos completos, Cláudio necessitava desse emprego. Fã de rock and roll desde a mais tenra infância, agora, vivendo numa cidade grande, teria a oportunidade de assistir a shows de bandas nacionais que volta e meia se apresentavam na capital. Naquele ano em particular, a banda mineira Skank havia lançado um álbum chamado Calango e estava em turnê pelo país. Cláudio estava ansioso e apreensivo, pois essa banda faria uma apresentação na cidade em outubro. Seria o primeiro show de rock de sua vida. Ele, que ficara maravilhado com o casamento do rei do pop com a filha do Elvis, mesmo após alguns dias de profunda melancolia pela morte do líder do Nirvana, ainda assim, imaginava em sua inocência que 1994 seria o grande ano de sua vida. Cláudio era jovem e sonhador. Estudava, trabalhava, curtia rock and roll e já trocava olhares mais calientes com uma ou outra coleguinha de escola. A vida se abria para Cláudio num sedutor leque de oportunidades.

Devido a lapsos de rebeldia, já enfrentava alguns problemas relacionados a divergências de opinião com sua família, que era muito católica e bastante conservadora. Seus pais eram religiosos ao extremo e fiéis defensores da moral e dos bons costumes. Assistir à missa pelo menos uma vez na semana era algo sagrado. Cláudio andava muito ocupado com todas as suas responsabilidades. Domingo era seu único dia de ócio. A missa pela manhã iniciava-se bem cedo, e ele queria ficar mais tempo na cama. À noite, a celebração era bem no horário de seu programa de rádio preferido. Depois de quase um mês sem ir à igreja, após um belo sermão do pai e muita insistência da mãe, decidiu ir à celebração. Como se não bastasse a missa ter sido bastante maçante e a homilia muito longa, a ponto de ele cochilar enquanto o padre falava, quando chegou em casa, seu irmão caçula ainda lhe dissera que naquela noite, no rádio, havia sido apresentada a biografia de Paul McCartney — seu Beatle preferido.

Naquela noite, Cláudio fora se deitar muito ensimesmado com a vida. Era jovem e não entendia ainda — talvez jamais viesse a compreendê-lo — como era o verdadeiro funcionamento do mundo, com seus estranhos mecanismos de controle emocional e segregação social e econômica. Ficou até bem tarde ouvindo o insistente cantar de um grilo na parede e os demais sons que o silêncio da noite lhe oferecia. Depois de muita especulação filosófica, adormeceu por volta da meia-noite, sem saber que, naquela mesma semana, sua vida iria mudar para sempre.

Na segunda-feira, como era de costume, logo pela manhã, dona Cleuza, uma simpática quitandeira — uma quarentona ainda na flor da idade e bastante vaidosa — fazia suas compras para o início da semana. Além dos itens domésticos de consumo próprio, ela também adquiria os ingredientes necessários para a produção de doces e salgados da quitanda que ela e sua mãe — dona Valdelice — tocavam juntas. As Quitandas da Vovódelícia eram bastante afamadas por quase toda a cidade. Os doces não eram tão diferentes de qualquer outro que se vendesse em uma padaria qualquer. Contudo, os salgados eram extraordinários, e ninguém num raio de quilômetros-luz conseguiria fazer algo nem mesmo parecido. O tempero era esplêndido, causando uma explosão de sabor na boca, e o recheio era de uma carne com sabor bastante exótico, mas muito agradável ao paladar, devido à textura e às nuances dos condimentos.

Todas as vezes que Cláudio levava suas compras — pelo menos duas vezes na semana — dona Cleuza lhe presenteava com um apetitoso salgado e um copo de refresco. Enquanto ele saboreava seu lanche, ela lhe cobria de voluptuosos olhares, que às vezes o deixavam até constrangido. Dona Cleuza era uma mulher singular, dotada de uma beleza hipnotizante. Na altura de seus quarenta anos, muito facilmente poderia ser confundida com uma jovem de, no máximo, uns vinte e cinco, talvez até um pouco menos. Era uma dessas raríssimas criaturas sobre as quais o tempo não parece ter efeito. Cláudio era um jovem com os hormônios em ebulição, e saber que aquela bela mulher o devorava com os olhos lhe causava imensa satisfação.

Naquela manhã em particular, dona Cleuza estava bastante sorridente e parecia mais amável do que de costume. Assim que terminou de fazer suas compras, solicitou ao dono do mercado que enviasse suas encomendas o mais rápido possível, pois teria um importante compromisso e, sendo assim, talvez depois não houvesse ninguém em casa para receber o entregador. Seu Nelson — o proprietário do mercado — deu sua palavra de que a entrega seria executada sem demora, pois, além de ser um prestativo comerciante, tinha certa queda pela quitandeira, que, por sua vez — por questões pessoais — não dava ousadia a homens casados, mas nunca havia sido grosseira com ele. Dona Cleuza era o tipo de mulher de sorriso fácil e meiguice espontânea, dotada de uma gentileza ímpar, que chegava a causar certa inveja.

Naquele momento, Cláudio estava fazendo uma entrega numa clínica de repouso para idosos ali próximo. Essa clínica também fazia suas compras naquele mercado. Contudo, aquela entrega em si era uma doação que o próprio dono do mercado fazia toda semana para a instituição — era quase sempre a mesma coisa: frutas, verduras e carne, ou seja, produtos frescos, que eram entregues na clínica na segunda-feira pela manhã. A maioria dos outros itens básicos para a alimentação dos internos também era proveniente de doações. A clínica — uma instituição de caridade sem fins lucrativos — sobrevivia da bondade alheia e do voluntariado de algumas pessoas de alma nobre, que, além de doações materiais, também dedicavam parte de seu tempo ao cuidado dos idosos. Havia poucos funcionários remunerados.

Pela primeira vez, Cláudio — que demonstrava bastante retidão de caráter e muita seriedade em suas funções — demorou mais do que o normal com a entrega, fato que causou estranheza ao seu patrão, que estava até mesmo preocupado com a integridade física do rapaz, pensando que ele poderia ter sofrido algum tipo de acidente. Entretanto, quando Cláudio retornou ao mercado com as caixas de entrega já vazias, logo explicou o motivo de sua demora. Já acomodando as compras de dona Cleuza sobre a bicicleta para a entrega, relatou o ocorrido na clínica.

... Na noite anterior, um dos internos havia desaparecido. Havia um verdadeiro rebuliço, com a presença da polícia e tudo mais. A diretora da clínica estava exigindo, por parte dos policiais, que um inquérito fosse aberto para investigar o desaparecimento de mais um de seus internos. Um dos policiais, após anotar num pequeno bloco os dados pessoais do idoso que sumira, disse que, assim que completassem 24 horas do ocorrido, abriria um boletim de ocorrência. Também aconselhou a diretora da clínica a aumentar a segurança do local, ao que ela respondeu prontamente, até com certa rispidez, ao perceber a má vontade do policial:

— Aqui não é um presídio, rapaz! É uma casa de repouso. Zelamos pelo bem-estar daqueles que já não têm ninguém por eles. Não prendemos ninguém aqui!

— Sendo assim, a senhora não deveria reclamar quando um deles, não apreciando a comida ou as acomodações, decide ir embora — respondeu o outro policial em tom de pilhéria.

— Como de costume, devo prestar meus sinceros agradecimentos por mais uma eficaz demonstração de profissionalismo de nossa honrada força policial. Ou seja, muito obrigada por nada! Exijo que pelo menos fique registrado nos autos que, somente este ano, aqui na clínica já foram seis internos que desapareceram de forma misteriosa no meio da noite. Sumiram com a roupa do corpo, sem deixar nenhum vestígio...

Os policiais, sentindo-se bastante ultrajados pela fala da diretora — que demonstrava estar bastante irritada com a piadinha que um deles fizera —, como nada mais tinham a fazer no local, logo entraram no carro e saíram em disparada, com a sirene da viatura ligada. Assim que Cláudio terminara o seu relato, o dono do mercado não emitira nenhuma opinião sobre o acontecido, além de lamentar profundamente o fato em questão.

Cláudio, que tinha muito apreço pelo trabalho que a clínica fazia no cuidado com aquelas pobres almas inocentes, ficou bastante acabrunhado pela negligência com que os policiais atenderam a ocorrência, mas principalmente ao pensar na triste situação de quem chega ao fim da vida sem ter com quem contar. Ficou bastante melancólico e reflexivo sobre a forma como um idoso é tratado pela sociedade. Primeiro, repudiado pela família que o abandona; segundo, pela própria sociedade, que enxerga uma pessoa mais velha como alguém que tem uma doença contagiosa — por isso, precisa ficar isolada —; e, por último, pela negligência do próprio poder público, que, após pagar uma mísera aposentadoria, lava as mãos e deixa aqueles que um dia tanto significaram para a nação entregues à própria sorte.

Perdido nessas tristes reflexões, mas, mesmo assim, cumprindo suas obrigações profissionais, Cláudio logo chegou à casa de dona Cleuza e, após encostar sua bicicleta com as compras no muro — há anos aquela bicicleta não tinha mais o descanso —, bateu palmas no portão da quitandeira e aguardou que alguém viesse atendê-lo. Esperou por uns dois minutos e, como não ouviu nenhum movimento, bateu palmas novamente, dessa vez com maior intensidade. Após aguardar por quase cinco minutos e não ser atendido por ninguém, decidiu testar a maçaneta do portão e, caso não estivesse trancada, entraria e deixaria as compras na cozinha, mesmo se não houvesse ninguém em casa. Para sua sorte, o portão estava destrancado.

Pegou as pesadas caixas com as compras e adentrou a casa, indo direto para a cozinha. A mesa onde ele colocava as compras sempre que as trazia estava repleta de caixas de plástico brancas — do tipo que são usadas em açougues. Como não havia outro lugar para colocar as compras, decidiu deixá-las na bancada da pia. Enquanto executava esse processo de descarregar as compras, ouviu o som de música e de um chuveiro ligado em um dos quartos da casa. Pensou que, talvez devido a esse barulho, quem estivesse na casa não teria ouvido quando ele batera palmas no portão. A música que ele ouvira era do grupo Roupa Nova e, se não estivesse enganado, a canção se chamava "Tímida".

Imaginando que estivesse sozinho na casa, e com sua curiosidade ardendo para saber quem estaria no banho, caminhou sorrateiramente na direção do barulho e logo se viu diante de um belíssimo aposento. Muito grande e bastante aconchegante. A enorme cama em estilo colonial ficava numa parede de frente para uma grande janela panorâmica, que dava para um jardim lateral da casa. Todo o mobiliário do aposento era de fino estilo colonial. No chão, um grande tapete felpudo fazia conjunto com as cortinas em tom de vermelho púrpura. Sobre a cabeceira da cama, na parede logo acima, havia um grande quadro com uma pintura a óleo de uma serena paisagem campestre. O ambiente era bastante perfumado, tanto pelo cheiro das flores nos jarros espalhados pelo quarto quanto pelo aroma de sabonete que vinha do banheiro, onde alguém — certamente dona Cleuza — tomava um demorado banho.

Sem muita cerimônia adentrou pelo quarto e se aproximou do banheiro que ficava aos fundos. Tentou ser o mais silencioso possível para não ser notado. Parou a uma distância segura e ficou observando dona Cleuza que estava em todo seu esplendor, da mesma maneira que chegou a esse mundo. Ela que trazia em seu ventre um calor tão quente como o fogo do próprio Tártaro, naquele momento, debaixo das tépidas águas daquele convidativo chuveiro, se tocava voluptuosamente na tentativa de abrandar aquele fogo que lhe queimava as entranhas.

Cláudio que devido a idade já havia acordado com os lençóis de sua cama sujos e pegajosos após despertar de um sonho molhado que tivera com a própria dona Cleuza, se encontrara naquele momento numa situação bastante embaraçosa. Havia um emaranhado de sentimentos tomando conta de todo o seu ser. Desejo de entrar no chuveiro com aquela bela criatura, medo de que alguém o visse ali no quarto de uma dama naquela situação e curiosidade em saber como tudo aquilo terminaria. Estava ele tão entretido com aquela lasciva visão que nem mesmo se dera conta de que dona Valdelice entrara no quarto e estava de pé logo atrás dele.

Quando percebeu que havia sido flagrado, — em pleno horário de trabalho — dentro do quarto de uma dama em seu momento de mais pura inocência e intimidade, saiu correndo do recinto trombando em tudo que via pela frente, inclusive na própria dona da casa. Ao passar pela cozinha para se evadir do local, acabou derrubando uma das caixas que estava sobre a mesa. Ficou pasmo quando viu que dentro da caixa havia partes de uma perna humana. Levantou o pano que cobria as demais caixas e viu que havia mais partes humanas, um pouco de carne já moída, massas para salgados e temperos e condimentos de todos os tipos.

Naquela mesma tarde daquele quente e sufocante final de agosto, além dos restos mortais do idoso que havia desaparecido da clínica na noite anterior, também fora encontrado várias ossadas humanas enterradas no quintal da casa de Dona Cleuza. Logo se soube que um dos enfermeiros da clínica era amante da quitandeira. Era ele quem lhe fornecia a carne para os, até então, saborosíssimo e inigualáveis salgados da Vovódelícia. Dona Cleuza foi presa em flagrante e logo depois condenada e sentenciada à pena máxima por vários crimes: canibalismo, homicídio, ocultação de cadáver etc. Dona Valdelice, devido a idade e seu estado de debilidade, fora internada numa clínica para idosos com problemas mentais. Terminou seus dias de forma lamentável, no mais completo abandono. O suposto amante nunca fora encontrado para responder por seus crimes. Ao saber que dona Cleuza havia sido presa, foragiu sem deixar vestígios, ninguém mais soube de seu paradeiro. O inquérito policial concluiu que ele usava uma documentação falsa que havia sido abandonada em seu alojamento na clínica.

Cláudio, em pouco tempo, saiu do emprego de entregador e buscou outra ocupação até se formar em medicina, especializando-se em geriatria. Mesmo depois de muitos anos e, sendo ele um clínico renomado, atendendo em um grande e respeitado hospital particular da capital, ainda assim presta serviços voluntários em diversas clínicas e casas de apoio aos idosos espalhadas pela cidade. Ele jamais se esqueceu daquele ano de 1994. Nunca mais comeu nenhum outro tipo de salgado. Na verdade, tornou-se totalmente vegano, ao ponto de sentir repugnância a qualquer tipo de proteína, seja ela qual for...

Texto publicado na Edição 10 - Aborom, do Castelo Drácula. Datado de outubro de 2024. → Ler edição completa

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