Diário de Anto Stefan Miahi - Part. IV
De Marcel D. Laurent II
De: Marcel D. Laurent
Para: Anton S. Miahi
28 de junho de 1871
Meu caro amigo, te envio notícias da capital. Além desta carta, somam-se alguns jornais nossos. Infelizmente até chegar em suas mãos devo admitir que vão estar atrasadas. Por feliz graça você me deixou a direção do tal conde, realmente espero que estejam chegando minhas cartas.
Paris tem tido momentos sombrios no espectro político e social, isso desde que Napoleão caiu nas mãos de Frederico, O Grande, e se viu despido de toda sua majestosa glória divina concedida pelo Papa Pio IX e sua igreja. Foi uma guerra santa feita por pecadores e desgraçados que banharam o centro da Europa.
Recordando que quando voltávamos a casa na longa viagem que fizemos, antes que se molhasse a pena e manchasse o papel, os comunas assumiram as rédeas da nação com o apoio das Forças Nacionais.
Por culpa daquele detrator e infame Adolphe Thiers. Ele que ao invés de entender o valor do sangue derramado, não pelo infeliz ex-presidente e imperador, mas pelo próprio povo, fechou a boca e se recusou a dar valor a honra de nossos irmãos de trincheiras, assim como de suas famílias que derramaram lágrimas.
Meu amigo, tudo tem custo, não é mesmo?
Apenas um pesadelo após o outro!
Vimos os horrores da guerra longe de casa, para voltar ao final de 1870. Desde o início do ano de 1871, por volta de março, penso eu, fora possível notar que aqui também poderíamos sangrar, não contra inimigos externos, países estranhos, mas contra nossos vizinhos, primos, irmãos e pais. As
A hora em que te escrevo essa carta é no silêncio da noite, Bernie está dormindo no andar superior, enquanto estou acompanhado de duas garrafas de um bom vinho tinto produzido na vinícola de meu primo Ghutier. Nada como o doce sabor da uva para soterrar as más lembranças e curar velhas feridas da alma.
Recomendo como seu amigo esse tratamento tão singelo, mas de excelente resultado.
Talvez por essa razão eu esteja te escrevendo esta carta, parte de uma clara preocupação com seu bem-estar, e com a nossa amada França.
Vivemos um tempo de efervescência social nunca vista em nosso país, já que ainda existem núcleos de descontentes com governo provisório e por sua falta de força e respostas perante o fracasso de Napoleão frente a Prússia.
O ano apenas está na metade e parece que já viveremos o apocalipse dos textos sagrados!
Já que Versalhes está com o governo provisório e Paris passou um tempo nas mãos dos comunas. É de se pensar quanto ao sacrifício que estes revoltosos estão dispostos a fazer. Lutam pelo poder popular, poder do povo. Querem reinventar a roda? Difícil crer que eles poderiam conseguir algo sem o povo ao seu lado, menos ainda sem os mosquetes que os nobres conseguem armazenar.
A política tem muitas faces, meu amigo.
Enquanto nós, enfrentávamos outra nação pelo poder do presidente da segunda república francesa, Charles-Louis Napoleão Bonaparte. No quintal nosso borbulhava sentimentos de inconformismo que tomaram as ruas. Inegável a destruição causada em Paris, ruas manchadas de vermelho, bloqueios, cartazes a favor da comuna por todas as partes. E os livros de um tal de Victor-Marie Hugo, dizem que ele saiu da região de Besançon. Este homem que motivava por meio de suas obras a já existente e crescente insatisfação contra o poder vigente no país.
2 de setembro de 1870, a dobrada de joelhos de Bonaparte, a fome, a crise social, a guerra tudo parecia conduzir para essa situação catastróficas que foi essa revolta de Paris, ao não aceitar a rendição.
O que também apoiei até certo ponto.
Admito que o problema tão logo foi a infestação dos comunas que se viam bebendo das fontes prussianas dos pensadores críticos da produção favoráveis e da luta de classes. Muitos não viram o racha que isso poderia causar.
Ali nasceu a divergência, bem no meio dos defensores de Paris e o governo provisório contra uma possível luta em solo francês contra os prussianos.
Acho que o vinho começa a me fazer devagar, meu amigo. Novamente espero ter notícias tuas. Amanhã irei aos correios, se conseguir levantar.
De seu irmão de trincheiras,
Maurice.
Anton S. Miahi IV
(Anotações feitas em Séttimor)
24 de junho — A curiosidade me levou por caminhos que admito eu desconhecer, e mais que isso, sou imerso em assombro proveniente dos recantos distantes do imaginário humano, com verdadeiras visões que fazem minha racionalidade falhar.
Aceitei entrar na casa de um dos ditos moradores do povoado oculto no vale abaixo do Castelo Drácula. O lugar é lúgubre, funesto. Olho aquelas pessoas, algumas nem mesmo face mais tem, no entanto, sinto nelas angústia, medo, e algumas, noto a completa ausência de esperança.
Por diversas razões, encontro-me imerso em um tormento psicológico que remete diretamente às tendas dos socorristas durante a guerra Franco-Prussiana. Esses cenários, uma vez repletos de desesperança e dor, agora se desenrolam em minha mente como um pesadelo eterno. Naqueles campos de batalha, os olhares dos moribundos, resignados ao seu destino cruel, eram apenas sombras de um sofrimento interminável.
Aqui, neste lugar desolado, sinto a mesma sensação de derrota avassaladora. Não há nada que inspire ou motive; apenas um vazio absoluto. O ambiente é um eco da minha experiência, uma paisagem desolada onde o ânimo e a esperança parecem ser conceitos estrangeiros, pertencentes a um mundo distante e inalcançável.
Nesta cidade, a ambição pela vida é um resquício remoto do que eu conhecia. O espírito de luta que uma vez me impulsionou agora parece ter sido extinto, substituído por uma desolação fria e implacável. Cada dia aqui é uma lembrança do desespero que experimentei nos campos de batalha, uma contínua crise emocional onde o desejo de viver é uma memória dolorosa e distante.
Uma sensação de um luto constante, o ar parece viciado, angustiante, que nos remete a tormentos passados. Estou aqui há poucas horas e já me sinto quase no mesmo estado emocional que essas pobres criaturas.
As casas de ripas e toras de madeira escura, com seus telhados pontiagudos como garras estendidas ao céu, exalavam uma sensação de decadência eterna. Embora não estivessem se desfazendo, a idade delas era palpável, como uma entidade maligna que se recusava a partir. Musgo verde-escuro rastejava pelas paredes, e ervas retorcidas subiam como dedos ossudos, emprestando um ar de abandono e desespero. A cada sombra lançada pelas casas, o ambiente ficava mais opressivo, como se a própria vila respirasse o medo e o espalhasse pelo ar frio e denso.
Por dentro, o lugar exalava uma estranha e enganosa sensação de aconchego, envolta em suas limitações desconfortáveis. Ervas pendiam na janela ao lado da porta, secando lentamente, emitindo um odor forte e acre que se misturava ao cheiro persistente de fumaça velha e fuligem. A lareira rústica de pedra, marcada por anos de uso, exibia manchas negras de fogo e fuligem, espalhando uma luz trêmula e vacilante pelo ambiente.
Apesar de uma aparente limpeza superficial, havia uma sensação de desordem oculta, como se algo sinistro estivesse apenas aguardando para se revelar. O ar carregava uma mistura de cheiros: carne seca pendurada, ervas em decomposição e um leve aroma de mofo, criando uma atmosfera sufocante e opressiva.
O que mais me perturbou foi a ausência total de símbolos da Igreja Romana. A ausência de qualquer sinal de fé comum na Europa era inquietante, deixando a impressão de que o lugar seguia crenças antigas e esquecidas, talvez até proibidas.
No canto oposto à lareira, uma escadaria estreita e escura subia para o andar superior, envolta em sombras espessas que pareciam pulsar com uma presença invisível. Panelas de pedra e partes de animais penduradas nas paredes completavam a cena macabra, transformando o que poderia ser um refúgio acolhedor em um antro de mistério e terror.
Percebo que um jovem do meio daquelas pessoas no lado externo da casa se aproxima da dela. Seu rosto ainda existe, seu corpo é pequeno, magro, mas não raquítico, suas roupas são tão puídas. Não parece estar com mais de vinte anos, seu rosto expressa ansiedade e lampejos de gato curioso. Os olhos são da cor vermelha, sua respiração libera uma neblina, ou melhor, é mais semelhante a uma suave fumaça, como um fumante, porém, sem cachimbo. Ele caminha rápido e se senta na cadeira na frente da mesa onde me encontro.
— Senhor, como está o mundo fora da vila? — Ele pergunta como uma inocência e sinceridade infantil.
Então uma voz de uma mulher se escutou no mesmo instante que notei seus passos pesados nas escadas. Era vigorosa, aguda, com um suave sibilar ao final das frases.
— Deixe o nosso visitante em paz, Andrei. — Seu tom era como a bronca de uma mãe ou uma mulher mais velha. Olhei fixamente para escada e quando ela surgiu, creio eu que esperava muito que ela fosse mais humana, no entanto, não. Ela tinha os mesmos traços que os demais. — E qual o nome do cavalheiro?
Demorou uns quantos segundo para que meu cérebro voltasse a se comunicar com minha boca.
A imagem daqueles indivíduos fora da casa, tanto quanto, os dois que ali estavam perturbavam minha mente. Seus corpos disformes, os rostos tão perturbadoramente anormais.
A cada instante, meus dedos apertavam com mais força a bainha do meu sabre, como se apenas o contato com a arma pudesse afastar a crescente sensação de pavor. Mesmo percebendo uma aparente tranquilidade na cidade, meu coração batia descompassado, cada pulsação reverberando em meus ouvidos como um tambor de guerra.
O ar parecia carregado de uma presença invisível, uma energia que se enroscava em minha pele como um manto sufocante. Sentia um frio gélido subindo pela espinha, e uma voz sussurrava insidiosamente em minha mente — “Corra”, “Fuja daqui!”.
Os odores ao meu redor eram intensos e perturbadores: o cheiro metálico do medo, misturado com um aroma acre de mofo e decomposição, impregnava minhas narinas, mais do que das ervas ou da carne seca, tornando a respiração difícil e pesada. A luz pálida do dia parecia ser sugada pelas sombras, que se alongavam e se moviam antinaturalmente, como se tivessem vontade própria.
Cada som era amplificado na quietude opressiva: o farfalhar das árvores, o uivo sombrio do vendo soprando, os passos ecoando do lado de fora da casa, e um sussurro distante que parecia vir de todos os lados. Meus sentidos estavam em alerta máximo, cada fibra do meu ser gritava para eu deixar aquele lugar. A cidade, com sua aparente calmaria, exalava uma malevolência silenciosa, uma promessa de perigo iminente que não podia ser ignorada.
— Me chamo, Sargento Anto Stefan Miahi. Oficial e pesquisador vindo de Paris para estudar os documentos que o Conde Drácula tem em sua posse. — Admito que falar com eles fez com que lembranças viessem e revisassem emoções que eu havia pensado ter superado. — E a senhora como se chama? — Perguntei com toda cortesia que me era possível evocar.
— Sou, ou é como resolveram me chamar, Catalina Rusu. Então o jovem mestre Anton, está como convidado do conde? — Aquela senhora expressou o que parecia um sorriso amargo.
Antes que eu pudesse tentar dizer algo, ela retomou.
— Nem todos são aceitos na morada do Drácula… —Soando quase um murmuro, sua voz carregada de suspense. — E menos ainda aos cuidados de Olga Nivïttz, onde segredos sombrios são guardados!
— Quem seria essa Olga Ni… Nivïttz? — Ficou clara a minha completa ignorância quanto aquela pessoa. — Que segredos a senhora se refere?
Todos que estava prestando atenção em nossa conversa do lado de fora da casa se entre olharam com notório espanto e crescente receio.
— Em algum momento conhecerá ela acredite em mim. — Falou o jovem sentado de frente comigo. Com os braços cruzados, olhando para o chão como se estivesse com medo de que a mãe escutará aquelas palavras no como ao lado no meio da noite.
Naquele momento, uma sensação de inquietação tomou conta de mim. Instintivamente, minhas mãos tremiam quando fui olhar meu relógio de bolso, com o emblema da cavalaria gravado. Fiquei paralisado ao ver que os ponteiros estavam imóveis, congelados. Um frio gelado percorreu minha espinha outra vez — será que o relógio havia parado exatamente agora? Isso não fazia sentido. Quando o trouxe de Paris, ele estava funcionando perfeitamente. E, enquanto me preparava, não percebi se havia algo de errado com ele.
A ansiedade apertava meu peito, e eu me vi obrigado a olhar pela janela aberta. O céu lá fora estava inalterado, a lua ainda no mesmo ponto alto que havia visto ao sair do castelo. Mas a pergunta aterrorizante começou a me atormentar: quanto tempo havia passado desde então? A sensação de confusão e a crescente angústia se entrelaçavam, como se o tempo estivesse se esticando e se deformando de uma maneira incompreensível, e eu estivesse preso em um intervalo de terror absoluto.
De Dr. Christopher V. Walker
(Carta para Anton)
De: Dr. Christopher V. Walker
Para: Anton S. Miahi
20 de junho de 1871
Caro colega, sinto não haver podido estar na sua partida de Paris. Mas graças a Marcel nosso bom amigo em comum pude saber para onde enviar meus desejos de sucesso.
Por pouco não o alcancei antes que pisasse na carruagem, mas por questões acadêmicas fiquei retino na universidade de Oxford com umas quantas palestras. E acabei atrasando minha viagem para Paris. Queria haver podido dar um abraço e entregar uns quantos livros para seu divertimento. Devo dizer que fiquei demasiadamente surpreso com o quanto nossos amigos britânicos avançaram em suas pesquisas com referência a mente, ao corpo, e alma humana.
Existe uma revolução intelectual ocorrendo e Paris se perdendo entre baioneta e pólvora. Inacreditável os efeitos que a guerra terá nos anos que viram.
Querido amigo, espero que esta carta chegue o mais rápido possível, desejo ter notícias suas. Aproveitei e junto a ela estou enviando um pacote com livros que consegui em Oxford que espero que te entretenha por algum tempo. Estarei nos arredores do Boulevard Saint-Michel no cortiço de Anne e Morgana.
Do seu estimado Dr. Christopher V. Walker!
Anton S. Miahi V
(Anotações feitas em Séttimor — II)
24 de junho — Parece que as horas foram passando, o ar de tensão que senti ao chegar foi suavizado, porém não desapareceu. Ainda me mantenho com os sentidos em alerta, o corpo parece enrijecido, os músculos doem, sinto dormência na mão que está segurando a bainha do sabre. Apesar de sensação de tempo avançar, a lua seguia em seu firmamento, admirando do alto todo o antinatural cenário que se desvelou ao meu redor.
A Catalina, a senhora que me abriu as portas da sua casa, foi até as ervas na janela e pegou um pote pequeno de argila, com um couro de animal amarrado, tomou um tempo escolhendo alguma coisa dentro dele. Ela retira de dentro o que parecia serem casca de romã desidratada, ela devolve o invólucro ao seu lugar e caminha em direção da lareira que está acessa. A senhora retira uma haste de ferro longa que numa ponta é em formato de L que ela encaixa em duas argolas que estão uma em cima da outra, presas na pedra na borda da lareira. Enquanto na outra é um gancho quadrado, nesta ponta ela coloca uma velha chaleira que estava sobre uma mesinha e que ela havia cheio de água do balde que estava ao lado da lareira, muito bem escondido. A dona da casa faz tudo com cuidado, coloca no recipiente cheio d’água e logo o leva ao fogo.
Catalina rompe o silêncio.
— Cada um de nós “nasceu” na vila, e ao adentrar ao paradoxo, começamos nossa jornada. — Começou ela a contar com um tom professoral que Anton já conhecia bem, pois ele mesmo usava. — Aqui, estamos presos no paradoxo. Você deve entender as sete mortes que nos conduziram até este destino.
Ela fez uma pausa e seu rosto disforme parecia assumir um pesar muito incomum.
Segundo ela, cada um de deles estava condenado a passar por sete mortes, um ciclo implacável que começava no momento em que nasciam na vila. “Nosso nascimento aqui sela nosso destino,” disse ela, seus olhos vazios refletindo a luz da lareira. “Não há escapatória.”
A primeira morte, adentrar ao paradoxo, marcava nosso nascimento. Desde o início, estávamos presos, uma sensação sufocante de predestinação que nos envolvia como um manto frio. Sentíamos o paradoxo durante a infância, uma presença constante e opressiva, como sombras que espreitavam ao nosso redor. “Quando crianças, sentimos algo errado,” ela sussurrava, “uma presença constante, sufocante.”
À medida que avançávamos para a pré-adolescência, percebíamos o paradoxo de forma mais aguda. Os rostos ao nosso redor começavam a se desvanecer, a realidade se distorcia, tornando-se uma pintura borrada de horror. “Na pré-adolescência, começamos a perceber a distorção da realidade,” explicou ela. “Os rostos que se desvanecem.”
Na adolescência, as perguntas surgiam, mas nunca encontrávamos respostas. “Adolescentes, começamos a questionar o que é real,” disse ela, a voz carregada de um desespero silencioso. “Nossas perguntas nunca encontram respostas.” A cada questionamento, a escuridão ao nosso redor se aprofundava, como se a própria vila se alimentasse de nossa dúvida e confusão.
Quando chegávamos à vida adulta, a compreensão do paradoxo nos envolvia como uma teia de escuridão. “Adultos, compreendemos que estamos presos em uma teia de escuridão, nossos destinos já traçados.” A sensação de estar aprisionado se tornava insuportável, cada dia uma luta contra uma força invisível e inescapável.
Na velhice, o desejo de se entregar ao paradoxo crescia, uma rendição silenciosa e inevitável. “Na velhice, o desejo de entregar-se ao paradoxo cresce,” ela dizia com uma voz quase inaudível. “A resistência é inútil.” A resignação se infiltrava em nossos ossos, e qualquer vestígio de esperança desaparecia como um sopro na escuridão.
Um som estrondoso reverberou pelo ar, ecoando como um trovão ancestral. Os moradores, como que em um transe silencioso, começaram a olhar ao redor. O vento aumentou de intensidade, chicoteando as árvores ao redor com uma fúria repentina, enquanto luzes de cores vibrantes começavam a dançar no céu, pintando um espetáculo etéreo acima de nós. O mais surpreendente era a ausência de espanto nos rostos dos habitantes; eles apenas voltaram seus olhares para a entrada da cidade com uma calma quase reverente.
Senti uma curiosidade irresistível e saí para me juntar a eles. Ao olhar na mesma direção, notei uma névoa espessa começando a se formar do lado de fora dos portões da cidade. As runas antigas gravadas nos umbrais começaram a brilhar com uma luz azul misteriosa, emitindo faíscas como se estivessem carregadas de uma energia arcana.
A névoa se ergueu em um redemoinho, girando cada vez mais rápido, formando uma coluna luminosa. Uma luz cegante emanou do centro do vórtice, forçando-me a proteger os olhos com o braço esquerdo. O mundo ao meu redor desapareceu momentaneamente na intensidade da luminosidade.
Então, tão repentinamente quanto começou, tudo cessou. O vento acalmou, as luzes desapareceram e a energia que impregnava o ar dissipou-se, deixando apenas o eco distante do fenômeno. O que restou, em meio ao nevoeiro remanescente, foi uma silhueta. Parecia uma forma humana, imóvel, na parte interna do portão.
A névoa se dissipou lentamente, revelando uma figura enigmática. Vestia roupas rasgadas, sujas e puídas que pareciam feito de sombras, as bordas tremeluzindo com uma luz suave que lembrava estrelas distantes. Seus olhos eram escuros e fundos com um vermelho profundo.
Os moradores, como que movidos por uma força invisível, correram em direção ao novo visitante. Seus rostos mostravam uma mistura de expectativa e aceitação, como se esperassem por esse momento. A figura misteriosa permaneceu imóvel, observando tudo com uma calma serena, emanando uma presença que parecia, ao mesmo tempo, inocente e perdida.
Eu, paralisado pela cena impressionante, sentia uma mistura de ansiedade e fascínio. A cidade de Séttimor, já envolta em mistérios e segredos, revelava agora mais uma camada de seu enigma. A chegada desse ser, envolto em magia e luzes sobrenaturais, marcava o início de algo profundo e transformador, um evento que todos, mais que eles eu, sentiríamos em nossas almas.
Presenciei algo que não podia explicar, quero dizer, já não consegui quanto aos moradores que já estava vendo, agora com este novo evento me vi desprovido de argumentos, não havia nada em que eu pudesse me lastrear. Minhas pernas bambearam. Apenas cai no chão sem ter o que pensar.
Os moradores vieram em festa pelo novo membro daquele pequeno vilarejo. Aquilo era o nascimento? Era daquilo que a velha Catalina falava? Eles vinham assim para este mundo?
— Vamos jovem Anton, levante-se, hoje temos o que comemorar! — Falou a Catalina da porta de sua casa. — O novo nascido e a chegada de um estrangeiro. Hoje é um bom dia — Disse ela com uma suave e doce. Seu rosto expressou um sorriso, ou parecia ser.
Momentos, ou horas, mais tarde — Voltei para dentro da casa de Catalina e conversei com ela sobre a história da cidade e de seu tempo naquele lugar, enquanto isso observava pela janela a corrida que se fazia para preparar um grande banquete, os homens e jovens carregando madeira, os bancos de madeira, a levar algumas mesas, todos eram bem-organizados. A fogueira no centro da cidade, e para as pequenas espalhadas ao redor dessa, eles as alimentavam para que colocasse as carnes para assar. As mulheres se apressaram em levar os pedaços de carne para a praça, ervas também eram carregadas, óleos e outras coisas.
Catalina veio até mim com uma caneca de metal batido.
— Acho que ainda não comeu, é bom que pelo menos com esse chá aguentará um pouco mais até que tudo esteja pronto. — Ela me entregou a caneca com cuidado, sua presença, apesar da aparência, era acolhedora.
O chá feito de casca de romã, admito, não era meu favorito entre os tipos, mas o cheiro era agradável e parecia que ela havia agregado no preparo, mel. Sorvi um pouco do líquido quente e seu sabor era suave, refrescante e na doçura adequada. Uma coisa que notei era que o ar frio que sentia fora da cidade era muito menor dentro dela. Como se o clima fosse menos agressor aqui, no interior dos muros de Séttimor, do que fora.
Quando me dei conta, eles já tinham terminado de montar tudo. Deixei a caneca sobre a mesa e fui até a porta para observar melhor aquela festa que estava começando. Estranhamente, o tempo neste lugar era algo estranho, eu não sentia sua passagem, e para ser sincero, desde que cheguei no Castelo isso não me incomodava de verdade. Agora que penso dormir, não dormir, parecia não dar diferença.
Eles tinham tambores e tamborins, alguns carregavam instrumentos de cordas. Um começou a tocar o com as mãos nuas. As batidas dos tambores ressoavam no ar com uma força hipnotizante, cada golpe profundo e reverberante ecoando como o coração pulsante da terra. Os ritmos, inicialmente lentos e graves, criavam uma tensão quase palpável, como se o próprio ar estivesse carregado de eletricidade. Era algo que eu nunca escutei, não eram as músicas dos bailes, era algo mais primitivo, selvagem.
A cada batida sentia o coração pulsar, então notei que alguns pareciam se submeter as batidas a melodia. Começavam a se reunir ao redor da fogueira principal, as jovens almas ali presentes moviam seus corpos com suavidade, delicadeza e sensualidade. Cada mover dos quadris, a ondulação era um poema de elegância e sensualidade, fluindo suavemente como um rio que conhece bem seu curso. Com um sutil balançar, elas evocavam a cadência de uma melodia antiga, um ritmo que falava de mistérios e histórias esquecidas.
Os quadris das dançarinas eram a expressão máxima de seu controle e liberdade. Suas mãos no alto com movimentos sutis, delicados reverenciando os céus. Um convite ao desejo, ao sonho. O mergulhar na loucura. Em cada movimento, havia uma mensagem silenciosa de confiança e poder, uma demonstração de que a beleza reside nos detalhes e na capacidade de contar uma história sem palavras. E assim, com cada balanço e ondulação, ela cativava e encantava, transformando a dança em uma experiência verdadeiramente mágica.
Os dançarinos homens avançavam com passos firmes e decididos, emanando uma energia viril que preenchia o espaço ao seu redor. Seus movimentos eram poderosos e precisos, cada gesto carregado de força e propósito, como se estivessem desenhando a história de seu povo no ar.
Os pés batiam no chão com uma cadência rítmica, ecoando como tambores de guerra. Os corpos musculosos se arqueavam e giravam com uma agilidade impressionante, combinando resistência física com uma elegância rústica. As pernas, fortes e bem treinadas, marcavam o ritmo com uma precisão quase militar, transmitindo uma sensação de disciplina e coragem.
À medida que os tambores aceleravam, suas batidas transformavam-se em uma cascata de som, cada toque provocando um arrepio na pele. Era uma música que não apenas se ouvia, mas se sentia, reverberando nas profundezas do corpo e da alma. Cada batida era como um feitiço lançado, evocando imagens ancestrais e rituais sagrados sob um céu estrelado.
O som dos tambores parecia invocar espíritos antigos, suas vibrações impregnadas de uma magia antiga e poderosa. Havia algo de sedutor na maneira como os ritmos se entrelaçavam, um convite irresistível para se perder no mistério e na paixão da música. As batidas fortes eram como sussurros carregados de segredos, prometendo revelações ao mesmo tempo, tentadoras e assustadoras.
Nesse momento me vi sendo atraído para dentro daquela dança, eu senti ela me chamar, uma voz na escuridão, insistente e incansável. Algo familiar em minha mente.
E então, uma voz de barítono se ergueu acima do ritmo, recitando uma poesia encantadora na melodia que estava sendo tocada, fazendo uma harmonia sombria.
Do mais profundo emergiu, das trevas,
Uma melodia entoada com requinte,
Jamais ouvindo algum escutou algo tão grandioso,
Um delicado convite, um encanto irresistível.
A composição envolvia, tão sedutora,
Ansiava por ela, com fervor, mergulhar na sandice,
Do longínquo, uma voz ressoava,
Epopeia dos perdidos a me seduzir.
Contorcia-se como serpente encantada,
Atraindo-me como um sortilégio sutil,
No compasso dos seus pés, passos enganosos,
Tal qual fogo-fátuo sobre o campo febril.
Nos alcançava os ouvidos, sinistro e encantado,
Essa enigmática melodia, vida do etéreo,
E assim, imerso em seu mistério profundo,
Para além da vastidão do oculto, em Séttimor o silêncio tumular.
Eu estava completamente imerso em uma experiência sensorial, cada batida da música ressoando em meu peito com uma intensidade quase palpável. As letras penetravam tão fundo na minha alma, rompendo as barreiras e despertando emoções que eu nem sabia que poderiam existir. A música era uma tempestade arrebatadora, e eu me deixava levar por cada acorde, cada nota vibrante.
Então, alguém me entregou uma caneca de cerveja. Seu aspecto era inusitado, quase misterioso, e um aroma robusto e cativante logo se espalhou pelo ar. O cheiro era uma promessa sedutora: malte torrado com profundidade de café fresco e um toque de caramelo queimado. Era como se a cerveja estivesse murmurando segredos antigos, convidando-me a explorar seus encantos.
Ao tocar os lábios, a textura da cerveja preta se revelou um deleite. A espuma, espessa e da cor de um café encorpado, derretia lentamente em uma sensação macia e aveludada. Era como ser acariciado por uma nuvem de creme, a suavidade envolvente proporcionando um contraste delicioso com a intensidade da música que ainda pulsava em meu coração.
E então veio o sabor, uma explosão de complexidade que me envolveu completamente. As notas iniciais de malte torrado se desdobravam no paladar, revelando ricos sabores de café expresso e cacau amargo, cada gole era uma viagem profunda e prazerosa. O caramelo surgia para suavizar o amargor, criando um equilíbrio perfeito, enquanto nuances de baunilha e toffee acrescentavam uma doçura sofisticada e uma profundidade sedutora. Cada gole era uma descoberta, uma mistura mágica de sabores que dançavam na minha boca, prolongando o prazer e deixando um final caloroso e envolvente.
A combinação daquela música intensa e a cerveja preta, com sua textura aveludada e sabor multifacetado, era um convite ao prazer absoluto. Eu estava completamente cativado, mergulhado em uma experiência sensorial que tocava todos os sentidos e me deixava ansioso pelo próximo gole, pelo próximo acorde, pela próxima emoção que me esperava.
Ali estava eu seguindo o ritmo, acompanhando os homens, dançando com eles. Sim, me vi eufórico, dançando como um adolescente. Sorrindo e saltando, acompanhando os homens ao redor da fogueira.
Meus olhos pareciam estar falhando, ou era a desidratação de tanto dançar com o povo da vila, ou a cerveja que já me tomava por completo, mas vi a sombra de outra pessoa emergir do nada. No entanto, não parecia ser um morador de Séttimor, parecia um espírito invocado por aquela música. Sim, miragens, tinha que ser. Uma volta mais ao redor da fogueira e então a silhueta de uma mulher se formou atrás das pessoas. Parei de dançar por um instante, e passei a observar melhor aquela sombra que gradualmente foi ganhando detalhes.
Ela parecia não estar ali, ninguém mais a estava vendo? Ou será que não estavam dando atenção? Será que todos já beberam demais?
Seu rosto lentamente revelava uma pele morena agraciada pela noite, lábios carnudos e charmosos, olhos delineados, um nariz pequeno e belo. Seus cabelos eram longos e escuros, ondulados da raiz até onde eu podia ver. Não parecia ser alta, aparentava ser esguia e suas roupas não eram como a dos locais e menos ainda dos romenos ou francês, o que me indicava que ela vinha de um lugar que desconhecia. Ela começa a se mover, ao que parecia ela ouvia a música que estava sendo tocada. Mas, ela em si parecia uma miragem, sua imagem ondulava.
Os movimentos dela eram, ao mesmo tempo, delicados e vigorosos, uma combinação de força e sutileza que fascinava o olhar. Quando ela girava os quadris, era como se o mundo ao seu redor desacelerasse, fixando toda a atenção na harmonia dos seus gestos. A cada passo, uma promessa; a cada giro, um segredo revelado.
Suas mãos se moviam com uma fluidez quase etérea, traçando padrões invisíveis no ar que pareciam desafiar as leis naturais. Seu corpo, livre das amarras do mundo material, dançava como se flutuasse sobre as ondas da música que preenchia o ambiente.
Em um instante, pude vê-la em toda a sua magnificência. Vestia uma saia leve que cobria seus ombros. Ela balançava com cada movimento, pendendo até pouco abaixo dos joelhos, revelando um jogo de luz e sombra sobre sua pele. Braceletes de metal adornavam seus braços, cintilando a cada gesto com uma aura de mistério e magia. Seus pés estavam calçados com sandálias finas, que acariciavam o chão em passos suaves e ritmados.
A dança tribal que ela executava era um espetáculo de graça e destreza. Seus movimentos eram uma fusão hipnótica de ondulações e giros, cada curva e contorção um testemunho de um domínio profundo sobre seu corpo e a música. Com cada balanço dos quadris e cada rotação sutil, ela exibia uma feminilidade e uma jovialidade que parecia transcender o tempo e o espaço.
Enquanto a música inundava o ambiente com suas notas pulsantes, ela se destacava como uma visão encantada em meio aos habitantes de Séttimor. A dança a envolvia em um manto de brilho etéreo, mas a presença dos moradores muitas vezes atravessava sua imagem, deixando-a momentaneamente desfocada, como um sonho fugaz.
Eu a observava hipnotizado, imerso na magia da melodia e na intensidade de seus movimentos. Ela parecia uma entidade de outro mundo, suas danças evocando um mistério profundo e sedutor que me mantinha cativo. A cada passo, a cada gesto, ela me arrastava mais fundo na espiral de sua dança encantadora, enquanto o som da música envolvia cada canto da cidade, criando um ambiente onde a realidade e o sonho se entrelaçavam em perfeita harmonia.
Um estrondoso som foi escutado, a melodia cessou, todos pararam para observar atentamente ao redor. Nuvens negras se formaram no alto das montanhas, relâmpagos desabaram sobre a terra, linhas luminosas corriam os céus.
Então me dei conta de que fiquei em Séttimor por tempo demais. Eu precisava voltar o baile do conde. Mas sendo sincero, quanto tempo fiquei aqui nessa cidade? Já não sei dizer se foram realmente horas. Comecei a andar em direção do portão da cidade até que alguém segurou meu braço.
— Melhor o senhor não sair agora. A floresta entre o castelo e nosso povoado oculta segredos mortais. E o senhor como visitante pode acabar sendo uma triste vítima. — Era o jovem que veio falar comigo quando cheguei. Sua expressão é de terror. Ele, ou eles, sabiam de algo.
— Quem é você? Do que está falando? — Questionei ele com uma cara de poucos amigos.
— Aqui me chamaram de Ioan. Estou na minha quinta morte, senhor Anton, eu não cheguei aqui ontem. — Sua voz era firme e severa, mas transmitia segurança. — Confie em mim.
Não podia evitar aceitar seu pedido. Inesperadamente um som alto que começou de maneira grave e foi ficando agudo surgiu. A princípio era como o sopro do vento em meio uma tempestade, mas esse era diferente, foi quando me dei conta que era um uivo de lobo. De apenas um viraram dez em tons diferentes. Olhei para o Ioan, então percebi que não era um aviso e um pedido tolo.
As sombras eram solecismos factuais; um ruído medrava-se horrífico. Algo físico entre nós inibia-nos, impedindo quaisquer aproximações; uma divisão vítrea, perceptível…