Milagre Maligno

Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

“Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de mim que minha filha está miseravelmente endemoninhada”.  — Mateus 15,22 

Noutros tempos, quem a conhecera ainda na flor da juventude jamais diria que tal pessoa pudesse chegar a uma situação tão degradante. Após deixar para trás seus tempos de inocência, com seus finos traços e a meiguice infantil, comuns a toda e qualquer criança, Dolores tornara-se uma bela mulher que a todos conseguia agradar: aos homens, por sua inquietante beleza; às mulheres, por sua amizade e simpatia. Maria Dolores, conhecida como D’asdor – nome pelo qual era chamada desde que se amasiara com o italiano Giuseppe Montanari – era uma mulher de estatura mediana, de vastos e longos cabelos negros, definidamente cacheados, caídos por toda a extensão de suas costas; trazia-os sempre soltos, livres como ela mesma o era. Sua pele era fortemente amorenada, num tom firme que dava a impressão de ser macia e sedosa como a pétala de uma rosa negra. Seus olhos eram negros e brilhantes, e traziam em si um brilho enigmático, típico das criaturas donas de seu próprio destino. Eu a conhecia desde que éramos crianças de colo. Como sempre fomos vizinhos, acompanhei e sei de toda a sua estória, menos, é claro, daquilo que ocorria em sua intimidade... 

Nessas exageradas palavras, Nhô Virgílio tentava buscar na memória a melhor definição tanto do talhe físico quanto da personalidade de Dona D’asdor, que em nada se parecia com a horrenda criatura que passara seus últimos momentos amarrada sobre a cama. A diferença entre aquela vaga lembrança e a atual realidade — daquilo que poderia ter sido visualizado por qualquer um — era tão discrepante, que era até difícil acreditar nas palavras daquele honorável ancião. 

Nos últimos quinze anos, quem tivera a oportunidade de estar em sua presença tinha visto uma franzina senhora acamada, desprovida de qualquer movimento nas pernas, desde que sofrera uma terrível queda de cavalo, que a deixara naquela situação. Esse acidente não tolhera sua vida, mas lhe deixara sérias sequelas. Além da perda dos movimentos de seus membros inferiores, adquirira uma aparência doentia e cadavérica, que trazia em si uma profunda nostalgia — típico sentimento que se apossa de tais desafortunadas criaturas. Seus olhos, sem brilho e vazios, estavam sempre vidrados em algum ponto distante, como se pudessem ver muito além das aparências. Talvez enxergassem os tempos idos, com suas conquistas e alegrias, numa época de frescor e juventude, onde tudo eram flores. Ou talvez esses mesmos olhos apenas vislumbrassem um melancólico fim para sua sofrível existência — presa para sempre numa cama, dependendo de outrem até mesmo para suas mais íntimas necessidades. Tal situação era tão definitiva que havia certa unanimidade: Dona D’asdor só sairia da cama direto para o caixão... 

No entanto, contradizendo toda e qualquer expectativa e se contrapondo a qualquer explicação lógica, nos últimos três dias, antes que o sopro da vida abandonasse de vez seu calejado corpo, ela se levantara da cama e iniciara uma verdadeira epopeia pela casa e por todo o seu quintal, correndo de um lado para outro numa ensandecida disparada. Quem, há mais de uma década, não conseguia mover um único músculo de suas pernas, de alguma forma inexplicável, levantara-se de seu leito e, num violento ataque de fúria, se lançava sobre qualquer um que atravessasse seu caminho. Sua aparência tornara-se sinistramente diabólica. Sua pele, que se tornara cinza e ressecada, mais parecia o couro de algum réptil. Suas mãos adquiriram uma feição aterradora e mais pareciam duas horrendas garras, com dedos afinados que terminavam em asquerosas unhas mal cuidadas. Seu rosto tornara-se chupado e cheio de marcas, como se deixadas por varíola. Ela, que nos últimos tempos quase nada dizia e trazia a face sempre fechada, devido à sua triste situação, começara a sorrir de tudo e de todos ao seu redor. Um sorriso sombrio, com traços maquiavélicos, mostrando dentes amarelados e pontiagudos que enfeitavam uma boca de lábios finos — quase ausentes —; boca essa que agora praguejava quem cruzasse o seu caminho, quase todo o tempo blasfemando e dizendo palavras em algum idioma desconhecido. Vez por outra, sentava-se como um cão e uivava para o céu, como se fosse um animal em triste lamento. 

Seu filho Agenor – filho único, e também única companhia – temendo aquele estranho comportamento de sua mãe, logo recorrera aos vizinhos em busca de socorro. Além do medo que sua mãe estava lhe causando, agindo daquela forma, ele também ficara temeroso de que algo pudesse vir a lhe acontecer de pior e que a culpa lhe fosse imputada. O fato de que sua mãe, há tempos entrevada, agora corresse pelo quintal como uma alegre criança também lhe era bastante assustador. De alguma forma, ele ansiava por testemunhas de todo aquele prodígio. E logo sua casa já estava apinhada de gente. Alguns amigos próximos, conhecidos distantes, ou até mesmo simples curiosos, logo foram chegando para verem com seus próprios olhos aquele inverossímil milagre. 

Por um breve momento, por mais estranho que pudesse parecer, aquele fato passou a ser visto como algum tipo de dádiva dos céus. No entanto, quando, dentre os presentes, alguém teve a ideia de fazer uma oração em agradecimento àquele notável acontecimento, assim que as primeiras palavras foram ditas, Dona D’asdor se lançara sobre essa pessoa e, com unhas e dentes, a atacara sem nenhuma piedade, deixando-a em lastimável situação. A infeliz religiosa só não fora morta porque, muito rapidamente, Dona D’asdor fora contida pelos presentes e, mesmo com muita dificuldade, logo fora amarrada à mesma cama onde passara os últimos anos de sua vida. Toda aquela situação levava a uma única certeza: Dona D’asdor estava possuída. Ela não havia sido curada; suas pernas não haviam retomado os movimentos de outrora. Mas, certamente, alguma entidade maligna havia tomado posse de seu combalido corpo e o estava usando para algum tipo de mal. 

Durante toda a noite, Dona D’asdor – ou quem, ou o que, estivesse no controle de seu corpo – tentara, de todas as formas, se ver livre das amarras que a prendiam àquela cama. Num primeiro momento, ela tentara persuadir quem estivesse próximo com palavras de afeto e ternura. Após perceber que tal intento era inútil, tentou utilizar-se de uma hercúlea força que ela não possuíra até então. O esforço para se libertar era tão grande que fazia com que a cama se movimentasse de um lado para o outro pelo quarto. Nesse estágio de violenta tentativa de se ver livre, ela tanto gritava com uma voz bastante sinistra, como emitia diversos sons – tanto de animais conhecidos, quanto de barulhos estranhos, jamais escutados por ouvidos humanos. 

Passado o primeiro momento de euforia, e sendo sabedores de que nenhum milagre ocorrera, logo muitos foram embora. Primeiro, os mais medrosos; em seguida, os menos curiosos; e, por fim, aqueles que nada poderiam fazer a respeito de tal situação e tinham seus afazeres os aguardando. Aqueles que ficaram rapidamente decidiram que um religioso entendido do assunto deveria ser chamado. Como o padre mais próximo distava pelo menos quarenta quilômetros dali, a pessoa escolhida fora o Pastor Ebenézer, o líder religioso de uma pequena unidade pentecostal, inaugurada há bem pouco tempo na região. Numa comunidade de maioria católica, aquele tipo de denominação religiosa fora recebida com certo receio pela população local. No entanto, como o carisma tanto do Pastor Ebenézer, bem como o de sua esposa, era algo bastante encantador, logo conseguiram conquistar a todos, sem maiores dificuldades. Sendo ele uma pessoa bastante prestativa, assim que fora acionado, rapidamente se prontificara a colocar seus serviços religiosos a postos. Até porque um fato como aquele poderia lhe servir como propaganda para sua humilde e recém-fundada igreja. 

Acompanhado de seu filho mais velho – Ezequias, que certamente seguiria os passos do pai, vindo também a se tornar pastor – chegara à casa de Dona D’asdor logo pela manhã. Além do leal e inseparável Ezequias, de vinte e três anos, o Pastor Ebenézer tinha outros quatro filhos: três moças – Rebeca, Ruth e Deborah –, todas em idade de contrair matrimônio, e o caçula, Samuel, com apenas doze anos. Recebido por Agenor – filho da dona da casa e o mais interessado no desfecho daquilo tudo – e por Nhô Virgílio, que a tudo acompanhava com bastante curiosidade, logo ficara a par de tudo que ocorrera até então. Sem mais delongas, acompanhado de seu filho Ezequias, e estando de posse de sua Bíblia, de um saltério e de um vasilhame contendo água benta, dirigiu-se o Pastor Ebenézer ao quarto onde, naquele momento, por algum motivo ainda desconhecido, um sepulcral silêncio se fazia presente. Tanto Agenor quanto Nhô Virgílio recomendaram insistentemente ao pastor e a seu filho que, em hipótese alguma, deveriam soltá-la de suas amarras, independentemente do que ela lhes dissesse. 

Antes mesmo de adentrar aquele recinto, logo à porta, já fora possível perceber a sinistra atmosfera do lugar. O quarto exalava um peculiar cheiro de mofo de cemitério – uma mistura de nauseabundos odores. Algo em decomposição, cheiro de velas e flores mortas – e um saturado e pegajoso cheiro de algo podre. Esse estranho odor se misturava ao cheiro de todo tipo de emplastos e cataplasmas que lhe era ministrado. Poderia ser apenas mais um ambiente comum, como qualquer local onde estivesse um moribundo em restabelecimento, exceto pelo extremo frio que havia no ambiente naquele momento. Mesmo já sendo dia claro, o quarto estava tomado pelas trevas, e fora necessário acender algumas velas para iluminar o ambiente. Dona D’asdor parecia estar dormindo placidamente. Seu semblante era meigo e sereno. Sua face transmitia uma intensa paz interior e, quando o Pastor Ebenézer a olhou de perto, teve quase certeza de que tudo o que ouvira sobre os últimos acontecimentos talvez fosse um ledo engano. Mesmo assim, achou por bem ungir o ambiente com orações e algumas passagens do saltério. Enquanto ele orava e citava salmos, Ezequias aspergia água benta por todos os lugares. Praticamente estavam dando aquele rito por encerrado, quando perceberam que Dona D’asdor estava sentada na cama, em posição de meditação, observando-os calmamente. 

– Que a paz do Senhor esteja contigo, Pastor Ebenézer... – disse ela, com uma doce voz infantilizada. 

O susto de Ezequias fora tão grande que ele deixou cair o vasilhame que trazia nas mãos, espatifando-se no chão do quarto. Pastor Ebenézer respondera prontamente: 

– Contigo também, irmã. Como está se sentindo hoje? 

– Poderia estar melhor, se meu filho ingrato não tivesse mandado me amarrar aqui nesta cama. Se não bastassem todos esses intermináveis anos que aqui estive presa, agora estou amarrada de vez... – respondeu ela, cada vez mais dócil. 

– Aqui fui chamado porque me disseram que a irmã estava tendo uma crise existencial. Creio, do fundo de minha alma, que talvez tenham se enganado quanto a isso, pois vejo que a irmã está bem, gozando de boa saúde e plena lucidez. 

– Sim! Estou ótima, como o senhor mesmo pode constatar com seus próprios olhos. Meu filho ingrato e seu amigo bêbado me amarraram sem motivo e ficam espalhando inverdades sobre mim, tentando difamar uma pobre velha e indefesa como eu. 

Tomado de profunda piedade por aquela pobre senhora e confiando em sua fé – imaginando que, se fosse algum estratagema do demônio para que a libertassem, ele e seu filho conseguiriam manietá-la novamente –, decidiu que a desamarrariam, deixando-a livre outra vez. Assim que uma das mãos de Dona D’asdor fora solta, ela agarrou a camisa de Ezequias e, trazendo-o para próximo de sua boca, mordeu-lhe o pescoço, rasgando-lhe a garganta. 

Com um urro de um animal selvagem, ela comemorou aquela medonha façanha e, ao ver o desespero do pastor, que tentava a todo custo ajudar o filho que se esvaía em sangue e certamente vivia seus últimos momentos, ela disse:  

– Pensou mesmo que um servo do pecado como você estaria à altura de vir até aqui me confrontar? É deprimente saber que pessoas iguais a você não tenham o mínimo de conhecimento sobre quem somos nós, de tudo que podemos e daquilo que sabemos. Nem por um momento passou pela sua cabeça que, quando você abusa de suas filhas, estamos nas sombras assistindo você profanar justamente aquelas que você deveria proteger a todo custo? Pois saiba você, filho de Belial, que o seu abjeto prazer é para nós um saboroso deleite. Aquele que se diz servo do Senhor, alguém que se autodenomina pastor de ovelhas, ser na verdade um lobo voraz. Tirei a vida de seu filho apenas para que você sinta o mesmo que suas filhas sentem quando você as obriga a abortar o fruto de seu pecado de seus inocentes ventres. Mesmo sendo uma criança incestuosa ainda assim é uma criança, e para nós é um deleite inigualável ver o próprio pai causando esse mal à sua própria semente, obrigando suas filhas a serem assassinas de seus próprios filhos... 

Agenor e Nhô Virgílio, que a tudo aquilo assistiam da porta do quarto – pois, assim que ouviram os gritos, vieram tentar ajudar –, olharam para o Pastor Ebenézer com um misto de escárnio e incredulidade, pois já haviam ouvido rumores estranhos sobre o comportamento do pastor com suas filhas, sendo estas proibidas, por ele mesmo, de manter qualquer tipo de relacionamento com outros rapazes, mesmo que fosse da mais respeitosa amizade. As três filhas do pastor, mesmo já sendo mulheres adultas, eram mantidas sempre em casa, sob a mais severa vigilância, sem qualquer tipo de envolvimento social. Pastor Ebenézer, que não dissera uma única palavra sequer, assim que seu filho, desfalecendo em seus braços, dera o último suspiro, lançara-se sobre Dona D’asdor e, num desvairado ataque de fúria, tentara com todas as forças esganá-la, mas logo fora contido por Agenor, enquanto Nhô Virgílio tentava amarrá-la novamente. Dona D’asdor, que gargalhava incontrolavelmente, talvez por isso mesmo tenha se deixado amarrar novamente. 

Não havendo mais nada a fazer naquele lugar, com o corpo inerte do filho nos braços, Pastor Ebenézer se fora sem ao menos dizer adeus. O que se soube depois foi que ele, assim que enterrara o corpo do filho numa cerimônia rápida e simples, abandonara esposa e filhos, lançando-se pelo mundo sem deixar nenhum vestígio de seu paradeiro. Sua esposa e filhos também logo se mudaram, e ninguém mais ouvira falar sobre nenhum deles. Agenor, imaginando não ter outra solução, decidira que, a qualquer custo, o Padre Ozório deveria ser chamado. Pela distância, esse somente chegaria no outro dia. Durante todo esse tempo, Dona D’asdor transitara por diversos tipos de comportamentos, desde o mais dócil até o mais violento possível. Sua selvageria era tão grande que, ao fim do dia, seus dois pulsos já estavam completamente dilacerados na tentativa de se soltar. Pela gravidade dos ferimentos, certamente ambos deveriam estar quebrados. Seus gritos, urros e gemidos eram ouvidos ao redor de toda a casa, a uma distância considerável. O som que ela emitia deixava todos os pelos do corpo arrepiados; até mesmo Nhô Virgílio, um septuagenário vivido e experiente, vez por outra tinha calafrios e se tremia todo de medo. 

Assim que o Padre Osório chegara, trazendo consigo dois auxiliares religiosamente paramentados, nem mesmo quiseram ouvir todos os relatos de Agenor e de Nhô Virgílio, pois já sabiam previamente do que se tratava e, rapidamente, foram entrando no quarto e preparando tudo para o exorcismo. Sendo eles pessoas já acostumadas com aquele tipo de situação – Padre Osório era um sábio demonologista e um exorcista renomado – em menos de uma hora conseguiram expulsar o demônio que assumira o corpo de Dona D’asdor. Assim que se viu livre da maligna entidade que o possuíra, o corpo entrou em um rápido estado de decomposição e teve que ser enterrado com urgência. 

Quando o exorcismo enfim se deu por encerrado e o Padre Osório saíra do quarto, trazendo na face o semblante de mais um dever cumprido, Agenor, timidamente, perguntou-lhe: 

– Minha mãe morreu? 

– Filho, sua mãe está morta há três dias! Aquilo que se levantou da cama e andou entre os vivos, atacando a quem quer que fosse, não era sua mãe... 


Escrito por:
Alex Miranda

Alex Miranda é professor da área de humanas, formou-se em Filosofia e História. Alex sempre foi apaixonado por Literatura, o Terror e o Suspense estiveram presentes em sua vida desde a infância, o que o levou a se aproximar de histórias do gênero. O autor, nascido no interior de Goiás, já possui algumas obras publicadas pela editora Hánoi, as quais: Bar de Suzana (2021) e Segredos inocentes (2023). Alex também possui outras obras em processo de criação. Suas inspirações vão de... » leia mais
15ª Edição: Aesttera - Revista Castelo Drácula
Esta obra foi publicada e registrada na 15ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de abril de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.

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