Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Desperto sobre um chão asséptico, duramente frio, cheirando a desinfectante recém-passado. Sento-me devagar, estou desorientado. Fico imóvel por algum tempo, tentando centrar a minha visão. Tudo treme e vibra. 

O que aconteceu comigo? Depois que minha visão centrou, observo minhas roupas. Estou sentado, com as pernas estendidas. As costas estão apoiadas no canto de um espaço pequeno e quadrado. O chão é de um metal polido e cinza, muito brilhante, eu vejo o meu reflexo distorcido nele, de tão brilhante. 

Eu visto roupas comuns: calça jeans, sapatênis e uma camisa polo vermelha. Não me recordo de onde estava. O que fazia com essas roupas? Onde? Nada vem à minha mente. Um grande vazio, absoluto! Preenchido apenas por perguntas: será que fui sequestrado, será que morri? 

Ouço alguma coisa? Sim! É um barulho muito distante! Sons abafados. Tento identificar de onde eles vêm, cruzo a sala, então a noto. Uma única vela acesa. Ela está exatamente no centro da sala e sua chama... ela parece estar atrelada de alguma forma a mim, ao que eu faço, ao que eu penso... não posso provar, mas sinto isso. 

Quero sair daqui, não me sinto bem nesse lugar. Meus olhos percorrem as quatro paredes. Ao terminar, se desconcertam. Cresce o desespero que meus olhos foram capazes de gerar. Não havia uma janela sequer. Nenhuma forma sequer de abri-la. Sim, a única porta da sala era um tipo de elevador, porém não tinha como abri-la… Eu não conseguiria, não havia como forçar os dois lados a se abrirem, não havia botões para serem apertados e comandá-la. Então ela permaneceu totalmente fechada e impassível. 

Não sei quanto tempo fiquei acordado, mas me sinto desgastado, minha visão pesa. Mas certamente eu dormi, pois estou acordando agora. Minhas retinas registram as mesmas paredes frias e metálicas. Elas, o meu reflexo. 

Meus olhos registraram, meu cérebro notou. A chama da vela está ligeiramente diferente. O fogo que antes aquecia o lugar, com reflexos laranjas e quentes, agora trepida e hesita, com chamas azuis crepitantes. No entanto, o reflexo dela parece que guardou o reflexo de quando eu chegara: amarelado, os tons alaranjados estavam apenas nos reflexos. Deveriam refletir a cor azul, mas pareciam testemunhas renitentes do passado.

Num átimo, a chama da vela apagou-se e acendeu novamente. Agora a cor da chama que as paredes refletiam era idêntica à da chama: um azul intenso e profundo. Sentia que dentro daquela chama havia um universo que me atraía.

Apesar de assustar-me com o reflexo da chama destoante nas paredes, insisto em fazer o meu olhar vagar por elas, em busca de uma saída daquele lugar, cada vez menor na minha percepção. Dou um pulo para trás: ali, nas paredes onde uma luz laranja bruxuleava... ali, agora há um detalhe a mais — marcas de riscos nas paredes fazem meu estômago revirar. Um dos espelhos estava rachado, de fora a fora, na diagonal.

Continuando a vagar pelo que o estranho espelho reflete, chego até ele. Minha própria imagem encara os meus olhos friamente. Do lado de lá, é a imagem refletida quem conduz a ação. Apenas um reflexo de mim, sim. Mas por que meus olhos parecem ser um engodo? Sinto medo, por ela ser deformada e diferente, devido à rachadura que apareceu agora. A única verdade que seus olhos ameaçam entregar é a de que quer me fazer mal. 

Será que aquela imagem sou eu? E, na verdade, eu é que estou confuso? Será que as paredes limpas, lisas e espelhadas do elevador em que me encontro apenas estão refletindo a realidade: uma vela com chama laranja em seu centro; e eu é que estou a imaginar que a chama é azul, que algo riscou e rachou as paredes? Por que as minhas mãos estão arranhadas? 

Sinto um cansaço pesar, minhas pálpebras fazem força para se fechar. Eu luto para me manter acordado. A tarefa é difícil, cansativa, árdua, eu diria que se tornou hercúlea. Como se o meu próprio corpo não fosse meu. Estranho. Eu tento controlar as minhas expressões faciais, mas o olhar hostil do meu reflexo se recusava a mudar, resoluto. 

Acho que dormi nessa cansativa luta de fazer o reflexo do espelho mudar. Por mais que sentisse os músculos do meu rosto se mexerem, o rosto no reflexo estava imóvel e com uma expressão ambígua, ameaçadora. Se o reflexo era eu, por que me olhava com raiva? Se não era eu, por que era igual a mim? 

Acho que agora desperto pela terceira vez nesta sala. Sinto frio. O chão me parece mais frio ou foi a minha temperatura que cedeu? O cúbico do elevador, já não o percebo tão pequeno, ele parece um pouco maior. A vela? Ah, sim, ela está bem menor, derreteu… Agora, está bem mais escuro do que antes. 

Eu próprio me sinto menor. Como se os meus músculos, tal qual a cera daquela vela, tivessem diminuído, tivessem derretido. E parte de minha essência tivesse se dispersado pelo chão, como se eu fosse uma vela de chama azul, igual àquela: triste e pequena; obedecendo a um desígnio além do que ela pode controlar, certa de que ela será, indubitavelmente, não mais uma vela, mas uma mera poça de cera derretida. 

— Estamos quase completos! — uma voz inumana diz, mas entendo claramente o que foi dito. As palavras claras, como água cristalina em meus ouvidos, vindas do outro lado da parede. 

Agora percebo que estou junto à vela, no centro da sala. Eu sou uma criatura dada em sacrifício, a chama azul da vela me disse isso, em meio às imagens projetadas em sua pequenina chama que eu observo deitado. Algo está sendo vaticinado. Meu sangue está sujando o chão, percebo que não só o meu nariz está sangrando, mas todo o meu corpo está se moldando a algo que não conheço, mas já não estranho. 

Mas ela também me mostrou memórias de outras vidas. Outros Jeremias. Um era pai, e abraçava suas filhas no quintal. Outro era policial e dera um tiro na testa de alguém — que horror! Havia outro que era branco, e não negro como eu. Tinha uma criatura estranha, que eu também sabia que era eu — ela passava por ruas, como as nossas. 

Agora desperto pela quarta vez. Flutuamos, eu e a vela, pelo espaço oco. Vejo escamas finas da minha pele se soltarem. Sinto-as desprenderem das mãos, das pernas, das costas encurvadas. Elas vão flutuando pela escuridão, formando uma galáxia, um redemoinho bizarro de peles mortas vagando pela escuridão, iluminadas apenas por uma chama fraca. 

Desespero-me ao perceber que estou me desfazendo aos poucos. Sou como um embrião que desfaz sua casca, sumindo a cada porção perdida no espaço. Não é um processo que pode ser parado. Acho que não. Talvez eu seja só a casca de algo que amadureceu. 

Agora desperto. Vejo a porta se abrir pela primeira vez. A vela está no teto, assim como eu sinto que estou. Não tenho voz, não tenho corpo. Quem eu era, não recordo. Mas isso não importa mais. 

Junto-me aos meus companheiros lá fora… lá fora, no espaço-tempo, eu vejo: somos muitas criaturas. Temos garras e escamas brancas, e olhos grandes e esbugalhados. Nos chamam de observadores… 


Escrito por:
Aryane Braun

Aryane Braun é curitibana por nascimento, amor e dor. Formou-se em Letras pela UFPR e possui duas graduações na área da educação. Atualmente, trabalha em uma biblioteca de um colégio público em Curitiba e adora o que faz, pois ama o ambiente que os locais de ensino proporcionam. Afinal, que lugar melhor para trabalhar do que uma biblioteca para alguém que sempre gostou de literatura, antes mesmo de compreender o que ela representa em seu intelecto?... » leia mais
16ª Edição: Soramithia - Revista Castelo Drácula
Esta obra foi publicada e registrada na 16ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de maio de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.

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