Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Balanço.
O casco range. Lamento surdo.
Engolida pelas ondas que golpeiam sem trégua.
Um céu cinzento-petróleo pesa sobre o oceano esverdeado, fundindo horizonte e abismo em uma só ameaça.
Não há bússola. Nem norte. Nem voz. Sons confusos, abafados. O bater acelerado dentro do peito e o gosto salgado do medo sobe pela garganta.
O barco, pequeno demais para tanta água, parece hesitar. A cada solavanco, uma parte cede — madeira, sanidade, tempo.
E então, longe, como uma miragem feita de promessas secas, surge ela: uma ilha.
Um recorte de terra firme em meio ao delírio líquido. Um alívio quase terno...

... Que dura pouco.

A embarcação gira de repente, sem lógica ou aviso. Um puxão violento arrasta tudo para o lado, depois para baixo. Bem rápido.
O corpo se solta ou é lançado — pelo que? — e mergulha nas entranhas frias do oceano.

A superfície se afasta, distorcida, irônica.
O som se apaga. Os pulmões imploram por uma trégua.
Braços se movem em vão, como se nadar fosse se lembrar de algo esquecido.

Nada sustenta. Tudo afunda.

E no azul-petróleo que agora é vazio, só resta o silêncio.
Denso.
Infinito.
Infamiliar.

Acordou em um sobressalto, o coração anunciando que o perigo estava à espreita. Mais uma vez aquele estranho sonho, pesadelo. Outra vez atrasada, já não tinha munições em seu arsenal de desculpas, e teria que vestir a face da humildade, quando o supervisor viesse lhe cobrar uma postura “mais profissional”. Engoliu o café e enfiou-se dentro de algo que julgou apropriado, ao menos com as roupas ele não implicava mais. Saiu correndo, voaria se pudesse, ruma à delegacia em que trabalhava como investigadora.

Chegando ao estacionamento do local avistou Gustavo, o supervisor, parado de braços cruzados à porta de entrada, pés batendo em descompasso que denunciavam uma visível irritação. “Merda”, a sessão de lamentações seria iniciada mais cedo hoje.

Parou o carro na vaga mais próxima, respirou fundo, como se a rajada de ar preenchendo os pulmões viessem carregadas de fragmentos de coragem. Mas seguiu firme e de cabeça erguida em direção à entrada e, consequentemente, de Gustavo. Quando foi esboçar um cumprimento foi interrompida por uma saraivada de lamúrias, que por incrível que pareça, não tinham relação com o atraso. O caso era sobre um velho homem maltrapilho, de longa barba e cabelos brancos, igualmente compridos, que fora encontrado no centro da cidade, perdido e com sinais de confusão mental e amnésia, de linguajar, aspecto e vestimentas que pareciam ter saído de um livro do século XVIII.

Sem questionar, pegou os documentos que Gustavo lhe ofereceu, e enquanto o homem continuava falando sem parar, ela questionava-se o porquê ele estava tão inquieto. “Por que um idoso perdido era motivo para tanto alarde?”

— Espera! Deixa ver se eu entendi: você quer que eu interrogue de forma bem incisiva um senhor desaparecido, mas por quê? Por que você o está tratando como um terrorista?

— Desculpa, Fernanda. Eu não te contei a pior parte: ele não estava somente “perdido”, mas carregava uma cabeça de adulto, ainda “fresca”, debaixo do braço... Por isso fomos chamados. Preciso de você para descobrir quem ele é e de onde ele veio... Porque eu sei muito bem para onde ele vai!!!

— Uma cabeça... Como assim...

— Entra lá e arranque essa informação dele. Porque se eu for lá novamente... não sei do que sou capaz!

O balanço, aquele incômodo, novamente surgia, mas agora era o responsável por a conduzir até a sala, que naquele dia parecia preenchida por uma turva força. Iniciou o interrogatório, o olhar do homem era um vazio vítreo na maior parte do tempo, mas em certos momentos poderia afirmar que a encarava como se pudesse ver o que trazia dentro de si.

Foram duas horas tentando obter as informações necessárias para continuarem os processos contra aquele homem, mas o idoso sempre conseguia sair pela tangente, como se adivinhasse a próxima pergunta e armasse as defesas como um habilidoso enxadrista.

Fernanda não sabia mais como abordá-lo e sentia suas forças se esgotarem. Em todos aqueles anos de trabalhos tivera milhares de interrogatórios, até mais longos e tensos, mas que não tiveram um peso tão grande sobre seus ombros. Agora entendia o comportamento de Gustavo, algo naquele senhor estava muito errado, — além do fato de estar perambulando pela cidade com uma cabeça humana —, algo inominável e ainda mais intrigante.

Quando pensou em desistir e sair da sala, o homem começou a proferir palavras ritmadas, como um cântico sombrio que a hipnotizou:

Tudo balança, tudo range,
no ventre do mar sem margem.
Azul-petróleo, verde em pranto,
sufoca o céu em seu manto.

Promessa de terra à distância,
miragem feita de esperança.
Mas o casco gira, trai,
e o corpo, ao fundo, cai.

Braços gritam, nada escuta,
a água abraça e transborda a luta.
Silêncio espesso, fim sem chão —
o mar consola como prisão.

Afunda o fôlego, apaga a luz,
e o azul, agora, tudo conduz.
No fundo, onde o tempo é vão,
bate um coração…
e depois, não.

Permaneceu inerte. O som daqueles versos sibilantes causara um pavor similar aos pesadelos recorrentes. Era o mesmo clima soturno, desespero irrefreável e estado incompreensível. O homem já não tinha o olhar vazio, mas aqueles glóbulos pareciam agora preenchidos de uma insinuação astuta. Ele sabia, sim ele sabia dos pesadelos e por isso deliciava-se com a reação da moça.

— Reconheço bem esse olhar... Nos primeiros tempos, o medo é o único camarada. Chamo-me Allant Elirrahz, e outrora julgava-me sabedor de todos os segredos que as entranhas do grande oceano ocultavam. Mas então surgiu ela... uma ilha, formosa como o canto das sereias, que se revelou ser mais do que simples terra firme sobre as ondas...

O tempo dissolveu-se em minúsculos pixels, tudo tornado pó tingido de azul índigo — a mesma cor das criaturas emergidas dos orifícios daquele homem. Tentáculos sinuosos rasgaram o ar, avançando em todas as direções com uma precisão austera e inevitável.

Não houve luta. Não houve salvação.

Um a um todos os presentes foram tragados, arrancados de sua realidade e lançados em outras dimensões fragmentadas — cada qual aprisionado em uma era, um planeta, um tempo diferente, sob o domínio absoluto daquele ser.

Ainda não sabiam, mas o mundo havia sido engolido.

Ficariam submersos para sempre nas águas daquela entidade — onde o tempo não passa. Apenas escorre, afoga. Balança.


Escrito por:
Michelle S. Nascimento

Michelle Santos Nascimento é paulistana, mãe, esposa e amante das artes, em todas as suas formas de expressão, desde que aprendeu que há todo um universo fora dela. Ama as ciências humanas, mas também tem predileção pelas exatas, porquanto é graduada em “Segurança da informação”, pós-graduada em “Gestão de TI” e “Engenharia de software” e trabalha como Analista de qualidade de software... » leia mais
16ª Edição: Soramithia - Revista Castelo Drácula
Esta obra foi publicada e registrada na 16ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de maio de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.

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