Quando os deuses se cansam
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
(Adaptação do conto “A Carona”)
No alto de um dos galhos eternos da Yggdrasil, a grande árvore que sustenta os nove reinos, duas figuras antigas contemplavam o vazio. Acima delas, Asgard reluzia em sua glória estagnada; abaixo, Midgard pulsava com o caos dos mortais. Entre um mundo e outro, o tempo parecia hesitar, preso a num suspiro prolongado dos deuses.
Elas já haviam cruzado cada trilha dos nove domínios — de Niflheim, gélido e sombrio, até o abrasador Muspelheim. Conheciam os segredos de Alfheim e os lamentos de Helheim. Cada canto da existência havia sido explorado, sentido, moldado... e, com o passar das eras, perdera seu sabor.
Nada mais surpreendia: nem a fúria dos guerreiros em Vanaheim, nem a sabedoria dos anões em Svartalfheim. Tudo era apenas repetição. Mesmo os ecos do passado, que antes traziam nostalgia ou orgulho, agora não passavam de ruídos distantes.
Em silêncio, uma delas ergueu os olhos para os céus de Asgard, como quem procura um presságio. A outra voltou-se para Midgard, onde o coração humano ainda batia com força e imprevisibilidade. Havia algo ali — algo incerto, caótico, tolo, talvez... mas vivo.
E, naquele instante, sem dizer palavra alguma, ambas compreenderam: era tempo de descer.
**
Matias dirigia tranquilamente pela estrada deserta, após seu primeiro encontro com Paula. Havia alcançado uma sintonia bem interessante com a moça, o que lhe deu bons pressentimentos sobre um possível relacionamento. Ouvia Black Sabbath em volume baixo para seus padrões, pois não pretendia suprimir os pensamentos a respeito do date maravilhoso de algumas horas antes.
Após passar por um trecho com uma curva sinuosa, foi obrigado a frear bruscamente. O carro ancorou no chão como se houvesse batido em uma parede invisível, deixando seu corpo dolorido. À sua frente, estava uma jovem loira, que aparentava ter uns 20 anos. Vestia um jeans imundo, uma camiseta amarela rasgada e pincelada com manchas de várias cores e tons — sendo a maioria nuances de vermelho.
Olharam-se por alguns segundos e, enquanto ele tentava entender a situação, ela correu até seu carro, abriu a porta do passageiro, entrou e gritou desesperadamente:
— Vai logo, ela está vindo!!!
Matias, ainda atormentado pelo susto, olhava para o nada, e mais uma vez a jovem gritou, enquanto puxava a cabeça dele pelo queixo em sua direção, a fim de se fazer entender:
— Você é idiota, cara? Vai logo, vamos sair daqui agora!!!
Matias despertou do transe em que se encontrava e, ainda sem compreender muito bem a situação, arrancou com seu carro potente, deixando para trás uma mistura de mistério, poeira e fumaça. Após alguns minutos na estrada, e percebendo que não havia ninguém os seguindo, foi recobrando a consciência e perguntou incisivamente:
— Que porra foi essa? Quase não consegui parar o carro, garota. Você poderia me dizer o que caralhos tá acontecendo?
— Eu estava fazendo uma trilha, me perdi na mata e encontrei uma pessoa estranha vestida de preto. Foi isso! — disse, despretensiosamente.
— Tava sozinha?! — perguntou indignado.
— Sim.
— Você é maluca? Fazer trilha num lugar desses... e sozinha!
— Eu sempre fiz isso e nunca aconteceu nada.
— Nunca acontece nada, até que um dia acontece, né?
— Pode ser... — Respondeu, dando de ombro.
Matias não conseguia esconder seu mau humor, todos os seus pensamentos sobre uma noite agradável haviam sido sugados por um problema que não era dele, mas ele não podia deixar a moça sozinha na estrada. Decidiu encontrar um lugar seguro para deixá-la e depois iria embora antes que “sobrasse para ele”.
— Você tem um cigarro? — perguntou a jovem.
— Não, eu não fumo.
— Como assim? Com essa cara e não fuma?
— Quê? “Com essa cara” — repetiu indignado — o que você quer dizer com isso?!
— Bem, olha o que você escuta, olha para suas roupas e tatuagens... pensei que fosse um drogado. — Ela respondeu com uma risada sarcástica.
— Cara, você só pode ter problemas. Eu estou te ajudando e você vem zombar da minha cara? Sua sorte é que minha mãe sempre me ensinou a respeitar e cuidar das mulheres, senão eu ia te jogar pra fora do carro!
— Ei, calma garotão, eu tava brincando — disse levantando as mãos em sinal de rendição, tentando apaziguar a situação desagradável que havia gerado — Aff, você está muito estressadinho!
— Nossa, como você é engraçada...
— Tudo bem, isso foi péssimo mesmo. Vou tentar me redimir com você. Eu também curto esse tipo de música e tenho tatuagens, mas, ao contrário de você, eu curto uns “negócios a mais” ... Se é que você me entende. Aliás, posso usar aqui?
— Eu não disse que não curtia uns baratos, eu só disse que não fumava. Mas usa, ué... O que é que você tem aí?
— Ahhhh, é algo muito diferente de tudo o que você já viu. Eu mesma criei. — Respondeu com um sorriso soberbo e uma piscadela cúmplice.
— Tá, mas o que tem aí?
— Aí você teria que experimentar...
— Tá de sacanagem? Como eu vou usar um negócio que eu nem sei o que é?
— Só vai saber se usar...
Matias permaneceu irritado. A moça era enigmática demais, e ele não gostava desse tipo de interação, pois preferia tudo “preto no branco”, como costumava dizer. Resolveu ficar calado enquanto ela consumia a substância que, diferente das outras que ele estava acostumado a ver, era aplicada na pele como um creme hidratante.
Ela foi entrando, gradativamente, em um estado letárgico, o que deixava Matias ainda mais curioso — mas não a ponto de decidir usar, porque queria chegar logo em casa. “Esta noite infernal tem que terminar!”
Horas e horas de viagem e a estrada parecia não ter fim. Pensou estar perdido, mas não conseguia consultar o GPS, pois o celular havia descarregado. A moça permanecia quase inerte, despertando de vez em quando para reaplicar o “creme”.
O sono começou a bater forte. Matias aumentou o volume e tentou cantar para espantá-lo, mas estava ficando cada vez mais difícil manter-se acordado, precisava de um estimulante o quanto antes, mas naquela maldita estrada, não aparecia um posto de gasolina ou qualquer outro estabelecimento aberto àquela hora.
Depois de um tempo imensurável a estrada foi ficando iluminada por luzes fluorescentes piscantes e Matias imaginou que seu cérebro estava lhe pregando uma peça, então parou o carro no acostamento e começou a chorar desesperadamente.
— Que caralho tá acontecendo? — gritava ele, enquanto esmurrava o volante.
— Essa sensação é boa, né? — a jovem o olhava sensualmente, com um olhar simultaneamente penetrante e gélido.
— Quê? Cara, eu tô cansado e com sono, o que me deixa ainda mais sem paciência. Como isso pode ser bom?
— Você não está com sono... Você só está morrendo, bobinho. Rs.
— Morrendo??? Para mim, já deu! Saia agora do meu carro!!!
— CALA A BOCA!!! Já cansei de você! Você só reclama e reclama, não sabe aproveitar o presente que lhe foi dado... vamos acabar logo com isso então!
Ela abriu a bolsa, retirou outro pote, abriu a tampa e enfiou os dedos, retirando uma quantidade considerável de outro creme, de aspecto avermelhado, e passou no rosto de Matias. Ele começou a gritar desesperadamente. Luzes fluorescentes piscaram por um tempo impreciso, e então, se apagaram. Escuridão. Após suas pupilas se reajustarem à luz natural do luar percebeu que estava preso nas ferragens do carro. Paula jazia ao seu lado, a cabeça caída de uma forma humanamente impossível, mas ainda “ligada” ao corpo por uma fina camada de pele.
Em seus últimos respiros, Matias entendeu que havia batido contra uma árvore e que aquele era seu fim.
Ao lado da janela dele, estavam a jovem de camiseta amarela e uma outra vestida de preto, com metade da face cadavérica, ambas acenaram e riram descompassadamente enquanto falavam:
— Eu falei para você experimentar a outra substância, pelo menos teria morrido em paz... — disse a jovem de amarelo, dirigindo-se a Matias.
— Mas eles sempre insistem em ficar sóbrios até o fim haha. — disse a de preto enquanto virava-se para a outra — Freya, você insiste em inovar, mas acho que prefiro fazer como antigamente.
— Ah, Hela, mas era tudo tão rápido, sem diversão nenhuma... Olha a carinha de desespero dele. E olha como você está estilosa, mesmo insistindo no preto, mais sorridente e sem aquela roupa sem graça. Você precisava disso!
— Que seja! Eu estava entediada mesmo... Só acho asqueroso você ficar se esfregando com essa massa mórbida nojenta feita dos restos deles. Vamos embora, ainda há muito o que fazer por aqui.
E os ruídos finais de Matias foram embalados pelas risadas de escárnio das deusas. Estavam apenas começando a experimentar as novas sensações que as mortes e os corpos humanos poderiam lhes proporcionar... E ainda havia uma longa estrada à frente...

Michelle S. Nascimento
Michelle Santos Nascimento é paulistana, mãe, esposa e amante das artes, em todas as suas formas de expressão, desde que aprendeu que há todo um universo fora dela. Ama as ciências humanas, mas também tem predileção pelas exatas, porquanto é graduada em “Segurança da informação”, pós-graduada em “Gestão de TI” e “Engenharia de software” e trabalha como Analista de qualidade de software... » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 17ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de junho de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
O arvoredo de carvalhos era rodeado por árvores altas e robustas que se aglomeravam em formato circular, um pequeno riacho se estendia…