A Harmonia do Acaso
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
“Vós que aqui entrais, abandonai toda a esperança”. — Dante Alighieri
Existem dias em que todas as forças do Universo se unem para que o acaso possa acontecer de uma forma que nada, nem ninguém possa desconfiar que uma Força maior talvez tenha interferido no destino de alguém. Os fatos ocorrem de forma sincronizada, uma simples ação desencadeando outra e mais outra até que algo inevitável aconteça. Naquela madrugada, após chegar em casa às três horas, depois de mais uma noite de bebedeira, Antônio jamais esperaria que o dia seguinte lhe traria dissabores inomináveis. Como lhe era de costume, chegou em casa, procurou algo para comer, descalçou os sapatos e, ainda mastigando um pedaço de queijo velho – de há muito tempo abandonado na geladeira – jogou-se na cama do jeito que estava e logo caiu no sono, sem se preocupar que a vida teria que continuar dali a algumas horas.
Acordou assustado com o telefone tocando e com o barulho de uma buzina de um caminhão que havia acabado de dobrar a esquina. A casa em que morava – um apartamento de dois quartos no segundo andar de um sobrado antigo – situava-se numa esquina bastante movimentada àquelas horas da manhã. Aquele barulho lhe arrancara de seu sono pesado e o trouxera de volta à sua dura realidade. Ainda meio zonzo pelo susto, ao olhar para o rádio-relógio – que ele esquecera de programar o alarme – na cômoda ao lado da cama, logo se colocou de pé num sobressalto. Estava bastante atrasado para o trabalho. O relógio marcava 08h35, e ele já deveria estar na loja desde as 08h00. Assim que olhou para o telefone e viu que o número identificado era do asilo onde sua mãe estava há mais de dois anos, o ignorou por completo, pensando consigo mesmo: – Na hora do almoço, ligo de volta para saber do que se trata.
Em menos de dez minutos já havia tomado banho e se barbeado. Foi até a cozinha em busca de algo para comer e, como nada de agradável para uma manhã de ressaca fora encontrado, tomou apenas um copo de leite frio. Já vestido com seu uniforme, foi mais uma vez ao banheiro para escovar os dentes e, sem mais delongas, se encaminhar rapidamente para o trabalho. Ao retirar o creme dental do tubo, talvez devido à pressa em que estava, ou mesmo por falta de perícia, conseguiu sujar toda sua camisa – de cor preta – com uma considerável quantidade daquela pasta branca. Por mais que tentasse, não conseguiu, de forma alguma, deixá-la apresentável. A única solução fora usar a mesma camisa do dia anterior – amarrotada, suja de suor, fedendo a cigarro e a todo tipo de odor que um botequim pode oferecer.
Aquele era um dia que ele, de forma alguma, poderia faltar ao trabalho. Um grande artista da música pop iria pessoalmente até a loja buscar um violão estilizado, que havia sido encomendado há dias. No dia da encomenda do tal instrumento, após aquele momento de trocas de gentilezas entre vendedor e cliente – onde certa intimidade se estabelece –, Antônio se aproveitou daquela oportunidade única – que ele há muito tempo aguardava – e, sabendo de quem se tratava, logo relatou sobre sua paixão pela música e também falou sobre suas composições, que certamente, na voz de um grande intérprete, talvez poderiam se transformar em hits de sucesso. Solicitou então àquele artista que, assim que voltasse à loja – se fosse de seu interesse e sem compromisso algum –, pudesse dar uma olhada rápida em suas composições e, quem sabe assim, encontrar alguma canção que lhe interessasse.
Antônio era um homem talentoso e bastante sonhador. Um indivíduo muito trabalhador, mas também muito irresponsável com suas finanças e bastante negligente consigo mesmo. Já na casa dos trinta anos – tal como sua própria mãe, agora abandonada num asilo – ainda não havia se casado e muito menos conseguido algum tipo de sucesso na vida. Filho de uma professora aposentada, que o concebera já madura em anos, quando já contava com quarenta anos. Essa professora – Tia Adélia – uma bela solteirona que havia dispensado várias oportunidades de casamento em sua juventude, preferindo investir seu tempo e disposição em sua carreira pedagógica, certo dia, num baile de carnaval, sob efeito de uma bebida um pouco mais forte, se deixou levar pelos encantos de um sedutor caminhoneiro que estava de passagem pela cidade. O resultado dessa ébria noite de carnaval viria se apresentar ao mundo nove meses depois, na figura de um belo e saudável menino que receberia o nome de Antônio Augusto.
Como não conhecera seu pai – que certamente morrera sem saber da existência de um filho –, fora criado pelo avô – que também se chamava Antônio – que tentou, dentro de suas possibilidades, lhe dar uma boa educação. Seu Antônio tinha, em parceria com seu irmão Jaime, uma serraria na pequena cidade onde moravam. Foi nessa serraria que Antônio Augusto – chamado Toninho – passou sua infância e adolescência aprendendo todo tipo de coisa: tudo o que prestava e também aquilo que não seria de nenhum proveito.
Esse seu tio-avô, Jaime, era a pior espécie de pessoa que poderia servir de exemplo para uma criança. Não era muito achegado ao trabalho duro, bebia como um louco e fumava feito uma chaminé. Era mulherengo ao extremo e tinha meia dúzia de filhos – nenhum deles reconhecido por ele – espalhados por toda a cercania com diversas mulheres diferentes, mulheres essas de índole e caráter bastante duvidosos. Contudo, não há nada no Universo de que não se retire algum proveito. Tio Jaime, por mais que possa parecer ser um indivíduo completamente imprestável, mesmo tendo ensinado o jovem Toninho os diversos segredos da malandragem, também fora o responsável por encaminhá-lo ao mundo da música, ensinando-o a tocar diversos instrumentos musicais. Tio Jaime era um exímio instrumentista e lhe ensinara tudo o que sabia.
Sua mãe se aposentara no mesmo ano em que ele completara 18 anos. Nessa época, seu avô já havia falecido há dois anos; sua avó morreria no ano seguinte, ficando apenas ele e sua mãe morando numa casa enorme. A serraria fora vendida assim que Seu Antônio falecera. Tio Jaime sobrevivia de sua parca aposentadoria e de um ou outro trocado que recebia de algum aluno que o procurava para aprender a tocar algum instrumento musical, mas também viria a falecer em pouco tempo, após uma vida carregada de lascívia e devassidão.
Como Tia Adélia não via muito futuro para o filho numa cidade pequena, decidira se mudar com ele para a cidade grande. Antônio Augusto – que deixara o apelido de Toninho para trás – tentara de todas as formas seguir carreira como artista. Contudo, não obtendo a sorte e a oportunidade necessárias ao estrelato, se firmara como vendedor numa loja de instrumentos musicais, onde trabalhava há mais de dez anos. Sem o tempo necessário e com pouca paciência para com sua mãe, que na senilidade se tornara irascível e taciturna ao extremo, decidira por interná-la num asilo, onde, para desencargo de sua própria consciência, dizia para si mesmo que ela seria muito bem cuidada por profissionais especializados nessa função.
Aquele dia – que não havia começado muito bem – tinha tudo para ser um grande dia. Ele não deixaria que ninharias o abatessem. Vestiu a camisa do dia anterior – mesmo não estando na melhor das condições –, pegou seu crachá e suas chaves e desceu correndo as escadas para ir para seu trabalho. Sabia que o tão esperado artista só estaria na loja após as dez da manhã. Para isso, ele ainda tinha tempo. A questão era que seus atrasos estavam ficando corriqueiros demais, e a nova gerência da loja já o havia advertido naquela mesma semana quanto a tal situação. Quando chegou ao portão de saída de sua casa, lembrou que estava se esquecendo do item mais importante daquele dia – seu caderno de composições. Talvez fosse a coisa mais importante de toda a sua vida. Por isso mesmo, voltou correndo até seu apartamento e, já de posse de tão importante objeto, desceu mais uma vez as escadas que levavam até a saída. No escuro corredor das escadas, sentiu uma estranha presença perto de si e, ao cruzar o portão de saída, teve a sensação de ter visto um vulto passando por ele. Bastante eufórico com as promessas daquele dia e totalmente absorto em seus pensamentos, atravessou a rua sem olhar para os lados e, quando o fez, a única coisa que viu foi uma enorme mancha verde vindo sobre ele. Num último momento, ouviu um estrondoso barulho que misturava sons de buzina, freadas de pneus e uma forte pancada. De repente, havia apenas o silêncio, e tudo ficara completamente escuro...
... Quando conseguiu, por fim, abrir os olhos, estava num lugar estranho, onde parecia estar anoitecendo, mas não conseguia ver os traços de um entardecer, muito menos o menor sinal de um céu estrelado. Ao olhar para cima, o que viu foi a escuridão de um céu que parecia estar nublado, pronto para descarregar uma tempestade a qualquer momento, mas não havia o menor sinal de chuva. O tempo estava quente e abafado, não havia uma única brisa soprando. Havia um fétido odor de coisa podre pelo ar, como se houvesse um esgoto a céu aberto ali por perto e vários velórios acontecendo ao mesmo tempo, com seus vapores de defunto, velas e flores murchando. Levantou-se e logo quis saber onde estava, mas as pessoas que passavam por ele, caminhando a esmo, agiam de forma estranha, não diziam coisa com coisa. Pareciam estar bêbadas, caminhando trôpegas e falando coisas sem nenhum nexo. Alguns pareciam estar em profundo remorso, pois batiam no próprio peito numa inconsolável lamentação.
Decidiu que o melhor a fazer era tentar encontrar alguém que conhecia, para saber que lugar era aquele e, principalmente, tentar entender o que estava fazendo ali, uma vez que deveria estar na loja para encontrar a pessoa que poderia realizar o grande sonho de sua vida. Caminhou sem destino certo por quase uma hora, sem encontrar ninguém que pudesse lhe dar uma explicação plausível; todos que encontrava pelo caminho pareciam estar muito envolvidos em seus próprios problemas. Ninguém interagia com ninguém, era um verdadeiro “cada um por si e Deus por todos”. Contudo, de algum modo, ele teve a estranha sensação de que Deus não estava presente naquele lugar. Sentindo-se cansado e com um gosto estranho de sangue na boca, com o corpo todo dolorido, como se tivesse sido violentamente espancado, não conseguia de forma alguma se lembrar de como chegara ali. Suas pernas estavam doendo pela caminhada, mas não sentia sede, e até mesmo a fome que o açoitava ao se levantar naquela manhã o havia abandonado. Numa das mãos ainda trazia consigo as chaves de casa, que ele não havia colocado nos bolsos, e na outra carregava seu caderno de composições.
A rua pela qual ele caminhava parecia não ter fim, como se estivesse caminhando em círculos, mas, por mais que andasse, não passava pelo mesmo lugar mais de uma vez, como se estivesse numa cidade infinita. Percebeu que, nas casas, as luzes estavam apagadas e todas as portas – de casas, lojas, botequins etc. – estavam fechadas. Havia pessoas de todas as formas e tipos, as mais diversas, pelas ruas. Todas caminhavam de um lado para o outro, tristes e cabisbaixas, e, quando ele tentava interagir com alguém, cumprimentando-as ou lhes perguntando algo, ninguém lhe dava atenção. Depois de certo tempo, que lhe pareceu ser quase uma eternidade, teve a impressão de ter visto, caminhando em sua direção, sua antiga professora do jardim.
Tia Cecília fora sua professora quando ele ainda tinha sete anos, mas, pelo que se lembrava, ela havia morrido há alguns anos num trágico acidente de carro que colhera tanto a vida dela quanto a do marido e de seu único filho – bastardo, diziam as más línguas. Pelo que soubera, eles estavam voltando de uma festa, onde tanto ela como o marido haviam bebido muito e decidiram que o menos ébrio pegaria a direção. O resultado de álcool e direção fora desastroso. Tia Cecília passou por ele como se fosse um completo estranho e nem ao menos lhe respondeu quando ele a cumprimentou, chamando-a pelo nome. Antônio pensou que havia se confundido. Continuou caminhando e, ao dobrar uma esquina, se deparou com seu Tio Jaime, que esse sim o reconhecera. Pois foi Tio Jaime quem lhe direcionou a palavra, questionando o que ele estava fazendo naquele lugar. Muito satisfeito por ter encontrado um rosto conhecido, mas bastante assustado por saber que era alguém que havia falecido há muitos anos, logo questionou seu tio sobre o que significava tudo aquilo, o que, com certa relutância, lhe fora explicado.
— Este lugar tem vários nomes, filho: Hades, Purgatório, Inferno... Aqui nós o chamamos de Umbral. Território desprovido de todo e qualquer sentimento de piedade, não há fraternidade aqui presente, ninguém parece se importar com a dor do outro. Cada um purgando seus próprios pecados, nesse infinito vai e vem de transeuntes ensimesmados. Vez por outra, aparecem por aqui umas pessoas vestidas de branco, transcendendo uma estranha luz azulada, que escolhem alguns dentre os que caminham e os levam consigo. Para onde, ninguém sabe, até porque os que são levados não retornam para contar, e quem os leva nunca diz nada para os que aqui ficam.
O que sei é que muitos, como eu mesmo, ficam bastante tempo por aqui. Após muita reflexão – e tempo para refletir é o que não falta por aqui – cheguei à conclusão de que o tempo passado aqui depende de como foi sua vida no mundo dos vivos. Pois alguns são rapidamente resgatados pelos seres de luz. Quando alguma criança chega, algum ser de luz já está à sua espera e ela é imediatamente levada. É estranho você chegar no mesmo dia em que sua mãe também passou por aqui. Vocês estavam juntos? Tiveram algum acidente?
Naquele momento, Antônio teve um sobressalto e, todo assustado e trêmulo, disse:
— Como assim? Que história é essa? Minha mãe está ou esteve aqui?
Tio Jaime, após um longo suspiro – ou pelo menos algo que pudesse se assemelhar a tal –, respondeu:
— Cheio de perguntas como todo mundo! Sua mãe passou por aqui mais cedo, um pouco antes de você chegar. Mas, como tinha um coração puro e inocente como uma criança, logo foi resgatada por um dos seres que já aguardava. Ela não chegou a me reconhecer como você o fez. Porém, eu a reconheci de imediato e, como estava próximo a ela, pude ouvi-la quando questionou ao ser que a aguardava: “O que seria de você sem ela para protegê-lo?”. O ser, muito gentilmente, respondeu que você ainda teria bastante tempo para endireitar suas veredas...
De repente, uma forte luz que banhava sua face lhe cegou os olhos momentaneamente, e o barulho de uma buzina quase o deixou surdo. Mas o que mais lhe incomodava naquele momento era o irritante som do telefone que tocava insistentemente. Antônio despertou de um terrível pesadelo, seu estômago estava embrulhado e sua cabeça doía terrivelmente. Ao perceber que o telefone não lhe daria paz, decidiu atendê-lo. Era do asilo onde sua mãe estava internada.
— Senhor Antônio Augusto de Albuquerque?
— Sim! Sou eu.
— Infelizmente, não tenho uma boa notícia para o senhor...
Revisão de Sahra Melihssa

Alex Miranda
Alex Miranda é professor da área de humanas, formou-se em Filosofia e História. Alex sempre foi apaixonado por Literatura, o Terror e o Suspense estiveram presentes em sua vida desde a infância, o que o levou a se aproximar de histórias do gênero. O autor, nascido no interior de Goiás, já possui algumas obras publicadas pela editora Hánoi, as quais: Bar de Suzana (2021) e Segredos inocentes (2023). Alex também possui outras obras em processo de criação. Suas inspirações vão de... » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 18ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de agosto de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa
A morte caminhava ao meu lado. Espreitava em cada corredor por onde eu passava. Morei nesta mansão desde o nascimento e, ainda assim, o lugar guardava…