A Vidente
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
“E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios...”.
I Coríntios 13,2
Numa manhã escura de novembro, muito fria e de constante chuvisqueiro, após o término da missa, que aquele apaixonado casal frequentava regularmente todos os domingos, Odete, a dedicada esposa, participara ao marido seu desejo de consultar as cartas para ver o que o futuro reservava para eles três — estava esperando a chegada de um novo integrante da família antes que aquele ano terminasse. No caminho entre a igreja e sua casa, havia uma loja esotérica onde uma velha cigana atendia regularmente todos os dias, pois, nos fundos da loja, também ficava sua residência. Quem a conhecia — e até mesmo quem tenha usufruído de seus serviços — atestava que ela era uma pessoa de sabedoria incomparável e vidência inquestionável.
— Meu amor... Tenha piedade de minha falta de paciência e de meu suado ordenado. Quantas vezes já falamos sobre esses charlatães, que sobrevivem como parasitas da inocência de pessoas de mentes influenciáveis? Até onde se sabe, ninguém pode viajar no tempo — seja no passado ou no futuro —, sendo assim, prever o que está por vir é algo impossível. Não duvido de forma alguma que aqueles que vivem de fazer previsões o tempo todo, uma vez ou outra, venham a acertar alguma coisa. É como jogar na loteria: quem insiste em suas apostas um dia tende a tirar a sorte grande. — Disse Adalberto de forma bastante carinhosa, para não aborrecer a esposa, que estava vivendo dias bastante delicados para ter qualquer tipo de contrariedade.
— Não estou dizendo que seja verdade, meu bem. Nem mesmo que eu vá acreditar em nada do que ela disser. Estou apenas curiosa. E não se preocupe com seu suado ordenado, eu mesma pagarei pela consulta. — Disse, um tanto quanto irritada com a avareza do marido.
Adalberto, percebendo que a esposa mudara suas feições, mais do que depressa se desculpou e, conduzindo-a pelo braço, logo se dirigiu à porta da loja. O estabelecimento seguia os rígidos padrões desses tais locais de ocultismo: uma fachada em madeira escura, portas de vidraças com cortinas de miçangas e outros penduricalhos servindo de cortina, e um forte cheiro de incenso impregnado no ar. Assim que abriu a porta da frente para que a esposa entrasse, um sino tocou sinistramente sobre o umbral, avisando à cigana a entrada de novos clientes.
A mulher que veio atendê-los era uma impressionante criatura de prateados cabelos, presos numa bela e volumosa trança toda adornada de miçangas e algumas joias. Sua face exibia uma caprichada maquiagem que lhe dava uma aparência bem jovial, apesar de que suas mãos — bastante enrugadas — dissessem o contrário quanto à sua verdadeira idade. Diferente das mulheres mais velhas que Adalberto conhecia, com seus desagradáveis odores de vários tipos de cremes com cheiros diferentes, todos usados ao mesmo tempo, para sua surpresa, ela usava um agradável perfume com suaves notas de flores silvestres e, quando se dirigiu a eles, não tinha o tipo de voz rascante que ele imaginava que todas as videntes teriam, devido ao uso indiscriminado de tabaco.
— Bom dia, adorável casal. Sejam muito bem-vindos à minha humilde casa. Todos me conhecem como Madame Simone, mas podem me chamar da forma que melhor lhes agradar. Em que poderei ser útil a vocês?
— Bom dia, Madame Simone. Se não for incômodo, gostaríamos que consultasse as cartas sobre o que o futuro reserva para nós três. — Disse Odete, alisando sua enorme barriga.
A cigana lhe dirigiu um sorriso encantador e, como soubesse do ceticismo do marido, quis deixar claro a lisura de seu trabalho, dizendo de forma bastante convincente:
— Posso lhes atender de muito boa vontade, com conselhos espirituais, indicações de ervas e pós medicinais para o alívio de algum mal-estar ou até mesmo lhes vender alguma mercadoria de minha humilde loja. Contudo, prever o futuro, infelizmente, não sou capaz, e acredito que ninguém o seja. Não vou negar que, vez por outra, consultamos as cartas, as linhas do destino que todos têm nas mãos e outras coisas mais. No entanto, jamais podemos nos deixar levar por esses presságios; afinal, nosso futuro é fruto de nossas escolhas aqui no presente.
Odete ficou bastante maravilhada com a retórica de Madame Simone; quanto a Adalberto, ficou sem palavras, pois esperava que ela fosse imediatamente lhes extorquir uma substancial quantidade de dinheiro com sinistras profecias de um obscuro e trágico futuro. Completamente desarmado quanto às intenções da cigana, começou a olhar sem muito interesse para uma mercadoria e outra, pegando uma coisa aqui e outra acolá, quando ouviu Odete dizer que, mesmo assim, se não fosse incomodá-la, gostaria que ela lhe tirasse a sorte, fosse essa verdadeira ou não.
Madame Simone pediu que eles a acompanhassem até uma saleta contígua. Era um ambiente odorífero bastante agradável, com uma iluminação leve, quase em penumbra, que trazia certo obscuro charme ao lugar. No centro desse pequeno ambiente havia uma mesa redonda forrada com um belo pano escarlate, com um sorridente sol dourado bordado no meio. Ao redor dessa mesa havia quatro cadeiras em madeira trabalhada, de encosto baixo, na altura da metade das costas, com assento em veludo verde, que dava um toque de requinte ao conjunto da mobília. Assim que Odete e o marido entraram na pequena saleta, a cigana fechou a porta atrás de si e solicitou que os dois se sentassem, também se acomodando de frente a eles.
Uma vez sentados, Madame Simone pegou um baralho e, após uma breve prece com o conjunto de cartas encostado em sua fronte, mais uma vez lhes avisara que não levassem ao pé da letra o que fosse dito ali naquela mesa. De olhos fechados, baralhou as cartas, sussurrando algumas irreconhecíveis palavras num dialeto muito estranho e num tom praticamente inaudível, mesmo para o casal que estava à sua frente, que só sabia que ela estava dizendo alguma coisa pelo fato de seus lábios se moverem, como se ela entoasse uma canção. Logo que as cartas pareciam estar prontas, entregou o baralho para Odete e pediu que ela cortasse o pacote e escolhesse qual das partes gostaria de ver. Com as mãos um tanto quanto trêmulas, Odete partiu o monte ao meio e entregou a parte da esquerda à cigana, dizendo de forma maliciosa:
— Quero essa parte por ser o mesmo lado que fica o coração e também por representar nós, as mulheres, únicas criaturas no universo com possibilidade de dar continuidade à perpetuação da nossa espécie.
Madame Simone deu um leve sorriso, como se concordasse totalmente com ela e, assim que pegou as cartas, distribuiu sete delas sobre a mesa, o que fez com que Adalberto se manifestasse de imediato:
— Por que apenas sete?
— Além de ser um número celestial citado em várias partes das Escrituras Sagradas, como as sete trombetas, os sete selos etc., é também considerado o número da Perfeição Divina, pois no sétimo dia Deus descansou de todas as suas obras. Para nós, os ciganos, representa a sabedoria, a intuição e a capacidade de se adaptar a todas as situações. Sete cartas são mais do que suficientes para aquilo que pode ser mostrado, porque nem tudo nos é revelado. — Disse ela de forma bastante fria, demonstrando estar desapontada por ter sido interrompida.
Assim que a cigana foi desvirando as cartas uma por uma, explicava o significado de cada uma delas. Ao final, estavam viradas sobre a mesa: O Louco, A Roda da Fortuna, A Sacerdotisa, O Julgamento, A Torre, O Enforcado e O Carro. Odete ficou intrigada, pois a maioria trazia em si como significado viagem e mudanças repentinas. A cigana, tentando deixá-la mais tranquila, disse-lhe que as mensagens muitas vezes eram metafóricas, mas, estando ela grávida, certamente haveria mudanças radicais em sua vida e possivelmente algumas viagens também. Disse ainda que ela ficasse tranquila, pois as cartas demonstravam que tanto ela quanto sua filha estariam bem por um longo período de sossego e muita prosperidade.
— E quanto a mim? — questionou Adalberto, curioso.
— As cartas não foram tiradas para você; mesmo assim, uma delas diz que você estará em paz. — Disse a cigana com um ar bastante irritado, primeiro por achar que ele estivesse zombando dela, pois, a cada carta virada, ele dava um sorriso debochado e revirava os olhos; segundo, porque sabia de seu ceticismo; e, por último, por sua evidenciada sovinice, mesmo sendo ele um homem rico e muito bem-sucedido.
Odete pareceu se dar por satisfeita em saber que tudo estaria bem, tanto com ela mesma como com sua amada família. Seu temor era se deparar com algum tipo de profecia aos moldes das peças de Sófocles. Como forma de demonstrar sua gratidão pelos serviços prestados pela cigana, comprou uma sacola cheia de toda espécie de bugigangas e, quando quis pagar pela consulta às cartas, Madame Simone de forma alguma quisera receber, dizendo, por fim:
— Sua satisfação já é uma grande paga pelos meus serviços e, como disse seu gentil esposo: “... não passam de charlatães e parasitas quem vive da boa-fé alheia...”.
Tanto Odete como o próprio Adalberto ficaram boquiabertos quando ela dissera aquelas últimas palavras, já na porta, despedindo-os. Saíram os dois de cabeça baixa, bastante envergonhados pela conduta do marido, que, segundo Odete, sempre falava mais do que devia. Depois de caminharem certa distância da loja, como se temessem que a cigana ainda pudesse ouvi-los, Adalberto, num sussurro quase inaudível, dissera:
— Como ela poderia saber o que eu disse ou deixei de dizer, uma vez que ainda estávamos fora da loja?
— Sinceramente, não consigo te explicar. Apenas sei que: “... há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia...” e que esses ciganos sabem o que dizem.
Continuaram caminhando lentamente por mais alguns quarteirões antes de chegarem até sua casa. Estando eles já na porta de sua residência, assim que Odete se sentou numa cadeira ao lado da porta, ainda na varanda, enquanto ele pegava as chaves para abrir a porta, Adalberto se lembrou que estava sem cigarros e disse que ela o aguardasse ali mesmo, enquanto ele atravessaria a rua e os compraria na loja da esquina. Estava ela bisbilhotando a sacola de compras quando ouviu uma terrível frenagem de pneus e um forte estrondo de metal se chocando contra uma árvore. No entanto, o acidente não era entre um veículo e uma árvore.
Adalberto, além de ser filho único e herdeiro de uma esplêndida fortuna, tinha um pomposo seguro de vida, fato esse que tornou Odete uma viúva muito rica, podendo, ao lado da filha que nascera bastante saudável, desfrutar de uma vida próspera e muito sossegada, como dissera a cigana, que também não mentira ao afirmar que Adalberto estaria em paz. Porque as cartas não mentem jamais: conseguem ver o passado, o presente, o futuro e até um pouco mais...

Alex Miranda
Alex Miranda é professor da área de humanas, formou-se em Filosofia e História. Alex sempre foi apaixonado por Literatura, o Terror e o Suspense estiveram presentes em sua vida desde a infância, o que o levou a se aproximar de histórias do gênero. O autor, nascido no interior de Goiás, já possui algumas obras publicadas pela editora Hánoi, as quais: Bar de Suzana (2021) e Segredos inocentes (2023). Alex também possui outras obras em processo de criação. Suas inspirações vão de... » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 16ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de maio de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
Escrevo esta carta porque devo explicações aos meus familiares e queridos amigos, já que sumi há anos e, decerto, sou dada como morta…