A Melodia dos Sepulcros Esquecidos

Imagem criada por Aslam E. Ramallo para o Castelo Drácula

A bruma gélida da manhã engolia a vila de Oakhaven, transformando as poucas casas em fantasmas cinzentos e o velho cemitério em um mar de lápides disformes. Eu, Ângela Thorne, não pertencia a Oakhaven, nem a lugar algum, na verdade. Minha existência era um eco da própria melancolia que parecia impregnar o ar daquele lugar. Cheguei como um corvo desgarrado, atraída pelo anúncio de uma velha organista que procurava alguém para restaurar o ancestral órgão da igreja local – uma relíquia de carvalho negro e metal enferrujado que, diziam, possuía uma alma própria.

A Reverenda Agnes era uma criatura miúda e envelhecida, seus olhos, contudo, brilhavam com uma luz estranha e persistente, como velas acesas em um túmulo. Sua paróquia, a Igreja de Santa Cecília, era um esqueleto gótico, suas gárgulas observando o tempo com expressões pétreas, suas janelas ogivais escurecidas pelo abandono. O órgão, situado no coro, era o coração pulsante daquele lugar moribundo, um monstro silencioso coberto por um manto de pó e teias de aranha.

Os dias se arrastavam em um ritmo cadenciado pelo tic-tac do relógio da torre, que parecia anunciar a cada batida o fim iminente. Meu trabalho era árduo. Cada peça de madeira, cada tubo de metal, parecia sussurrar segredos antigos, melodias há muito esquecidas. À noite, quando a Reverenda Agnes se recolhia e a vila mergulhava em um silêncio sepulcral, eu sentia a presença. Não era um fantasma, nem um espírito no sentido convencional, mas algo mais sutil, mais antigo. Era a memória da música.

Comecei a ouvir as notas. No princípio, eram apenas fragmentos, murmúrios distantes, como lamentos vindos do solo frio do cemitério adjacente. Mas à medida que o órgão ganhava vida sob meus dedos, as notas se tornavam mais claras, mais definidas. Eram composições que jamais ouvi, harmonias que me envolviam em um véu de tristeza e êxtase.

Uma noite, enquanto limpava as teclas de ébano, encontrei um diário escondido em um compartimento secreto do instrumento. As páginas amareladas, escritas com uma caligrafia elegante e tremida, contavam a história de Elara, a antiga organista da igreja, que vivera no século XVIII. Elara era uma prodígia, mas sua música carregava um tom sombrio, uma obsessão pela morte e pelo luto. O diário revelava que ela acreditava que a música podia transcender o véu da vida e da morte, comunicando-se com os que jaziam sob a terra.

Lá pelas últimas páginas, um desenho me causou um arrepio. Não era uma partitura, mas um diagrama complexo de conexões, quase um mapa estelar, com anotações sobre "ressonâncias etéreas" e "pontos de contato com o véu". E em uma das páginas finais, uma frase repetida várias vezes, com urgência crescente: "A melodia deve ser completa. A melodia deve ser cantada pelos mortos."

Naquela noite, a bruma era mais espessa, o vento mais cortante. As vozes do órgão não eram mais sussurros; eram um coro. Vozes femininas e masculinas, jovens e antigas, lamentando, cantando, e implorando. Senti uma força inexplicável me puxar para o teclado. Meus dedos, como se não fossem meus, começaram a tocar a melodia do diagrama de Elara. As notas fluíram, preenchendo a igreja com um som que era ao mesmo tempo belo e terrivelmente profano.

O chão tremeu. As luzes da igreja cintilaram e se apagaram, mergulhando-me na escuridão mais densa. Mas a música continuou, as vozes dos sepulcros se elevando em um crescendo aterrorizante. Senti as presenças se materializarem ao meu redor, frias e efêmeras. Eram os mortos de Oakhaven, despertados pela melodia que Elara sonhara em completar.

Um deles, uma figura esguia e pálida, se aproximou. Pude ver seus olhos vazios, mas senti sua intenção, uma gratidão sombria. Era Elara. Ela estendeu a mão translúcida em minha direção, um convite silencioso para me juntar à sua orquestra eterna.

O frio me invadiu, e eu soube que não havia retorno. Eu era a condutora da melodia dos sepulcros, a guardiã de um coro que jamais deveria ter sido despertado. O último som que ouvi antes que a escuridão me engolisse completamente foi o do órgão, agora tocando sozinho, uma melodia lúgubre que se espalhava pela noite, prometendo um "nunca mais" para todos que ousassem ouvir.

Revisão de Sahra Melihssa

Escrito por:
Bruno Reallyme

Bruno Reallyme nasceu em 1995, em Governador Valadares, e escreve como quem atravessa véus entre mundos. Autor de poesias, romances, suspenses, terrores, ficções científicas e HQs, espalhou suas criações por antologias nacionais e internacionais, além de comandar o podcast Pingo de Prosa e ser finalista do Prêmio Literário Caneta Vip. Colunista da Genius Vip Revista e curador de Horrores de um Brasil Esquecido, inspira-se em nomes como Pessoa, Poe, Lovecraft, Cecília Meireles e García Márquez, criando narrativas densas e sensoriais que revelam, nos detalhes, o que olhos comuns não percebem.
18ª Edição: Theattro - Revista Castelo Drácula
Esta obra foi publicada e registrada na 18ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de agosto de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa

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