O Coelho Vermelho
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
O solitário castiçal iluminava as cartas sobre a escrivaninha. Sua luz trêmula projetava a sombra disforme do homem sem rosto – um aristocrata cujo semblante ninguém jamais vira. Os rumores sobre sua origem remontavam a séculos, mas sua existência permanecia um enigma envolto na imensidão e silêncio do seu castelo. Apenas alguns servos fiéis, de olhares baixos e lábios selados, lhe faziam companhia.
O homem mergulhou a pena no tinteiro negro. O arranhar no pergaminho ecoava como unhas em um caixão.
"O Conde te espera na celebração dos Láparos. Haverá um baile em prol do Aesttera — Tempo de Conceber Novas Vidas. Te esperamos neste franco deleite", escreveu com caligrafia meticulosa.
Era o décimo quinto ano do ritual. Os Láparos, segundo os antigos manuscritos guardados nas catacumbas do castelo, eram espíritos da fertilidade que exigiam sangue para conceder vida. O Aesttera, ciclo lunar de conceber, aproximava-se do auge.
Mulheres solteiras ou casadas, sem filhos, e homens livres de qualquer preconceito eram bem-vindos. Muitos ignoravam o verdadeiro propósito da celebração, atraídos apenas pela promessa de libertação. O grande evento era visto como um encontro de possibilidades e de escalada social. As melhores joias, as melhores roupas visavam ostentar seus alter egos, que para muitos seriam inalcançáveis caso não fossem ao baile.
A noite chegou com um céu sem estrelas. Coelhos híbridos com humanos, advindos de várias carruagens, rompiam o silêncio espectral daquele lugar. O relinchar dos cavalos misturava-se ao murmúrio excitado dos convidados. Máscaras ornamentadas com penas, joias e cristais escondiam identidades, mas revelavam olhares cheios de desejo, esperançosos pela entrega à libido. O aroma de incenso e almíscar impregnava o ar, enevoando os sentidos já turvos pela expectativa.
Um tilintar numa taça de cristal reverberou pelo salão, evocando a atenção dos convidados que sorriam inocentemente, ansiosos pelo deleite do raro vinho da maçã sangrenta. O líquido escarlate brilhava sob a luz dos candelabros, sua viscosidade deixando rastros rubros nas taças de cristal. Um aroma metálico, adocicado, emanava da bebida.
"Este néctar", anunciou o servo principal, "foi preparado pelo próprio Conde durante o ciclo completo da lua negra."
Eles bebiam. O líquido escorria por gargantas sedentas, esquentando-os por dentro. Comiam. Carnes raras, frutas exóticas, manjares nunca antes provados. Tocavam-se. A princípio com timidez, depois com voracidade crescente. Mas só havia uma única regra: nunca remover a máscara.
E continuavam... As risadas tornavam-se mais estridentes, quase histéricas. Contorciam-se, despiam-se... O som úmido da carne contra carne mesclava-se ao tilintar das joias. Elevavam acima de suas cabeças as taças cheias do néctar afrodisíaco, seus reflexos vermelhos manchando o teto como sangue espalhado.
De seu trono nas sombras, o anfitrião, o homem sem rosto, assistia ao espetáculo daqueles a quem denominava como selvagens. Sob seu manto negro, suas mãos pálidas apertavam os braços entalhados do assento. Era o décimo quinto sacrifício, e cada ano a sede dos Láparos crescia.
"Bebam, velhas bestas, coelhos malditos, hoje celebramos a morte e a vida", e por detrás de sua máscara — única com a cabeça de coelho vermelho, olhos de rubi e pelagem escarlate — projetou sua voz enquanto tilintava sua taça. "Olhem, admirem a origem do sangue que bebem."
Um véu pesado foi removido no centro do salão. E numa gaiola dourada, uma pobre e fértil mulher definhava, pálida como marfim polido, os pulsos cortados e enfaixados, seus olhos vidrados fixos nos convidados. Uma mangueira transparente ligava suas veias à grande ânfora de cristal de onde o vinho era servido. Ela assistia seus algozes deleitarem-se com o viscoso vinho escarlate – seu próprio sangue, drenado lentamente para alimentar a celebração.
Os convidados congelaram. Taças caíram, estilhaçando-se contra o mármore. Alguns levaram as mãos à boca, outros permaneceram imóveis, fascinados pelo horror.
"Os Láparos exigem sangue voluntário," continuou o Conde, sua voz agora mais profunda, inumana. "Ela se ofereceu em troca de riquezas para sua família. Um sacrifício nobre, não acham?"
E a mulher na gaiola, como se esperasse este momento, moveu seus lábios ressecados. "Vocês... todos... malditos..." sussurrou ela, sua voz fraca atravessando o silêncio absoluto do salão. E, destarte, a sua vida esvaiu-se, porém, não com os olhos cerrados, mas fixos em seus carrascos mascarados, em uma maldição silenciosa que cada um deles levaria consigo para sempre.
Por baixo de suas máscaras, imperceptivelmente, pequenos tufos de pelo branco começavam a brotar na pele dos convidados.

Carlos Conrado
Carlos Conrado nasceu na Bahia e hoje vive em São Paulo. Suas formações estão em Designer, Publicidade e Psicanálise. Escritor, ilustrador e poeta, um amante do soturno inspirado em grandes nomes, os quais: Álvares de Azevedo, Lord Byron, Edgar Allan Poe, Baudelaire, entre outros. Identifica-se, portanto, “como um ‘neo simbolista’, colocando o cosmos como meu principal tema de expressão”. Seu livro “Os Segredos da Maçã” está disponível... » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 15ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de abril de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
Embevecida pelo silêncio dos sonhos mais profundos, tudo se externava em suavinura. Andejei sob infinda serenidade por dentre um substancial…