Mansão Blackwood
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
Parte I — Rachaduras
A morte caminhava ao meu lado. Espreitava em cada corredor por onde eu passava. Morei nesta mansão desde o nascimento e, ainda assim, o lugar guardava segredos que eu desconhecia.
As molduras douradas brilhavam sob a luz do meu castiçal — um contraste bonito demais para as rachaduras que se acumulavam nos cantos das paredes. Rachaduras tão discretas quanto as sombras da nossa família.
Cada passo era cauteloso. O ranger da madeira me entregava, mas o resto da casa permanecia afogado em silêncio. Suponho que ninguém tenha notado minha ausência. A madrugada era o único momento em que eu não sentia os olhos do meu pai me seguindo.
O quarto de Cassandra estava logo à frente. Precisei me lembrar de respirar sem sufocar. As chamas das velas oscilavam com a corrente de ar fria. Alguma coisa me chamava. Eu só não sabia o quê. Tinha essa sensação há um tempo. Às vezes, ouvia as paredes sussurrando.
Hesitei ao tocar a maçaneta. Fingi que a tremedeira vinha do frio, mas era outra coisa — medo, talvez. Medo de que ela me odiasse. Medo de que fosse minha culpa.
Olhei ao redor. Quando tive certeza de que ninguém me seguia, empurrei a porta.
Agarrei o tecido fino da camisola. Cada passo até a cama de Cassandra tornava o ar mais espesso, como se eu estivesse mergulhando em um lugar onde respirar era um esforço.
Ela se tornou um punhado de ossos frágeis, prestes a se quebrar com um sopro. Os cabelos ruivos, antes cheios e vibrantes, agora caíam em mechas opacas e grudadas. Afastei os fios úmidos de seus olhos fechados. Senti uma ardência súbita no rosto — só percebi quando as lágrimas escorreram.
Os olhos dela se abriram. Encararam-me com uma frieza que eu nunca conheci.
— Você ainda não desistiu? — Sua voz era tão áspera que parecia ter bebido um copo de areia. Não restava nenhum traço da ruiva vibrante e risonha que eu conhecia.
Durante semanas pensei no que dizer: pedir desculpas, perguntar se ela ainda me amava, dizer que a dor de não saber estava me matando. Mas nenhuma palavra saiu.
Eu não estava pronta para ouvir a verdade.
— Não, e nem pretendo. Com quem você acha que eu aprendi essa teimosia? — Tentei despertar alguma lembrança nela, algo que fizesse sua expressão suavizar. Mas ela continuou imóvel. — Cassie, por favor, me diga o que aconteceu. Estou cansada de inventar explicações.
Nada. O olhar dela estava longe — fixo, morto. Isso me matou ainda mais por dentro.
Cassandra era tudo o que eu tinha desde a morte da minha mãe. Ela foi meu primeiro beijo, meu primeiro toque. Nenhum outro corpo me envolveu como o dela. Nenhum outro coração me acolheu como o dela.
Ela agarrou meu pulso. O toque foi como uma descarga: gelado e fugaz. Sua força não fazia jus à aparência fragilizada.
— Você precisa ir embora — disse com firmeza. Quando abri a boca para perguntar por quê, ela já continuava: — Seu pai acordou. Volte para o seu quarto. Agora.
— Como você sabe que ele acordou? — Cassandra se levantou, empurrando-me em direção à saída. — Espera...
Já estava no corredor quando ela parou na porta, olhos fixos no escuro. Brilhavam como os de alguém que pressente um desastre.
— O que você procura vai te destruir, Teresa.
E então, ela fechou a porta.
Parte II — Cicatrizes
As palavras de Cassandra me assombravam. Cada dia era uma tentativa frustrada para encontrar uma resposta. Por que a verdade me destruiria se quem estava sofrendo era ela? Não fazia sentido, a não ser que Cassandra tenha recebido uma punição para me proteger.
Meu coração foi esmagado por essa possibilidade.
Eu sofreria por ela sem hesitar, mas não podia aceitar que ela fizesse isso por mim. Não quando ela tinha passado a vida se submetendo a trabalhos humilhantes por dinheiro. Chegava a ser ultrajante alguém lhe causar ainda mais dor.
— Senhorita Teresa! — A voz alarmada da governanta me trouxe de volta ao presente. Ela correu até mim com uma toalha. Não entendi sua comoção até ver o sangue pingando do meu punho fechado.
Abri a mão. O sangue tingia minha palma. Marcas de unhas se espalhavam na região. Como pude fazer isso sem perceber?
— Precisa ter mais cuidado, senhorita**. — Ela dizia, enquanto limpava minha mão. —** Não está sentindo dor?
Sua pergunta me causou inquietação. A resposta veio até a ponta da língua. “Sim, estou com dor”, mas as palavras foram engolidas antes que eu abrisse a boca. Essa dor não vinha dos ferimentos de unha. Mas a governanta não era a pessoa adequada para ouvir algo tão íntimo. Eu só revelava esses sentimentos para Cassandra.
Mas Cassandra não estava aqui.
O vazio se abriu como um abismo.
— Use luvas durante a festa, senhorita. Assim pode proteger sua mão e esconder os ferimentos.
Era o que minha família fazia. Escondia todas as cicatrizes com tecidos de luxo. Queria acreditar que alguém naquela casa zelava pela minha proteção além de Cassandra. Nem eu mesma fazia isso. Toda vez que aceitava usar a máscara social de uma Blackwood era uma violação contra mim.
Cada sentimento silenciado deixava uma nova rachadura nas paredes.
Não havia Cassandra para me salvar agora. Eu quem deveria salvá-la, e não fazia ideia de como. Não percebi o quanto era impotente até ver Cassandra sofrendo sem que eu pudesse fazer nada. Era algo muito cruel.
Coloquei as luvas. Olhei para o veludo azul cobrindo as feridas abertas. Sufoquei as lágrimas. Nem uma gota poderia ser vista durante a festa.
Por mais que a dor em meu peito estivesse me estilhaçando.
Parte III — Caos
Sentia cada vibração do violino. Observava os músicos enquanto ignorava as conversas ao meu redor. Não nutria o mínimo interesse nos assuntos enfadonhos dos convidados. Estatísticas, acordos, lucros. Pelo menos, isso os fazia esquecer de virem me questionar sobre casamento.
O salão estava preenchido por homens. Poucos trouxeram suas esposas, a maioria levou as filhas. Eles exibiam as meninas como gado para seus colegas, esperando que algum deles fizesse uma proposta irrecusável.
Nojentos.
Cassandra não apareceu para trabalhar. Ela costumava servir bebidas durante as festas. Sua presença encantava até aqueles que a consideravam indigna de respeito. Ela era radiante e cheia de vida. O oposto da criatura apática de ontem.
O som melancólico do piano traduzia a tristeza em meu peito. Um ato de conforto e desespero ao mesmo tempo.
O que deixou Cassandra daquela forma? Eu iria morrer se não tivesse uma resposta.
“Teresa”
Escutei ela me chamando. Pensei ter sido imaginação, talvez um reflexo da minha angústia. Eu tinha certeza de que ela não estava naquele salão.
Em seguida veio um sopro na nuca.
Cravei as unhas no tecido da luva. Não podia reagir bruscamente na frente dos convidados. A última coisa que eu queria era chamar a atenção.
Devagar, virei o corpo para trás.
Cassandra não estava ali. Em seu lugar, encontrei meu irmão me encarando. O desconforto foi inevitável. Por isso que eu me sentia assombrada. Realmente havia um par de olhos demoníacos sobre mim.
Ele era como um rato, espreitava pelos becos mais escuros e se alimentava da sujeira mais podre das ruas. Desde criança eu via o quanto Thomas Blackwood era dissimulado. Um parasita social em todos os sentidos. E, ainda sim, nosso pai o escolheu como sucessor. Não tinha esperança de carregar o título da família, mas também não esperava ser reduzida como gado.
Eu repudiava cada homem naquele salão.
Algo estremeceu meu âmago. Talvez tenha sido o ritmo do violino se tornando mais frenético.
— Teresa. — Meus pés se encolheram dentro do sapato. Meu pai se colocou à minha frente com uma postura rígida. — Lord Rochester fez uma ótima proposta. Ele é viúvo e experiente, além de te conceder um sobrenome valioso. Você irá se apresentar formalmente para ele após a festa.
Olhei para Lord Rochester.
Ele era mais velho do que meu pai. Quase rasguei a luva quando ele me avaliou com aquele olhar repulsivo. Se Cassandra estivesse aqui, nós duas faríamos inúmeras piadas com aquela cabeça calva. Ela sempre conseguia fazer a pior situação se tornar engraçada.
Mas ela não estava aqui. Não havia mais ninguém para me defender.
— Entendi. — falei contra a vontade. Isso não passou despercebido por meu pai. Tive a sorte de um dos convidados o chamar para conversar naquele momento.
Aproveitei a oportunidade para ir até um ponto mais isolado. O olhar do meu irmão me seguiu. Diferente do nosso pai, ele me encarava com deboche, fazendo uma ameaça silenciosa de revelar meus segredos.
Ele sabia sobre Cassandra e eu? Nunca tive certeza, porém o arrepio em minha nuca dizia que sim.
Encostei na parede. Tive vontade de sentar encolhida no chão e deixar o peso do vazio me afundar. O som do violino me atingiu. As cordas assumiram um ritmo agressivo. Com o punho fechado, desejei com todas as forças que Cassandra surgisse no salão.
Mas nada aconteceu.
Me sentia traída pela fé. Traída por Cassandra. Ela precisava ter uma razão inquestionável para ter se afastado de mim. Se ela não tivesse, significava que nosso amor era tão frágil quanto o ego dos Blackwood.
Lágrimas queimaram meus olhos. Não iria suportar segurá-las por muito tempo.
Olhei ao redor. Cada risada no salão me açoitava como ferro em brasa. Isso não era melancolia. O que crescia em mim era uma força muito mais perigosa.
Ignorando as consequências, dei as costas para a festa e mergulhei no corredor. Nenhuma punição poderia ser pior do que cair no choro em frente àquelas pessoas. Elas não mereciam saber o que habitava no meu coração.
Busquei refúgio na biblioteca. Desde pequena, os livros têm sido meu consolo. Lembrava-me de todos os momentos em que minha mãe os lia para mim. Ela possuía o mesmo brilho de Cassandra, seus cabelos dourados reluziam como ouro. Mas uma sombra a levou embora. Meu pai se recusava a falar no assunto, agia como se nunca tivesse sido casado.
E agora se deitava com todas as putas da cidade.
Não queria pensar assim. A culpa não era daquelas mulheres, porém me enojava saber que elas se deitavam na cama onde minha mãe repousava. E era ainda mais insultante o fato de meu pai manchar a imagem dela daquela forma.
Ele e meu irmão eram iguais.
Dois parasitas. Deveria ter colocado arsênico no vinho do banquete e assistir eles engasgarem.
Cassandra fazia essa voz desaparecer. Ela trazia luz aos meus pensamentos obscuros.
Eu precisava dela.
Não poderia viver sozinha nessa mansão. A ausência do seu amor estava drenando a barreira que construímos. Aos poucos, as dores adormecidas começaram a se sobrepor aos meus preciosos momentos com Cassandra.
Não sabia quem eu era sem ela.
E não queria descobrir.
Corri até a janela. O vento noturno me acariciou. Seu toque suave me lembrou de Cassandra. Tudo me lembrava dela, não importava para onde eu corresse. Ela estava em todo lugar, enraizada nas paredes da casa.
Enraizada no meu corpo.
Deveria ter fugido com ela. Poderia ter pegado o tesouro do cofre e ido morar com ela em um lugar distante, talvez no interior da Itália. Por que não fiz isso?
Contive a vontade de gritar.
Poderia ter envenenado meu pai quando tive a chance.
— Cala a boca. — murmurei àquela voz. Não podia deixá-la falar.
Ela não deveria existir.
Mas eu existo.
Sem minha fonte de luz, estou totalmente vulnerável a essa sombra. Apertei a borda da janela. Não conseguia manter as lágrimas sufocadas. Deixei que elas caíssem. Escorreram como ácido nas bochechas.
O vazio se tornava caos.
— Cassie… — murmurei como uma oração.
Senti outro sopro na nuca. Com a esperança doendo no peito, olhei para trás. Alguém abria a porta da biblioteca.
Poderia ser ela?
Dei um passo para frente. Toda a esperança se esvaiu quando encontrei a figura do meu irmão. O sorriso debochado continuava em seus lábios mentirosos. Talvez eu devesse parar de rezar, não acho que tenha alguém me escutando.
— Nosso pai está furioso por você ter fugido. Precisei vir aqui para te levar de volta. — ele se aproximou — Vou falar só uma vez, Teresa. Siga-me de boa vontade.
Quebre os dentes dele com a enciclopédia.
Abri a boca, mas nada saía. O que estava acontecendo comigo? As palavras entalaram em algum canto da garganta.
Thomas me avaliou.
— Está bêbada? — agarrou meu queixo. — Ou estava imaginando a língua da Cassandra na sua vagina? — ele riu em escárnio.
Meu estômago vibrou. Havia uma vontade incontrolável de colocar algo para fora. Eu precisava respirar. Não me lembrava de como empurrar o ar para os pulmões.
— Vá embora. — foi tudo que consegui dizer. Thomas riu com ainda mais zombaria.
— Você é patética, Teresa. Vá embora. — imitou minha voz — Igual a nossa mãe. Não vou me surpreender se um dia você também cortar os pulsos.
Por que nossa família era assim? Havia alguma maldição sobre os Blackwood. Todos na linhagem do meu pai carregavam a crueldade no coração. Minha mãe não deve ter suportado viver nesse ninho de ratos. Eu não suportava. Também teria feito o mesmo que ela se não tivesse a Cassandra.
Você não tem mais a Cassandra.
Eu não tinha.
Não havia nada entre aquela sombra e eu — exceto a teimosia em me apegar ao restante da minha inocência.
— Vamos logo. — Thomas agarrou meu pulso. Por instinto, puxei de volta.
Ele me encarou contrariado.
— Eu te arrasto até o salão se for preciso, Teresa. — me puxou novamente. Meu corpo lutou. Não sabia o que estava controlando aquelas ações. — Sua puta mimada. — agarrou o meu cabelo. Pontadas dolorosas se espalharam pelo couro cabeludo.
Quebre o pescoço dele.
Entre chutes e socos, sem a mínima sincronia, o acertei algumas vezes até deixá-lo furioso. Suas mãos agarraram meus ombros e ele me empurrou com violência contra uma das estantes. O baque contra minha cabeça me deixou atordoada.
Quando caí no chão, alguns livros despencaram sobre minhas costas doloridas. Tentei me arrastar, mas a tontura tornava cada movimento insuportável.
Algo escorreu em meus cabelos. Coloquei a mão sobre eles e senti a textura pegajosa. O cheiro de sangue era familiar.
Morrer não parecia ruim.
Deitei a cabeça em rendição. Queria ser levada para o sono eterno. Meu pai ficaria aliviado em não ter que se preocupar comigo manchando sua reputação. E eu poderia reencontrar a minha amada mãe.
Estava exausta de tudo.
Senti um calor me acariciar. Reconhecia aquela sensação aconchegante. Quando abri os olhos, a imagem borrada de Cassandra surgiu diante de mim.
— Eu disse que isso a destruiria.
— Já estou destruída. — não tenho certeza se falei em voz alta ou se pensei. — Por favor, me conte o que aconteceu.
Ela hesitou. Havia uma dor profunda em seu rosto. Não sei se a dor estava em seu corpo ou na sua afeição por mim. Eu desejava que fosse a segunda opção. Se Cassandra sentia dor ao me ver sofrendo, significava que seus sentimentos por mim eram reais.
— Eu irei te mostrar.
Parte IV — Destruição
A biblioteca se desfez em uma nuvem de fumaça. Não sentia mais o meu corpo. Busquei por Cassandra em meio ao borrão ao meu redor. Tentei chamar seu nome, mas a minha voz deixou de existir.
Onde eu estava?
Talvez a pancada na cabeça tenha me matado e tudo a partir daquele momento fosse minha transição para a morte. Já estava me convencendo disso quando vi cabelos alaranjados passando do meu lado.
O perfume de Cassandra me invadiu. Aos poucos, o cenário foi tomando forma até eu reconhecer o corredor da mansão. A imagem de Cassandra se tornou clara. Eu não respirava, mas ainda tive a sensação de perder o fôlego ao vê-la caminhando. Nem o uniforme cinza de camareira diminuia seu brilho. Sua beleza não dependia de tecidos luxuosos ou jóias. Ela brilhava mais do que qualquer uma dessas coisas.
Corri em sua direção. Quando toquei o seu ombro, minha mão a atravessou como uma camada fina de neblina. Eu não existia ali, mas estava consciente.
Cassandra continuou andando, alheia à minha presença. Ela sempre ia ao meu quarto de noite com a desculpa de que iria me ajudar a trançar meu cabelo para dormir. Ninguém nunca desconfiou de duas meninas trancadas no quarto, achavam que a gente ficava a noite toda fofocando sobre rapazes.
Tolos.
Nós amávamos fazer todos da mansão de tolos. Esse era o único momento onde eu me sentia viva. Fora daquele quarto, longe de Cassandra, eu me tornava apenas uma submissa aos caprichos dos Blackwood.
Escutei um grito.
Cassandra e eu paramos.
Vi os olhos dela indo em direção à porta que levava ao quarto do meu pai. O grito era feminino, horrorizado e estridente. Tive o súbito desejo de sair correndo, mas não sabia exatamente do que. Cassandra ficou parada com o olhar fixo na porta de madeira maciça. Seu peito subia e descia em uma respiração dificultosa.
Ouvimos um estrondo em seguida. Parecia que alguém tinha caído em cima de um móvel. Tentei agarrar o pulso de Cassandra em vão. Nem a minha força de vontade era o bastante para tirá-la dali. Não sabia o porquê daquela angústia súbita. Eu pressentia que algo iria machucá-la.
Passos percorreram o quarto. Cassandra deu um passo para frente. Pela primeira vez enxerguei sua coragem como um ato de estupidez. Ela não devia se meter nessa situação. Por que ela não corria dali? Debati os braços em um impulso desesperado para alertá-la.
A porta do quarto se abriu em um rompante. O som deve ter despertado até os mortos. Me coloquei à frente de Cassandra, ainda me agarrando à ilusão de que eu poderia protegê-la.
Uma garota saiu do quarto.
Ela parou no corredor, ofegante e com os olhos saltados. Suas roupas de tecido fino denunciavam que deveria ser uma das garotas que trabalhavam no bordel da cidade. Elas usavam vestimentas parecidas, como uma mancha expondo o tipo de serviço que ofereciam.
Queria ignorá-la, mas os hematomas nos seus olhos me impediram de desviar a atenção.
— Me ajuda, por favor. — Tive a impressão de que ela estava falando comigo até escutar a voz de Cassandra.
— O que aconteceu? — Cassandra passou por mim e foi em sua direção. Ela sempre deixava sua empatia falar mais alto, acolhia qualquer um pedindo ajuda. Não sei porque isso me deixava tão nervosa agora.
— Ele matou todas elas… — havia sangue em seus lábios — Por favor, me ajude…
Quem estava matando quem? Aproximei-me do quarto e encontrei meu pai desacordado perto da antiga penteadeira da minha mãe.
Infelizmente, ainda estava vivo.
Esse não era o momento de deixar a voz falar. Precisava manter a racionalidade. Cassandra precisava de mim, embora eu soubesse que não poderia fazer nada para mudar o rumo dos eventos a seguir. Retomei a atenção para a garota trêmula com as roupas quase caindo do corpo. Ela agarrava a parte superior do vestido como uma armadura.
— Como posso te ajudar? — Por Deus, Cassie, onde estava seu senso de preservação? Ela nem mandou a garota revelar o que aconteceu antes de oferecer ajuda. E se a menina estivesse mentindo?
Mas ela não estava.
Por isso a minha revolta era tão grande. Se Cassandra estava me mostrando isso, então aquela garota deveria ter sido a causa de tudo.
— Por favor, me ajuda a fugir daqui. — suplicou.
Eu a odiava.
Não queria sentir isso. Essa garota nem tinha alcançado a maioridade. Isso era repugnante. Mas eu não conseguia engolir a raiva. Não era raiva da garota, mas por ela ter colocado Cassandra em perigo.
— Venha comigo, rápido. — Cassandra segurou a sua mão trêmula e a guiou pelo corredor. Em nenhum momento duvidou do que a menina dizia. Poderia ficar furiosa com isso, mas sabia que essa era a verdadeira Cassandra.
Ela nunca abandonaria uma mulher precisando do seu auxílio. Eu a ouvi dizer isso tantas vezes enquanto contava sobre as encrencas que se metia para defender as outras criadas.
Você sabe o fim dessa história.
Eu me recusava a pensar nisso. Sufoquei a voz do abismo e segui as duas pelo corredor. Elas atravessaram a mansão em silêncio até alcançarem a saída. Cassandra não tinha as chaves das portas, então ajudou a garota a escapar pela janela. No processo, ela segurou o pulso de Cassandra. Seus olhos se arregalaram de uma forma assustadora. Pensei que saltariam das órbitas.
— Ele esconde embaixo da mansão. — olhou ao redor como se estivesse sendo observada — Você precisa ir embora daqui. Todas devem ir embora. Você não tem ideia das coisas… Por favor, fuja desse lugar.
— Do que está falando? — enfim, Cassandra questionou. Por trás da sua coragem, eu percebia o medo crescendo lentamente.
— Não posso me comprometer, desculpe. — Passos no andar de cima nos interromperam. A garota soltou o pulso de Cassandra e pulou para fora da janela como se estivesse fugindo do próprio Diabo. — Vá embora desse lugar! — alertou antes de correr pela noite.
Dessa vez, não precisei me preocupar com a audácia de Cassandra, ela correu antes dos passos chegarem na escada. Senti um alívio até me lembrar de que aquilo eram memórias do passado. Cassandra podia ter fugido agora, mas o destino era inevitável. O alívio se transformou em agonia.
Não havia nada que eu pudesse fazer.
Nada.
Isso me fez querer morrer.
Olhei para a escadaria principal. Os passos vinham num ritmo predatório. O mundo se fechou ao meu redor, me engolindo em uma aura densa. O dono daqueles passos carregava algo pesado, opressivo e sufocante. Enxerguei sua silhueta no primeiro degrau.
É ele. Você sabe.
Não tinha certeza do que sabia. Nunca tive. Mas aquela dúvida sempre esteve ali. Encarcerada em minha mente pelas grades do medo. As palavras de Cassandra começaram a se repetir como uma profecia:
“O que você procura vai te destruir, Teresa”
Lembrei da imagem do cadáver de minha mãe. Seus pulsos possuíam um corte tão fino na horizontal. Não era o bastante para matar. Eu sabia disso porque fiz o mesmo corte em mim. Como não possuía conhecimento médico, não podia fazer afirmações sobre um assunto que não dominava.
Ensinavam-nos, desde pequenas, a confiar somente nos homens de terno, toga e jaleco branco. Afinal, eles possuíam o conhecimento. Nós, Cassandra, eu, minha mãe e as garotas do bordel, éramos apenas mentes incapazes de acompanhar a lógica prolixa dos homens. Questioná-los era considerado estupidez, mesmo quando qualquer tolo podia enxergar a verdade.
O feixe pálido do luar iluminou a escadaria.
Encontrei o rosto do meu pai.
Queria confrontá-lo. Começaria pela morte da mamãe, faria ele admitir o que fez com ela. O calor retornou ao meu estômago. Queimava com mais intensidade. Com fome. O vazio em mim ansiava por ser alimentado.
Estiquei as mãos para agarrá-lo. Queria empurrá-lo da escada. Mas ele me atravessou. O fogo interno se transformou em um sopro de gelo quando vi ele indo em direção ao corredor que levava aos aposentos das criadas.
Onde Cassandra dormia.
Não.
Por favor, não.
Você sabe o que vai acontecer.
Corri para impedi-lo, mesmo sabendo que não podia. As lágrimas entaladas formaram uma tempestade em meu peito. Trovões violentos anunciavam a tragédia prestes a acontecer. Não havia como atravessar sem naufragar. Cada passo do meu pai em direção ao quarto de Cassandra me inundava.
Os olhos dele estavam tomados por um brilho cruel. Não era como os olhares de desprezo que me dava. Esse era diferente, desumano e brutal. Até as pinturas congeladas nas paredes tinham mais humanidade do que ele.
Implorei por qualquer intervenção divina que pudesse me escutar. Mas nada aconteceu. Meu pai continuou andando e, por fim, parou em frente à porta do quarto. Girou a maçaneta sem pedir licença. Ele se orgulhava de ser o dono da propriedade e tudo dentro da mansão o pertencia.
Inclusive as pessoas.
Ele entrou no quarto.
Não queria ver o que iria acontecer. Fui empurrada até a porta aberta. Não poderia sair dali sem ver a verdade com meus próprios olhos. Esse era o passo decisivo, sabia que depois de olhar dentro do quarto eu nunca mais seria a mesma. Meu mundo desapareceria. Tudo que achava que conhecia seria desfeito.
Tempestade e fogo se cruzaram.
— Onde ela está? — ouvi meu pai dizer. Ele estava parado em frente à cama. Cassandra se encolhia sobre o colchão, as mãos agarradas na barra do uniforme cinza.
— Ela quem, senhor? — Cassandra mentia mal. Não fazia parte da sua natureza fingir. Mas eu queria que ela tivesse aprendido a fazer isso.
— Pensei que fosse mais esperta, Cassandra. — ele se inclinou até estar na mesma altura que ela — Me conte a verdade e prometo ser misericordioso. Não fui um bom senhor para você? Posso continuar sendo.
Parte de mim gritava para Cassandra dizer a verdade. A vida de uma prostituta não valia mais do que dela. Mas a outra parte se lembrava dos hematomas daquela garota e do seu corpo adolescente. Eu não seria capaz de condenar uma menina. Agora, diante dessa decisão, não conseguia ter raiva da integridade de Cassandra. Ela não era a culpada e nem aquela pobre garota.
Ele era o culpado.
O homem que condenou as duas.
Eu sabia qual seria a resposta de Cassandra.
— Não sei de quem está falando, senhor. — sentenciou com o olhar firme. Ela não abaixou a cabeça nem quando a morte estava diante de si.
Meu pai a agarrou pelo pescoço. Selvagem e possessivo. Podia compará-lo a um animal, mas os animais matam para se alimentar e para se defender. Ele não. Cassandra não lhe oferecia ameaça, mesmo se ela contasse para alguém sobre a garota, quem iria acreditar na palavra de uma criada? Havia inúmeras alternativas, mas ele escolheu a pior delas. Não para se defender. Ele escolheu porque queria.
E porque podia.
— Já que deixou minha coelhinha fugir, então será a substituta dela. — O sorriso sádico em seus lábios nojentos fizeram o fogo vencer a tempestade. Tremia, incapaz de conter e ebulição tomando conta de cada parte da minha alma.
Meu pai se levantou e veio até mim. Eu o encarei, desejando que sentisse o incêndio prestes a devorá-lo. Com aquele sorriso repugnante, ele fechou a porta. Os gritos de Cassandra ecoaram pela mansão. Todos a ignoraram.
O vazio virou caos.
E, agora, o caos virava destruição.
Parte V — Morte
O cenário foi borrado. Cassandra me impediu de assistir a sua morte. Mas ouvi cada um dos seus gritos. Eles iriam me assombrar até meu último suspiro.
Onde eu estava na hora em que ela foi assassinada?
Você estava triste porque ela não tinha ido até seu quarto.
Eu me lembrava agora. Meu coração estava tão apertado naquela noite. Tive pesadelos terríveis com alguém tentando me sufocar. Pensei ter sido apenas um delírio. Meu pai sempre dizia que eu era delirante.
Como pude ser tão estúpida em acreditar nele? Eu me odiava tanto. Não por não ter percebido o que acontecia embaixo do nosso teto, mas justamente por ter ignorado minha intuição. Podia ter feito alguma coisa para impedir o destino de Cassandra se não tivesse sido tão covarde.
— Não é sua culpa, Tess. — a voz dela veio até mim como um acalento — Você precisa se levantar agora. Não desista, por favor. Lute. Por mim, por sua mãe.
Mamãe.
O peso do ódio dobrou sobre mim. Ódio por não ter salvado quem eu amava, ódio por ter sido tão submissa e ódio pelo homem que eu chamava de pai.
O fogo se alastrou. Incontido, desesperado para engolir tudo pela frente em suas chamas.
Deixe-me sair, Teresa.
Eu ri, um som agudo e insano. Não precisava dar permissão para aquela voz sair. Ela nunca iria embora, estava incrustada nos meus ossos e se enraizava no meu coração. Minha inocência morreu com a mamãe. E agora a humanidade morria com Cassandra. A luz cedeu à escuridão. Estranhamente, isso veio acompanhado de uma sensação libertadora.
Quando abri os olhos, encontrei Thomas em cima de mim. Os olhos dele eram sádicos como os do nosso pai. Ele pretendia me matar, não precisava de provas para isso. Dessa vez iria acreditar no meu próprio instinto.
Escutei uma risada nas profundezas do abismo.
— Pensei que tivesse morrido. Ficou parada igual um cadáver durante minutos. — podia ver que parte da sua confiança se desfazia. Eu acho que ele não planejava me matar acordada. Queria me enterrar em silêncio.
Thomas seria o primeiro a ser consumido.
A fome borbulhou. Com força, agarrei os cabelos dele e puxei seu pescoço para baixo. Ele disse alguma coisa, mas não me importei em escutar. Senti o cheiro da sua carne podre com tanta sujeira impregnada. Ele fedia, assim como meu pai e assim como todos aqueles velhos na festa.
O ódio não iria se satisfazer com pouco.
Ele queria devorar tudo.
Cravei os dentes no pescoço de Thomas. Ele gritou em um som agonizante. O gosto da sua dor era um deleite. Queria fazê-lo se sentir tão indefeso quanto eu.
O empurrei para longe e me levantei. Cuspi seu sangue. Thomas engasgou algumas palavras até pousar o olhar atônito sobre mim. Ele não esperava por isso da sua doce irmãzinha. Não havia necessidade de verbalizar nada. Thomas transparecia tudo. O choque era explícito em sua feição contorcida.
Ninguém esperava uma atitude bruta da Teresa. Eles me olhavam sempre de cima, alguns com piedade e outros com aquele sorriso debochado. Todos eles achavam que eu nunca seria capaz de tomar o lugar do predador ao invés da presa. Eu mesma acreditava nisso.
Não mais.
Olhei para a enciclopédia na estante. A edição pesada com capa de couro se destacava. Quantas páginas ela tinha mesmo? Eu acho que cerca de dois mil. Nunca tive vontade de ler. Ela me despertava outro tipo de interesse.
Tive vontade de fazer isso tantas vezes, aquela voz do abismo era somente um eco dos meus desejos reprimidos. Eu entendi isso agora.
Teria ficado aterrorizada se não estivesse me sentindo tão poderosa. O sabor do poder era viciante. Não era à toa que os homens morriam em busca de uma gota dele. Eu controlava as minhas ações e o rumo da situação. O que eu decidisse se tornaria realidade.
Ninguém poderia me impedir.
Peguei a enciclopédia. O peso fez meu pulso tremer. Tive que segurá-la com as duas mãos.
Thomas se arrastou pelo chão quando me aproximei. Ele sabia qual era a minha intenção. Talvez porque ele mesmo tenha pensado em usar aquele livro dessa forma. Afinal, éramos irmãos e devíamos ter algumas coisas em comum, tipo o apetite por quebrar os ossos de quem odiamos.
— Teresa, por favor…
Eu poderia fazer um discurso agora. Dizer o quanto essa família era desprezível, fazer ameaças sobre expor todos os podres dele e do nosso pai e gritar histericamente. Mas do que isso adiantaria? Thomas nunca mudaria. Ele escolheu se tornar um homem repulsivo. Não merecia uma justificativa.
Homens como ele só mereciam sofrer. Nossas palavras eram muito valiosas para serem desperdiçadas com criaturas tão medíocres.
Ergui a enciclopédia.
Respirei.
O primeiro impacto quebrou o maxilar dele. O estalo seco do osso foi um deleite proibido. O segundo quebrou seu nariz. Depois do terceiro, parei de contar. Cada fratura acendia uma sensação revigorante.
Poder. Vingança. Ódio.
Só parei de golpeá-lo quando meu pulso latejou. O rosto de Thomas era agora uma máscara grotesca de carne inchada e sangue. Irreconhecível. Nunca imaginei ser capaz de tamanha brutalidade.
E se eu fosse igual ao meu pai?
O pensamento me fez recuar.
Não queria ser como ele. Mas também queria matar. Entre nós havia uma linha tênue demais.
— Você não é igual a ele, Tess. — Cassandra surgiu ao meu lado com a aparência frágil de ontem.
Larguei a enciclopédia. Ela caiu com um baque no chão. Só então me dei conta da dimensão do seu peso. Como pude segurar aquilo por tanto tempo sem vacilar?
— A mesma violência habita em mim Cassie. — minha voz falhou. — Não eram só pensamentos.
O ódio oscilou quando encontrei seus olhos. Mesmo ofuscados pela dor, eles ainda eram os mais bonitos que existiam.
— Sua violência nasceu da injustiça. Eu sinto o mesmo ódio. Por que deveríamos nos culpar? Eles nunca se culparam.
— Mas eu ainda estou viva. — engoli seco. — Não me sinto no direito de justificar… você quem… — não fui capaz de verbalizar. Cassandra entendeu, pude notar através do seu olhar carregado de amargura.
— Sofremos violências diferentes, Tess. Uma não é maior do que a outra. Você não escolheu ser assim. Diferente dele — pressionou os lábios — Seu pai escolheu ser um monstro. E, acredite, ele desfruta de cada momento.
— Eu… eu desfrutei também.
Cassandra sorriu, delicada. Meu monstro adormeceu. Estendi a mão, mas o toque atravessou seu rosto. Senti apenas um calor fugaz. Meu coração foi destruído ao saber que nunca mais a tocaria novamente. Não sentiria seus lábios, sua pele ou sua respiração quente.
Nunca mais.
— Não foi prazer em matar. Foi prazer em revidar. Prometemos nunca mentir uma para a outra. Então acredite: você não é igual a ele.
— Mas eu quero matá-los. Todos.
— Por quê?
A resposta já me queimava por dentro. Sempre esteve ali, escondida nas feridas que fingi ignorar. O olhar repulsivo de Lord Rochester. O desprezo do meu pai. As risadas sujas do meu irmão.
Eu os odiava com uma fúria que me consumia.
— Porque eles roubaram tudo de mim. De nós.
Olhei para minhas mãos.
As luvas estavam cobertas com o sangue de Thomas. O veludo precioso, manchado para sempre. As criadas sempre diziam: mancha de sangue nunca sai.
Elas estavam certas.
Cassandra me fitou em silêncio.
— Então roube tudo deles também.
A morte apagou seu brilho. Ela não era mais a moça radiante, assim como eu não era mais a moça retraída. Podia ouvir as paredes da mansão racharem. Os pilares que a sustentavam deixariam de existir.
Olhei para Thomas desfigurado. Não precisava me preocupar com seu cadáver.
Em breve, teriam muitos outros.
Parte VI — Sussurros
O barulho da festa desapareceu. Já não ouvia nem o assovio do vento lá fora. Olhei para a escadaria de pedra diante de mim. Ela levava ao subsolo da mansão, parecendo o caminho para as profundezas do inferno — embora Cassandra tivesse me afirmado que esse lugar não existia.
Iluminei os degraus, mas a luz não alcançava o fim. Nunca havia entrado aqui. Mamãe dizia que abaixo das escadas só havia ratos e esgoto antigo. Os criados, por sua vez, contavam lendas sobre fantasmas assombrando o subsolo. Acho que ambas as teorias estavam perigosamente próximas da realidade.
— Eu consigo ouvi-las. — Cassandra disse.
— O que elas dizem?
Tive a impressão de escutar um lamento profundo vindo das escadas. Lembrei das palavras daquela garota. Como ela descobriu o que tinha lá embaixo? Talvez nem estivesse mais viva para nos contar. Meu pai deve ter ido atrás dela depois da fuga. Ele não a deixaria escapar ilesa.
— Estão nos chamando — disse num sussurro solene.
Seria ironia ter medo de mergulhar em um local assombrado quando eu estava acompanhada de um fantasma. Não havia razão para temer os mortos. Pelo contrário — eles eram os únicos que sabiam de toda a verdade.
Respirei fundo. O ar gelado me fez tremer. Estiquei a mão para segurar a de Cassandra, mas me lembrei do nosso limite. Ela me deu um olhar triste.
Não precisava tocá-la de fato. Sua presença bastava para que eu a sentisse comigo
Descemos os primeiros degraus.
Mantive a lamparina na altura do rosto. Cassandra ia na frente, virando a cabeça de tempos em tempos para me dar olhares de incentivo. Queria saber como era estar no outro plano, mas talvez essa fosse uma pergunta indelicada no momento.
— Cassie. — quebrei o silêncio.
— Sim?
Nossas vozes ecoavam através das paredes de pedra.
— Me desculpe por não ter te salvado. Eu sabia que não tinha como... mas isso não diminui a sensação de fracasso.
Cassandra se virou para mim.
— Você não tem culpa de nada. Por favor, Tess, não carregue um fardo que não te pertence. — seu olhar era compassivo — Foi culpa dele. Só dele.
As lágrimas escaparam. Não precisava conter o choro diante de Cassandra. Deixei que os sentimentos entalados escorressem por um tempo: culpa, melancolia, arrependimento. Eu não podia me esquecer da nossa missão, mas sentia como se o choro fosse me engolir.
— Tess. — ela sorriu — Andar alivia o peito. Eu sempre me sentia melhor depois de uma caminhada. Você se lembra?
— Sim, eu me lembro.
As lágrimas escorriam até meus lábios, salgadas, enquanto eu mantinha a cabeça baixa, descendo mais um degrau.
— Você gostaria de esquecer nossas memórias? — a pergunta veio em tom velado, quase temeroso.
Continuei a andar. Ela sabia a resposta, mas precisava ouvi-la. Cassandra devia achar que eu pararia de sofrer caso não me lembrasse de nós.
— Nunca. Você me deu as minhas melhores lembranças. Nenhuma tragédia pode apagar isso.
O silêncio que se seguiu era denso, necessário. Minha respiração soava pesada. As pernas ardiam de dor; eu ainda não havia me recuperado da luta com Thomas. Os braços vacilaram, e precisei segurar a lamparina com as duas mãos.
Foi então que senti uma corrente de ar.
Um cheiro úmido, como o de um cemitério após a chuva, invadiu meus pulmões: lama, podridão, catacumbas fechadas há séculos. Cassandra me lançou um olhar de incentivo.
Avançamos até o último degrau. O corredor de pedra se abriu diante de nós, conduzindo a uma caverna profunda. A vibração do solo parecia ressoar nos meus ossos. Ali, segredos haviam sido enterrados.
O odor de decomposição me envolveu.
Abaixei a lamparina.
O corpo de uma garota jazia diante de mim. Sua carne sendo devorada por roedores. Os olhos congelados nas órbitas. Chutei um rato que tentou escalar minhas pernas. Ele guinchou e correu pela trilha escura — onde outro cadáver repousava.
E outro.
E mais outro.
As lágrimas queimaram meus olhos. Não era piedade. Era ódio. Indignação. Repulsa. Apertei a lamparina até sentir meus dedos afundarem na própria pele.
Lembrei das palavras da garota em fuga: “Ele esconde embaixo da mansão.”
Cassandra não foi a única vítima.
Ele não era apenas um assassino. Era um viciado em matar. Um compulsivo. Apontei a luz para as roupas ensanguentadas. As gargantas cortadas, os braços dilacerados, os rostos deformados como bonecas partidas. Não bastava a ele roubar a vida delas. Precisava torturá-las, degradar seus corpos. Transformar sofrimento em espetáculo.
O que levava um homem a tamanha crueldade?
Poder.
Eu também já senti o gosto do poder. Mas não assim. Não dessa forma. Olhando para aqueles corpos esquecidos, percebi que não era como ele. Podíamos carregar sombras, mas não éramos iguais. Cassandra tinha razão: ele escolheu esse caminho.
Eu fui empurrada para a violência. Se não tivesse matado Thomas, ele teria me matado. Minha sede de sangue não era apenas vingança: era proteção. E agora eu via que não se tratava apenas de mim. Era sobre impedir que ele arrastasse mais garotas para aquele abismo.
O fogo ardeu dentro de mim, pronto para consumir a mansão inteira.
Olhei para Cassandra.
— Se o inferno não existe, então eu irei criá-lo.
Parte VII — Renascimento
5 de novembro de 1890
O trágico incêndio na mansão Blackwood ceifou a vida de quinze pessoas, entre elas o senhor Arthur Blackwood, seu filho Thomas e seus estimados colegas de trabalho. Após uma investigação considerada meticulosa, as autoridades concluíram que o fogo teve origem em um descuido dos responsáveis pela cozinha naquela fatídica noite.
Embora tais circunstâncias tenham custado a vida de homens de tão ilustre reputação, a atual Lady Blackwood — uma das poucas sobreviventes — declarou não pretender castigá-los. Tal gesto de clemência tem sido recebido com severa censura pelos familiares das vítimas; ainda assim, é compreensível que a jovem Teresa, após perder seus últimos parentes consanguíneos, tenha adiado o julgamento para o período além do luto.
Por ora, Lady Blackwood recolheu-se à antiga residência da família, em Edimburgo, até que a mansão Blackwood seja restaurada. Estima-se que as obras demandem anos, mas a jovem já anunciou que continuará administrando os negócios de seu falecido pai e, mais ainda, que pretende expandi-los, a fim de honrar seu nome.
Inúmeros pretendentes, movidos tanto pela compaixão quanto pela ambição, já lhe ofereceram matrimônio — nenhum, até o presente momento, foi agraciado com resposta. O futuro da dama permanece envolto em incertezas e tem despertado a mais viva curiosidade entre os círculos londrinos. Quanto a mim, ouso acreditar que seria sábio conceder-lhe o silêncio e o tempo de que necessita. Tenho a convicção de que, quando sua sombra emergir do luto, Lady Blackwood nos brindará com notícias de arrebatadora magnitude.
Aqui deixo meus mais sinceros pêsames à distinta Lady e às famílias que se encontram enlutadas por tão horrenda tragédia. Que Deus guie as almas dos que partiram até a morada da paz eterna.
Revisão de Sahra Melihssa

Monica Maria
Desde a infância, cultiva uma paixão por romances sombrios, investigação criminal, literatura gótica e ocultismo. Iniciou sua escrita com fanfics inspiradas em suas bandas e livros favoritos, descobrindo cedo o desejo de transformar palavras em profissão. Após sua estreia em um podcast de horror, fez uma pausa para cuidar da saúde mental. O diagnóstico de autismo trouxe novos olhares sobre si mesma. Hoje, aos 32 anos, transforma antigas dores em narrativas viscerais. Além de escritora, atua como cartomante, magista e criadora de conteúdo no Instagram e no TikTok. » instagram da autora

Esta obra foi publicada e registrada na 18ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de agosto de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa
A morte caminhava ao meu lado. Espreitava em cada corredor por onde eu passava. Morei nesta mansão desde o nascimento e, ainda assim, o lugar guardava…