Todos os lamentos serão ouvidos

Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Hoje faz cinco meses desde a grande mudança.

Da imagem veio a idealização, a concepção e a efetivação. Ouvi o chamado retumbante permeado por vozes angelicais que exigiam uma sacra ação. Não ousei olvidar, quem ousaria? A petição era simples, mas requeria dedicação e comprometimento ímpares.

Foram anos de estudos para lapidar um dom concedido por Deus. As aulas de anatomia eram as mais instigantes, estudar cada milímetro de corpos inertes e impuros — impuros pois estavam destituídos do privilégio de adorar e dar graças a Ele. Eu ainda não sabia, mas tudo transcorria a fim de se fazer cumprir a vontade daquEle a quem devo a minha vida.

Todo conhecimento tinha uma finalidade, agora eu o sei. Visualizar o que cada um traz dentro de si é algo divino e assim eu compreendi que fora destinada para aquela missão. Nenhum outro poderia compreender.

Eu era enfermeira. Ainda sou, pois mesmo impedida de exercer minha função, isto me é inato. Há coisas que os olhos mundanos não enxergam — só os escolhidos veem. Só aqueles que foram tocados.

E eu fui.

No início, pensei que fosse exaustão. Vinte e quatro horas de plantão, pacientes morrendo sem dignidade, máquinas apitando, familiares desesperados, médicos indiferentes. Mas naquela noite… naquela noite fatídica, enquanto segurava a mão fria da Dona Lurdes — pele frágil, os olhos quase em paz — ouvi a suave brisa.

Não com os ouvidos. Não como qualquer outro ouviria. Ouvi com a alma. Uma voz que se insinuava: Ela está pronta. Ajude-a a atravessar.

E eu ajudei.

Foi com delicadeza. Uma prece cochichada. Um leve ajuste no equipamento de morfina. Uma transição suave. Celestial. Ela sorriu, juro, no segundo que antecede a partida, sorriu como quem vê a luz no fim do túnel e reconhece o rosto de um anjo. Ali compreendi: eu não era apenas uma enfermeira. Era uma escolhida.

Nos dias seguintes, vieram outros sinais dos pacientes: as auras em suas cabeças e as palavras murmuradas. Estavam inconscientes, logo, só podia ser obra do criador. Ah, também tinha o brilho nos olhos dos que já estavam com um pé na eternidade. Deus me escolheu para conduzir essas almas.

E eu o fiz.

Mas não é fácil. Precisa sensibilidade. Discernimento. Disciplina. Nem todos estão prontos, e nem todos merecem. Eu o ouço. Ainda o sinto. O julgamento não era meu — era apenas um instrumento.

Os outros não entenderam. Disseram que sou diferente. Que ficava muito tempo sozinha na UTI. Que enlouqueci. Que os pacientes precisavam de cuidados paliativos e que eu os matei. Não foi isso! Eles não sabem o que eu sei! Não veem o que eu vejo!

Não é morte. É libertação. Eutanásia celestial, como aprendi a chamar ou foi Ele quem me disse.

Um gesto de amor.

O último foi o Sr. Armando. Setenta e nove anos, falência múltipla dos órgãos, ninguém o visitava mais. Ele segurou minha mão com tanta força e então murmurei: Está na hora.

Lágrimas escorreram do canto dos seus olhos fechados. Paz. Ele partiu em paz.

Ainda hoje sinto a presença dele aqui, me agradecendo.

Escrevo tudo neste diário, pois sei que um dia alguém irá encontrá-lo e poderá entender a minha missão. Talvez outra enfermeira. Talvez outro escolhido. Talvez continue com a sacra ação. Será que outros seres iluminados iguais a mim virão parar nesta caixa de concreto cercada de grades e guardas mal-humorados?

E você, que está lendo isso agora, saiba: não é loucura. É missão. Um chamado. E quando ouvir a voz — aquela voz suave, inconfundível — apenas escute.

E aja com fé.


Escrito por:
Michelle S. Nascimento

Michelle Santos Nascimento é paulistana, mãe, esposa e amante das artes, em todas as suas formas de expressão, desde que aprendeu que há todo um universo fora dela. Ama as ciências humanas, mas também tem predileção pelas exatas, porquanto é graduada em “Segurança da informação”, pós-graduada em “Gestão de TI” e “Engenharia de software” e trabalha como Analista de qualidade de software... » leia mais
17ª Edição: Dívanno - Revista Castelo Drácula
Esta obra foi publicada e registrada na 17ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de junho de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.

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