De como Solas governa Zélis

Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Seis mil anos antes da invasão do Abismo, um arquidemônio já sombreava o plano terrestre com suas asas.

O continente-reino de Zélis era o menor do mundo de Palais. O rei Mietaz, da casa Andros, governava naquelas circunstâncias.

O rei, idoso e muito afeiçoado, tinha somente uma filha, a única herdeira de seu reino. A donzela Eneza, porém, já frágil de constituição, contraiu uma doença desconhecida. A notícia abalou o carinhoso rei e seu semblante nunca mais se recompôs.

A enfermidade acamou a princesa: um flagelo cruel, com febres constantes, bolhas pútridas e delírios que, segundo fanáticos, eram possessões. A doença não concedia sequer o benefício da morte.

Eneza sofreu por longos meses; o desesperado rei não encontrava físicos nem doutores que tivessem a causa ou a cura.

Mietaz, num gesto humilhante, enviou cartas e emissários a todos os continentes e reis de Palais. Mas nenhum nobre, nenhum médico, dispunha de solução.

A fagulha de esperança surgiu após um ano de sofrimento. Um visitante chegou à corte.

Forrasis era o nome dele. Pálido, alto, cortês e eloquente; apresentava-se como um diplomata enviado por Sarakh de Alfara.

Mietaz conhecia a fama do rei Alfaro. Sarakh era chamado de “o Prístino”, pois vivera mais de um milênio, sustentado por meios herméticos e controversos. Forrasis sugeria esses meios.

As audiências entre ele e Mietaz tornaram-se frequentes e sempre privadas. Os altos nobres estranharam a ausência do conselho real de Zélis. Mas o rei dizia que se tratava apenas de diplomacia externa.

O secretismo possuía nefastos motivos: o diplomata prenunciou a morte de Eneza e a anarquia de Zélis caso o rei recusasse sua proposta.

O rei, mais desesperado que nunca, aceitaria quase antes de ouvir. A proposta era simples e profana: conjurar o mestre dos segredos, Solas, arquidemônio do Abismo, por meio da demonurgia conduzida por Forrasis.

Naturalmente, Mietaz hesitou. Um arquidemônio como curandeiro? Mas Forrasis garantia: o Abismo já havia curado outros. Sarakh recorrera à alquimeria abissal para se manter vivo e fizera de Alfara uma potência com tal ciência.

Mietaz resistiu por alguns dias. Mas Eneza era sua filha. Sua vida sustentava não apenas o coração do rei, mas também a sucessão de Zélis. Era isso, ao menos, que murmurava para si mesmo, e bastou para que cedesse.

Forrasis logo produziu um símbolo distorcido, um ídolo abissal, como o objeto daquele acordo.

Seu sangue régio devia banhar por treze dias o ídolo; preces numa língua distorcida, que apenas o diplomata conhecia, deviam ser repetidas em sessões demoradas. Para isso, Mietaz mandou construir uma sala oculta, adjacente à sala do trono.

No décimo quarto dia, o ídolo se partiu em estilhaços e Solas se manifestou.

Sua forma era estranha aos olhos humanos: uma coruja altíssima, de pernas longas e nuas. O torso era magro, mas suas asas quase tocavam todas as paredes da câmara. Seus olhos, macabramente vermelhos, ignoravam a presença do rei.

Ele conversou primeiro com Forrasis numa língua profana. Somente depois cedeu um pouco de atenção ao rei, que suava e retraía seu corpo pelo medo, mesmo que o diplomata garantisse a segurança.

O rei vomitou em resposta ao cheiro pútrido de Solas. A pedido de Forrasis, Solas ocultou parte de sua essência. Encolheu-se. Tornou-se uma coruja comum aos olhos de quem o visse. Seu cheiro pútrido também desapareceu.

Mietaz falou, ainda que tremendo, no idioma que sabia, de sua aflição. Revelou suas dores e prestou reverência à criatura. Solas, primeiro em silêncio, respondeu no mesmo idioma do rei.

Solas concordou. Mas em troca, exigiu uma sala do trono, uma coroa real e o título eterno de conselheiro absoluto da coroa de Zélis.

Mietaz hesitou, dessa vez com mais consciência. Olhou para o chão. Suas mãos tremiam. Por um instante, cogitou recusar. Mas ao lembrar-se do estado de Eneza, cedeu de novo. Murmurou para si que era por Zélis… mas sabia, no fundo, que era só por ela.

O contrato foi feito, o ritual selado.

Treze dias depois, Eneza levantou-se da cama. Suas bolhas haviam sumido. Sua pele era clara e firme. Sua saúde perfeita. O rei chorou de alegria. Agradeceu a Solas e prestou mais reverências.

Mas a princesa não parecia a mesma de antes. A amabilidade de seu rosto desapareceu; a gentileza, antes costumeira, não mais existia. Ela desprezava o conselho, o povo, o pariato. Falava pouco, e cada vez mais passava tempo com o demônio. E seu cheiro, quando sentido de perto, era o de um cadáver.

Ao passar das semanas, Mietaz percebeu que foi enganado. Sua filha redespertou como serva de Solas, como fantoche do Abismo.

Todos os sacrifícios que ele ofereceu ao demônio, as crianças e as donzelas, foram somente para alimentar sua transformação. Almas humanas foram os temperos dos remédios.

Ele não suportou o peso da culpa. No segundo mês da “cura” de Eneza, o rei Mietaz se jogou de sua torre.

Sua filha não chorou, nem fingiu luto. Assumiu o trono. Ela dissolveu o conselho e instituiu Solas, trajando agora diversas aparências humanas, como conselheiro real.

Solas, por séculos, atuou como conselheiro real, e como o governante de facto do reino. Por ele, o continente se tornou o centro da tecnologia de Palais. E também o berço da alquimeria abissal.

A corte de Zélis, hoje repleta de vassalos demoníacos, foi uma importante coluna para a Igreja abissal e para o surgimento da fissura em Alfara.

Solas, o arquidemônio dos segredos, ainda governa ali, trajando uma coroa esplendente. Loquaz, simpático, crente de ser o mais sábio dos entes antigos.

Revisão de Sahra Melihssa

Escrito por:
Ricardo Zanella

Ricardo Zanella, também Áster e Venez, é tradutor, escritor e poeta por vocação. Nascido no início do milênio, em Itaperuna, Rio de Janeiro, é um ardente mantenedor da antiga poética dos trovadores. Áster escreve por vocação e por necessidade interior, pois, como afirma, “há uma razão suficiente para cada verso”. Acredita na arte literária como o caminho mais belo para a elevação do espírito. É autor de "Abissais", fantasia sombria que mescla o horror metafísico a um vislumbre de redenção. Em seus escritos, o amor cortês é o tema mais recorrente. » Instagram do Autor
18ª Edição: Theattro - Revista Castelo Drácula
Esta obra foi publicada e registrada na 18ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de agosto de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa

Leituras recomendadas para você:
Anterior
Anterior

A Harmonia do Acaso

Próximo
Próximo

A Ópera dos Vampiros