Ardente
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
Era quase madrugada, e o alvoroço na casa da rua não cessava. Henrique pegou a arma que guardava no cofre e caminhou até a janela para investigar. Ele era um homem metódico, de olhar afiado, qualidades forjadas em anos de serviço militar exemplar. Nada lhe escapava — exceto, talvez, o preço que essa rigidez cobrava. Seu temperamento afastara todos que um dia cruzaram seu caminho, deixando-o sozinho, amargurado, corroído pela felicidade alheia.
A alegria dos vizinhos, tão tarde da noite, era algo intolerável. Aquela algazarra precisava acabar. Em um mês, ele perdera a conta de quantas vezes fora dormir com horas de atraso, mais do que podia contar nas mãos calejadas e enrugadas. Sentia nelas o peso da arma, sua fiel companheira dos tempos de glória. Agora, ela carregava tanto o fardo de sua existência quanto a honra que restava de seus dias como major. Jamais a abandonaria — era tudo o que lhe sobrava.
Pela janela imunda, a três casas de distância, avistou os malditos. Todas as noites era assim: eles se postavam na porta, estáticos, e, pontualmente às 23:45, a entrada se abria. Entravam, mas nunca saíam. No dia seguinte, outros apareciam para perturbar seu sono. Após inúmeras chamadas, a polícia finalmente apareceu — mas também não voltou. A viatura seguia lá, exposta ao sol e à chuva, há dias.
Naquela noite, a porta se abriu novamente. As figuras desapareceram no breu do interior, mas, dessa vez, ela permaneceu escancarada. Seria um convite? Com a arma nas mãos, sentia-se forte, jovem outra vez. Poderia ir até lá e pôr fim àquela festa. Refletiu por um instante, mas decidiu não se expor. Ainda tinha um nome e uma honra a zelar, por mais tentadora que fosse a ideia de silenciar os arruaceiros.
No domingo, acordou convicto de que teria paz. Era um dia em que as pessoas descansavam, ficavam em casa. Tudo correu bem até a noite, quando um estrondo vindo da frente o arrancou de um cochilo. Pegou o tablet que exibia as câmeras da casa e viu um adolescente parado perto do portão, encarando fixamente a direção da casa dos baderneiros.
Era o estopim. Não toleraria uma criança malcriada chutando sua propriedade. Abriu o cofre, apanhou a arma e correu à janela da entrada. Chegou a tempo de ver o garoto atravessar a rua e se juntar à multidão diária diante do imóvel. Todos, imóveis, fitavam a porta.
Ela se abriu mais uma vez. A escuridão do interior parecia engolir a da rua, como um buraco negro. O grupo entrou sem hesitar. Henrique já não sabia se queria punir ou salvar o menino, mas tinha certeza de que precisava tirá-lo dali. Preparou a arma, puxando o ferrolho, e avançou até o imóvel, cuja porta aberta o aguardava, mergulhada em um breu absoluto.
Diante do batente, encarou a escuridão. Mesmo a um braço de distância, nada conseguia enxergar. Uma fraqueza, que outros chamariam de medo, atravessou sua mente. Poderia estar entrando em uma armadilha, mas não recuaria. Resgataria o garoto e, se necessário, acabaria com os arruaceiros.
Ao cruzar o limiar, a escuridão o envolveu, roubando-lhe os sentidos. Caminhou às cegas pelo que pareceu uma eternidade, até que uma luz discreta surgiu no horizonte, atraindo-o como uma mariposa. Era uma árvore colossal, ardendo em chamas que lambiam galhos e folhas sem os consumir. Centenas de pessoas — talvez quinhentas — observavam, hipnotizadas, babando, tremendo, algumas à beira da inanição.
Empurrando a multidão, chegou ao pé da árvore. Lá estava uma mulher imponente, vestida com trajes religiosos chamuscados, segurando um tomo enorme do qual lia incessantemente. De repente, ele notou: seus olhos estavam cobertos por um pano sujo de sangue. Aquilo era uma seita, percebeu. E ele não tinha munição suficiente para enfrentá-la.
Algo se moveu entre os galhos. Um animal o encarava — semelhante a um macaco de pequeno porte, mas grotescamente deformado, com a pele derretida em uma massa disforme de músculos e tecidos. Mostrou os dentes afiados e correu pelos galhos, numa clara ameaça.
Horrorizado, Henrique ergueu a arma e disparou todo o pente, acertando o ser três vezes. O grito de agonia ecoou, e a resposta veio rápido. Um titã, oculto entre as chamas e as folhas, desceu da árvore para proteger sua cria. A criatura, semelhante a um gorila monstruoso e igualmente deformado como o filhote, aterrissou, esmagando os hipnotizados mais próximos. Sua bocarra soltou um rugido que estourou os tímpanos de todos ali.
Surdo e horrorizado, Henrique tentou atirar em vão. A entidade o agarrou como se fosse um brinquedo frágil, erguendo-o até sua face. Parecia avaliá-lo — seria comida ou algo mais? O fedor de sua respiração o sufocava, forçando-o a encarar as escolhas de uma vida rígida, vazia de afeto. O fim chegara, e ele sabia.
Com facilidade, o monstro escalou a árvore colossal, levando-o ao ninho. Henrique nunca mais foi visto. A casa, até hoje, segue atraindo pessoas, e a porta permanece aberta, esperando.

Luiz E. Marcondes
Luiz E. Marcondes é um escritor brasileiro de literatura de terror cósmico e psicológico. Desde jovem, sempre foi curioso sobre a mente humana. Formou-se em Psicologia Comportamental e Existencial e faz uso de sua formação profissional para agregar mais complexidade e valor aos textos que escreve. Apaixonado por uma variedade de gêneros literários... » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 15ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de abril de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
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