Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Algumas vezes, as coisas habituais se tornam estranhas; não o estranho de não reconhecer, mas o estranho desconfortável, aquele que incomoda, que é anormal. Coisas que antes eram familiares se tornam incomuns. Assim foi com a música. Tudo começou como um sonho, ou melhor, como um sussurro musical no meio da noite, que penetrava a minha mente. Quando acordei, a melodia continuava ali, flutuando no meu cérebro e, por algum motivo, ela não ia embora. Às vezes, acontecia de uma melodia se prender à minha mente, e eu ficar a cantarolar por horas e, às vezes, dias, aquela mesma melodia. Sentei-me na beira da cama, tentando capturar a melodia que ainda flutuava no meu cérebro. Era bela, embora impossível de cantarolar. Meus lábios não conseguiam formar os sons. Fui até meu violoncelo e tentei transcrever aquela melodia para as cordas. Posicionei o arco, alinhei os dedos e, então, nada. Eu não conseguia tirar aquela melodia da minha cabeça e, ao mesmo tempo, não conseguia trazê-la ao mundo real. 

Os dias pareciam passar lentos, e a repetição daquela melodia começou a se tornar torturante. A música, antes lenta e tranquila, parecia aumentar aos poucos. Ela não parava, não alterava, repetia-se em um loop dentro da minha cabeça. Eu tentei escrevê-la, traçava as pautas com rapidez, mas as notas não se encaixavam. Era como se a música fugisse de qualquer estrutura lógica; as notas pareciam se negar a tomar forma no papel, rejeitando existir fora da minha mente. Minhas tentativas de cantarolar eram inúteis: o som na minha cabeça parecia se dissolver assim que passava pela minha garganta. Ainda assim, eu insistia. Insistia dia após dia. Minhas mãos tremiam a cada tentativa, e minha mente parecia se desfazer lentamente, exausta de tantas noites sem dormir com aquela melodia que não queria existir. 

Eu me recordo do momento exato em que essa música começou a me torturar de verdade. Eu estava fora de casa, em uma tarde, tentando me concentrar nos sons das folhas, dos pássaros, dos carros, de tudo ao meu redor. Tentando me concentrar na paisagem. Mas parecia que tudo ia ficando mais cinzento, mais escuro, e, lá no fundo, a música aumentava. Seu tom se intensificava, suas pausas diminuíam, e as notas se elevavam, como se, a qualquer momento, fosse alcançar o clímax e, com isso, fazer meus miolos escorrerem pelos ouvidos. 

Voltei para casa e tentei mais uma vez tocar aquela melodia maldita. As cordas vibravam de maneira errada, as notas vinham distorcidas, o tom estava errado, e eu, frustrada. Até o violoncelo parecia se recusar a cooperar comigo. Algo estava diferente nele — ou talvez eu estivesse diferente. 

Comecei a evitar as pessoas. Suas vozes pareciam intensificar-se ainda mais; cada conversa me perturbava, tornando o som mais intrusivo, mais alto. Eu não suportava mais o mundo lá fora; cada ruído acrescentava mais urgência à melodia. O violoncelo tornou-se um fardo, mas eu não conseguia parar de tentar tocar a melodia. Achava que, se eu conseguisse, talvez ela cessasse. 

Então, tentei. Presa em minha casa, com janelas e portas trancadas e o som de fora abafado, coloquei o arco sobre as cordas, fechei os olhos e me concentrei na melodia dentro da minha cabeça. Ela já se misturava com o tique-taque do relógio, os ruídos dos canos, o som da geladeira, o barulho do ventilador e até o zumbido da eletricidade da casa. Puxei o arco com força, e o som que saiu não era da melodia. Talvez nem fosse humano. Era como um lamento, que fez todo o meu corpo se arrepiar, as paredes tremerem e a madeira do violoncelo vibrar. 

Soltei o violoncelo e olhei para ele com horror, mas não conseguia controlar o impulso de pegá-lo outra vez e tentar tocar a melodia, que agora parecia rir dentro da minha cabeça. Já nem sei o que é real. A melodia não me deixa, e eu não consigo deixar de tentar tocá-la. O violoncelo parece não aguentar mais: suas cordas estão tensas, prestes a arrebentar. Eu só quero tocar essa maldita melodia, só quero que ela tome forma — ou talvez seja melhor que ela permaneça aqui, dentro da minha mente, onde sempre esteve. 

Texto publicado na Edição 11 - Somníria, do Castelo Drácula. Datado de dezembro de 2024. → Ler edição completa

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