Maldita Melodia
Algumas vezes, as coisas habituais se tornam estranhas; não o estranho de não reconhecer, mas o estranho desconfortável, aquele que incomoda, que é anormal. Coisas que antes eram familiares se tornam incomuns. Assim foi com a música. Tudo começou como um sonho, ou melhor, como um sussurro musical no meio da noite, que penetrava a minha mente. Quando acordei, a melodia continuava ali, flutuando no meu cérebro e, por algum motivo, ela não ia embora. Às vezes, acontecia de uma melodia se prender à minha mente, e eu ficar a cantarolar por horas e, às vezes, dias, aquela mesma melodia. Sentei-me na beira da cama, tentando capturar a melodia que ainda flutuava no meu cérebro. Era bela, embora impossível de cantarolar. Meus lábios não conseguiam formar os sons. Fui até meu violoncelo e tentei transcrever aquela melodia para as cordas. Posicionei o arco, alinhei os dedos e, então, nada. Eu não conseguia tirar aquela melodia da minha cabeça e, ao mesmo tempo, não conseguia trazê-la ao mundo real.
Os dias pareciam passar lentos, e a repetição daquela melodia começou a se tornar torturante. A música, antes lenta e tranquila, parecia aumentar aos poucos. Ela não parava, não alterava, repetia-se em um loop dentro da minha cabeça. Eu tentei escrevê-la, traçava as pautas com rapidez, mas as notas não se encaixavam. Era como se a música fugisse de qualquer estrutura lógica; as notas pareciam se negar a tomar forma no papel, rejeitando existir fora da minha mente. Minhas tentativas de cantarolar eram inúteis: o som na minha cabeça parecia se dissolver assim que passava pela minha garganta. Ainda assim, eu insistia. Insistia dia após dia. Minhas mãos tremiam a cada tentativa, e minha mente parecia se desfazer lentamente, exausta de tantas noites sem dormir com aquela melodia que não queria existir.
Eu me recordo do momento exato em que essa música começou a me torturar de verdade. Eu estava fora de casa, em uma tarde, tentando me concentrar nos sons das folhas, dos pássaros, dos carros, de tudo ao meu redor. Tentando me concentrar na paisagem. Mas parecia que tudo ia ficando mais cinzento, mais escuro, e, lá no fundo, a música aumentava. Seu tom se intensificava, suas pausas diminuíam, e as notas se elevavam, como se, a qualquer momento, fosse alcançar o clímax e, com isso, fazer meus miolos escorrerem pelos ouvidos.
Voltei para casa e tentei mais uma vez tocar aquela melodia maldita. As cordas vibravam de maneira errada, as notas vinham distorcidas, o tom estava errado, e eu, frustrada. Até o violoncelo parecia se recusar a cooperar comigo. Algo estava diferente nele — ou talvez eu estivesse diferente.
Comecei a evitar as pessoas. Suas vozes pareciam intensificar-se ainda mais; cada conversa me perturbava, tornando o som mais intrusivo, mais alto. Eu não suportava mais o mundo lá fora; cada ruído acrescentava mais urgência à melodia. O violoncelo tornou-se um fardo, mas eu não conseguia parar de tentar tocar a melodia. Achava que, se eu conseguisse, talvez ela cessasse.
Então, tentei. Presa em minha casa, com janelas e portas trancadas e o som de fora abafado, coloquei o arco sobre as cordas, fechei os olhos e me concentrei na melodia dentro da minha cabeça. Ela já se misturava com o tique-taque do relógio, os ruídos dos canos, o som da geladeira, o barulho do ventilador e até o zumbido da eletricidade da casa. Puxei o arco com força, e o som que saiu não era da melodia. Talvez nem fosse humano. Era como um lamento, que fez todo o meu corpo se arrepiar, as paredes tremerem e a madeira do violoncelo vibrar.
Soltei o violoncelo e olhei para ele com horror, mas não conseguia controlar o impulso de pegá-lo outra vez e tentar tocar a melodia, que agora parecia rir dentro da minha cabeça. Já nem sei o que é real. A melodia não me deixa, e eu não consigo deixar de tentar tocá-la. O violoncelo parece não aguentar mais: suas cordas estão tensas, prestes a arrebentar. Eu só quero tocar essa maldita melodia, só quero que ela tome forma — ou talvez seja melhor que ela permaneça aqui, dentro da minha mente, onde sempre esteve.
Texto publicado na Edição 11 - Somníria, do Castelo Drácula. Datado de dezembro de 2024. → Ler edição completa
Valesca nasceu no Rio de Janeiro (RJ), cursa Ciências Biológicas, encontra-se no último período. Tem paixão por ciências, subcultura gótica, livros, seres sobrenaturais, ficção científica, cemitérios, igrejas e morcegos, ela também é voluntária em um projeto de divulgação científica chamado "Morcegos na Praça". Escrevia com frequência, mas afastou-se da prática ao ingressar na faculdade. No entanto, durante a pandemia, retomou a escrita como meio de…
Leia mais em “Contos”:
Uma criatura de agoníria atravessara o portal obsidia; foi contida por Somníria dentre as densas nuvens alvililáses, todavia, em sua força sombria…
Quando me aproximei daquelas ruínas, imaginei que encontraria destroços de um outrora sombrio, objetos deteriorados pelo tempo e, talvez, segredos…
Aquele inverno estava rigoroso. O ar gélido açoitava, sem escrúpulos, a face dos transeuntes e endurecia os seus corações, já embrutecidos…
O convite chegou sorrateiro. Cartão negro, emoldurado por pétalas banhadas a ouro, letras cursivas que pareciam dançar no papel, anunciando que…
…O pior de tudo era ter que voltar para casa de mãos abanando e sem nenhum argumento que pudesse lhe valer, e ser obrigado a contemplar o olhar de…
Efervesce a penúltima instância dessa madrugada que precede a miséria. A cova estreita, madeira de bétula, os vermes e comichões... É o meu dia…
Prometeram-me que não haveria enredo depois do fim! Quem eles pensam que são?... Como ousam mentir?! Não há morte, não há honra, não há sono...
O sol era a nódoa escarlate na imensidão enevoada em um carmim enegrecido; o sol não tangível em sua forma de estrela, era tão só um clarão rubro…
Algumas vezes, as coisas habituais se tornam estranhas; não o estranho de não reconhecer, mas o estranho desconfortável, aquele que incomoda, que é anormal…
Os outros dois companheiros que acompanhavam o cortejo logo apertaram o passo e deixaram os outros três para trás…
A cama estava sem o lençol. O espelho estava quebrado. Na cômoda havia poucos pertences: apenas um hábito limpo, algumas roupas íntimas…
Mmoggun era um artesão que vivia em um vilarejo isolado, onde sua arte de esculpir máscaras era vista como uma habilidade quase mística…
Certa vez, na quinta série, adaptamos a brincadeira do copo para uma folha de papel. Nessa folha, escrevíamos o alfabeto no topo e as palavras…
Falos. Colecionava-os, de todos os tipos e tamanhos. Os primeiros, comprara em sex shops. Depois que se tornara médica legista, ficou mais…
O relógio batia nove horas, e José, diferente dos jovens de sua idade, preferia estar em seu quarto, testando algum software novo, descobrindo…
Na minha maldição de viver muitas vidas, ainda tenho a vã esperança de encontrar, além dela, todas as minhas almas amigas…
Entrevistador: Qual era sua relação com a vítima? | Amigo da vítima: Nos criamos juntos. Amigos de rua, de infância…
Tudo começou com uma reminiscência. Caminhando pela rua, por alguma calçada que serviu de gatilho, voltei vinte anos atrás…
— Alertei para ele não ir até lá... — disse Marcos, equilibrando seu corpo inebriado na banqueta, os cotovelos apoiados na bancada de madeira…
— Cara, acho que não está dando certo — falou Fabrício, observando o copo imóvel no centro da tábua. — Pois é. Não se mexe. Talvez devêssemos…
Tenho que acordar todos os dias às 7h da manhã. Mas levantar cedo nunca foi meu forte. Para que eu consiga, de fato, despertar até o horário…
Quando o lockdown começou, muitos falavam sobre o fim dos tempos; como negar isso? Eu via apenas o nada lá fora, apenas fragmentos de uma…
Na cidade pulsante de Nova Arcadia, onde o neon iluminava…
No coração de um lixão vasto e sombrio, onde o sol raramente penetrava a nuvem de lixo e decadência, vivia uma criança chamada Leo. Seu pai, um homem…
Ramalho era um homem praticamente invisível, não no sentido literal da palavra, mas na forma como ele caminhava pelo mundo sem chamar…
Samuel sempre foi um entusiasta da tecnologia. Desde pequeno, ele tinha um fascínio por tudo que conectava humanos…
Tia-avó Antônia era considerada "a tia legal”; adorava crianças, animais, coisas estranhas. Morou por muito tempo com a tia Vitória, irmã mais velha…
A construção estava em ruínas. Aquela casa devia ser mais velha que o mundo. Os matos cresciam desordenadamente e tomavam conta dos…
Desde que entramos em quarentena, nunca mais fomos os mesmos. Dia após dia, nossa sanidade foi cruelmente usurpada pelo desconhecido…
— A arte, querida Bella, requer vida e morte, tu sabes… — Bellanna pretendia argumentar, todavia, Dhiego aumentou seu tom de voz ao notar que seria interrompido…