A Face Encarnada do Medo
Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula
Olhos de pútrida esperança; entre o frígido derredor, onde as mãos do insondável inverno conduzem a pequenez de seres irrisórios. Ela se aproxima, mãos trêmulas; um corvo-albino a rodeia, parece segui-la por vínculo — o que me impressiona, é certo, pois são criaturas ríspidas. Carregando o peso de um grande casaco de pelame de ursos negros, ela caminha devagar; o vento impiedoso ainda arrefece sua lívida tez. Ela busca por humanidade em recônditos aquecidos por uma chama à lareira, mas, não há mais lume; as ruínas que deixei são álgidas e traiçoeiras.
Medo... é isso que atravessa sua carne no instante em que toca os primeiros escombros mastodônticos. Eu sinto o medo que a penetra violento. Que saudade sinto d’este lôbrego arrepio subindo pela espinha dorsal de meu próximo mártir; ó... sim... fascinante! O corvo-albino pousa no ombro dela, ele sabe do perigo, porém, jamais poderá alertá-la. Este era um reino próspero, cara visitante; sorvi da vida fértil e tive o mórbido prazer de assimilar seu idioma. Tão bela a minha obra de arte... de morte... tão bela que não pude deixá-la e, por isso, aqui estou, há mil e um milhões de anos; observando. Agora, vens tu; doce humana frágil; exígua criatura...
A densa atmosfera é a cinesia que a cinge; ainda assim, em assombro, ela adentra os escombros do que outrora fora um lar abastado — O que houve aqui? — ela sussurra e, tão logo, um lume é aceso por ela com um tipo raro de artefato. Sou atraído a apagá-lo com um sopro de horror, contudo, por hora, agrada-me ver a vida sob seu brilho, a vida que hei de sorver, gota a gota. Aquecida, serena-se, porém, não o suficiente; a escuridão é o meu domínio, isso a terrifica. Para o meu abíssico gáudio, seu nome se desvela à minha consciência: Anissa... De tudo sei, Anissa; do teu coração em mágoa, do pranto, da dor e, principalmente, do medo. Dá-me o teu pavor, criatura feminil, dá-me o teu olhar de tormento!
“Algo terrível aconteceu n’este lugar... eu sinto uma inominável aura dos cantos onde o lume não alcança, o breu parece possuir corpos e olhos que perseguem meus movimentos.” — ela escreve. “Ttir acompanha-me e está agitado como outrora não esteve, mesmo quando, ao meu lado, viu-me ser violentada pelo oceano cujo atroz poder revelara ao meu herodes que há forças bem maiores do que a sua crueldade desoladora. Estas mesmas profundas águas, condenaram-me aos escombros gélidos em que me encontro. Que perversa ventura... que hediondo fado! Tenho medo... um temor que toca minha tez, que olha para os meus olhos... nessa imensidão sombria...” — Sou eu, ela não sabe. Eu te vejo, Anissa... Eu sou a raiz do teu temor... sinta-me em teu corpo... nos poros da tez que pertence a ti... nem teu algoz ou o ancestral oceano são capazes de conceber tão genuíno terror. Venha para o abismo da loucura, ouça o murmúrio da tua agonia advir, ressoando em teus ouvidos...
Escurece. Ela aguarda pelo alvor, escondida em minha destruição. Mal sabe que se amanhecer para seu deleite, é porque permiti. Adormecida, sei que sonhará com a meu rastro: a insânia. Um rosto rígido e feliz, de soslaio, fitando seu tormento. Mas, desta vez, não quero este jogo cruel. O corvo-albino crocita, Anissa acorda de súbito e suas pupilas se contraem. Este sou eu. E agora tu me vês. Teu pavor nasce lento, teu susto te afasta, teu grito me enleva. Queres ouvir a minha voz? Sou capaz de falar como os que eram símeis a ti, humanas criaturas ínferas...
— Anissa... — Profiro. Caída no canto, ela mal consegue respirar. — Que sublime é o aroma negrume do teu instável temor... Não aprecias o que vês? — Indago, densificando as trevas; tornando seu lume em um risível vagalume. Lacrimeje, menina. Como é frágil... Desapareço para brincar com sua mente, ela grita e fecha seus olhos lacrimosos. Trarei o amanhecer, pequena criança, para que outra noite traga a face rígida à tua espreita, com o riso mórbido e a minha visita. Estou sempre olhando para ti, admirando o medo que escorre em tuas têmporas e guiando as imagens infernais do teu onírico. Ela caminha mais à fundo na vila do sibilo da morte e da loucura. Está exausta, em tormento e dor.
“Ele tinha uma feição humana...” ela escreve quando encontra uma antiga catedral em ruínas e adentra seu esplendoroso interior; notando se tratar do que fora uma alcova de fé há éons, esgueira-se entre ervas daninhas do ártico. “Entretanto, seus olhos eram umbrosos, com as cavidades expandidas e fundas, tal como a área menos óssea de seu rosto, marcada por uma fundura que lhe dava um aspecto cadavérico e... sua pele era carne pútrida... Nunca senti tamanho medo...” — E nunca alguém fora assim, suficientemente intrépido, para redigir minha aparência, Anissa. “Sinto falta de Sihren... sei que morrerei n’este insosso lugar... consumida por uma diabólica criatura, porventura advinda das agruras pertencentes a mim...” — Sim; sou eu, criado por tua tolice. “Estarei sempre fadada ao horror? In perpehctua?”.
O corvo-albino voa pelos vitrais estilhaçados; Anissa o observa. Ele deve morrer; sua presença é desgraçada e impede que o meu tétrico expandir alcance o mártir. Então, o avisto; na brancura da densa neve; tu vês, mediano animal, esta turvação? A atmosfera a renegar o teu voo? Não posso controlar o tempo, de fato, mas sinto o medo de tudo o que respira e o medo sempre há de se ampliar sob meu fitar. Por infortúnio, perco-o na imensidão cândida. Um assovio quebranta o horizonte, o corvo retorna à Anissa; ao redor da flama áurea, eles se deliciam com frutas secas. — Resta-nos pouco alimento, Ttir... por favor, voe para Sihren e sobreviva! Não sabes o quanto destruirás meu coração, impedindo minha alma da paz eterna, sob a circunstância de ter sido razão da morte tua, de meu único amigo... — ela diz, o corvo a compreende.
Contudo, ergue-se a segunda noite lôbrega e, com ela, o meu poder. A face rígida em sorriso diabólico emerge das trevas, Anissa sabe e evita que seus olhos mirem a aparição. É em vão. Seu suor escorre, sua tensão exala. O corvo crocita. “O que é isso...? Eu estou delirando...?” — Sim, está, pequena infeliz. Um sussurro em eco pela catedral, um murmúrio nos tímpanos de Anissa. Chama pelo nome dela. De repente, ela se levanta apontando, ao derredor, o seu lume pulcro. “Quem está aí!?” — Vocifera oscilante. Gosto da tua solidão, criatura humana; enquanto estiveres só, na amargura pertencente às tuas mazelas, eu estarei à espreita — sussurrarei teu nome nas noites mais fúnebres; farei visível o rosto rígido que ri, na tua visão paralela, uma presença pecaminosa; consegues sentir, não é? Bem atrás de ti... enquanto me lês.
“Isso não é real...” — Lamúrias de insignificância. Anissa se encolhe como um feto exaurido. Seu coração é o púlpito do meu esconjuro. Estou no silêncio, entidade notívaga, apague a luz para me ver. “Está... dentro de mim?” — Ela segreda a si mesma. Sim, estou dentro de ti; arranque-me por sua tez; corte sua carne para me encontrar. Eu sou o teu medo. Ela leva suas mãos ao seu crânio dorido, as têmporas estalam em algia; o corvo que voava em ansiedade mórbida, de súbito, cai; morto; morto de temor. Anissa o acaricia, em lágrimas. “Ttir... não... por favor Ttir!” — agoniza junto ao pássaro cuja expressão é de um pânico hediondo. Acolhe-o em seu casaco. Mas eu quero mais. Tu vês? Tua chama enfraquecendo...? A escuridão ascende... ela pesa... é densa... ramosa... sólida... capaz de sufocar... lentamente...
Anissa busca pelo sopro hialino da vida; ares de alívio. É em vão. Ela está submergindo. Aflita, rasga a pele de seu pescoço, seus olhos arregalados, semblante pávido. Quem ousou dizer-te que o horror é frígido? Anissa tira seu casaco, pois, está quente; o inferno em suas pernas e braços... “So...corro...” — murmureja. Agora é a minha hora, em minha mais bela e vil aparição. Uma besta horrenda e deformada, humanoide esguia, sempre sorrindo; decomposta, exposta em carne escarlate. Ela não consegue tirar seus olhos dilatados de mim. A escuridão atrai o mártir ao seu horror. Trêmula e sem oxigênio. Agônico pavor. Uma excelsa sínfora para mim que, por infortúnio, se esgota quando ela, a vulnerável, desmaia; púrpura de tanta adrenalina; hirta como uma estátua de mármore. Ela não está morta; há de retomar a consciência e chorar de horror. Tão frágil... Tu és tão frágil...
E esta é apenas a segunda noite, quantas outras virão? Quantas suportarás sob meu macabro domínio? Desejo que muitas... para o meu vil prazer.
Olhos de pútrida esperança; entre o frígido derredor, onde as mãos do insondável inverno conduzem a pequenez de seres irrisórios. Ela se aproxima…