Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

“Porquanto és pó, e ao pó retornarás...”. — Gênesis 3,19

Nas pequenas cidadelas e nos ermos lugarejos onde o tempo parece ter parado e a modernidade ainda não se fez presente, onde as formas de entretenimento da população local são bastante reduzidas, até mesmo um velório pode se tornar um grande acontecimento social. E se o falecido for alguém muito querido, logo se transforma num grande evento, atraindo a atenção e a participação de quase toda a população, tanto do próprio lugarejo quanto de suas cercanias.

Nesses determinados lugares, distantes de quase tudo aquilo que possa ser considerado civilizado, reina o atraso e o obscurantismo num grau assustador aos olhos de um ser citadino. Isto é, há um angustiante misticismo carregado de todo tipo de estórias e costumes, ainda um tanto quanto arcaicos, que se faz presente. O homem, nessas regiões, ainda está muito ligado à natureza que, por sua vez, rege sua vida desde o nascimento até bem depois de sua morte. A religião, com seus dogmas e costumes, também se faz presente durante toda a vida desses seres, ditando as regras básicas de como suas vidas devem ser geridas, a fim de que, no final de sua inquietante e sofrida trajetória, o descanso eterno lhes seja possível.

Dona Niltinha, sublime pessoa que a muitos tinha trazido à vida, “... havia se encontrado com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre...”, como diria aquele ilustre poeta da Paraíba.

Comparando à quantidade de gente que geralmente vive nessas regiões, havia até um número considerável de pessoas, mesmo se tratando de um dia de meio de semana. Os que estavam ali presentes, de forma alguma mediriam qualquer tipo de esforço para prestar suas últimas homenagens àquela nobre criatura, que era muito querida e bastante estimada por todos aqueles que a conheciam.

Quem ainda não havia chegado, mesmo que apenas para prestar suas condolências e logo voltar a seus afazeres, certamente ainda haveria de comparecer, ainda que fosse somente para o sepultamento, que ocorreria no dia seguinte, após o velório que atravessaria toda a noite, aguardando parentes e amigos distantes para o último adeus.

Para aquele evento em si, a noite estava bastante propícia, pois era clara como o dia. A lua quase cheia ocupava o meio do céu naquele momento, e a brisa que soprava do rio estava fresca e perfumada por causa das flores das diversas árvores que florescem no Cerrado nessa época do ano. No entanto, o odor mais marcante naquele momento era o de duas espécimes em particular: no quintal da falecida, as duas frondosas “Damas da Noite”, bastante floridas, exalavam um aroma inebriante, que tomava conta de toda aquela baixada.

As inúmeras criaturas da noite também se faziam presentes, ocupando-se do som ambiente com suas incansáveis serenatas. No gramado, grilos cricrilavam sem parar; na lagoa, as rãs coachavam sem descanso; e, vez por outra, uma coruja dava um voo rasante, emitindo seu agourento piado.

Nessas regiões interioranas, esse tipo de evento envolve todos os familiares, amigos e conhecidos, e é sempre rodeado de certos costumes que, para muitos, podem causar até certa estranheza. O velório acontece geralmente na sala, onde o corpo é deixado no centro, para que haja espaço para que parentes e amigos possam se agrupar em derredor. Por mais simples e humilde que a família possa parecer, ainda assim, na cozinha é preparada bastante comida para os convivas que passarão a noite.

O café – que jamais pode faltar – é servido a todo momento. Dependendo da família do falecido, no decorrer da noite, doces e guloseimas também são oferecidos. Há uma espécie de rodízio entre os que ficam na sala próximo ao caixão: alguns se lamentando e outros tentando consolar os que lamentam. Outros ficam do lado de fora da casa, conversando, contando anedotas e até mesmo fazendo pequenas negociatas.

Quando a conversa externa se torna mais animada e o barulho se mostra um tanto quanto desrespeitoso, sempre há alguém para chamar a atenção. Nesse momento, é feito o rodízio.

Levando-se em conta que a noite é bastante longa e, em muitas ocasiões, acompanhada de madrugadas muito frias, sempre há um ou outro que acaba levando consigo uma garrafa de algo um pouco mais forte para molhar a garganta e aquecer o estômago.

É certo que essa tal regalia fica discretamente escondida, para que não haja nenhum tipo de comentário discriminatório, mesmo que todos saibam que há e onde está escondida.

No decorrer da noite, geralmente ficam despertos os parentes mais próximos e mais amorosos, os amigos íntimos e alguns poucos conhecidos. São, em sua maioria, pessoas mais velhas e ainda com vigor para enfrentar uma noite inteira acordadas. Há também os denominados papa-defuntos, que sempre fazem questão de acompanhar todo e qualquer cortejo fúnebre, desde o início do velório até o cemitério, para o sepultamento.

A falecida em questão não era uma pessoa qualquer, mas sim Helenilta Marcondes Narciso, alcunhada Dona Niltinha, afamada parteira e poderosa benzedeira. Sua fama corria dezenas de léguas e atravessava serras e rios. Incontáveis pessoas tinham chegado a este mundo com seu auxílio, e outras tantas, ela tinha evitado que saíssem dele antes da hora.

Além de parteira de mãos ungidas, também benzia contra inúmeras moléstias, desde quebranto e mau-olhado até picada de cobra venenosa. Ela mesma tinha tido apenas três filhos, pois, sendo mulher instruída na prática da magia e nos conhecimentos das ervas medicinais, sabia muito bem sobre beberagens para evitar gravidez.

Desde que tivera Joaquim – seu filho caçula, chamado “Quinca” –, que nascera com as pernas deformadas, ficou temerosa de que ela ou seu falecido marido talvez não tivessem mais condições de procriar filhos saudáveis.

Além do aleijado Quinca, que nunca se casara e ainda vivia com a mãe, Dona Niltinha tivera duas outras filhas: Gertrudes – chamada “Geta” –, a mais velha, uma competente dona de casa que vivia numa casa próxima e cuidara da mãe nos últimos anos em que ela esteve acamada; e Genoveva – chamada “Gena” –, a filha do meio, uma professora de primário que vivia um pouco mais distante, numa cidade próxima. Ambas já eram casadas e tinham filhos e filhas.

Dona Niltinha tivera o privilégio de amparar ambas as filhas em seus partos e auxiliar seus netos a chegarem a este mundo. Geta e Quinca, que já tinham chorado bastante a perda da mãe, ainda aguardavam a chegada de Gena para chorarem um pouco mais.

Gena, que vivia cerca de sete léguas de distância, havia estado na casa da mãe no final de semana anterior. Contudo, tivera que retornar para sua casa e para seus afazeres profissionais na escolinha onde trabalhava, pois, até então, sua mãe não era nenhum poço de saúde, mas também não dera mostras de que morreria a qualquer momento.

É certo que jazia numa cama há mais de cinco anos, pois, tal qual o próprio Quinca, também perdera os movimentos das pernas. Gena até mesmo comentara que achava que sua mãe estava mais corada e com maior disposição. Mas, como a morte, em muitas ocasiões, vem sem avisar, na tarde de quinta-feira, logo após o almoço, Dona Niltinha reclamara de fortes dores no peito e pediu que Geta lhe fizesse um chá de erva-cidreira, que ela tomou com muito gosto, bendizendo a filha pelo carinho para com ela.

Geta, percebendo que a mãe dormia sossegadamente após o chá, decidiu ir rapidamente até sua casa para resolver alguma pendência doméstica que exigisse sua presença e logo retornar para ver como sua mãe estava. No entanto, seus afazeres tomaram mais do seu tempo do que imaginava, e ela só retornou no final da tarde, já com o jantar pronto, tanto para sua mãe quanto para seu irmão Quinca.

Este, por sua vez, estava sentado em sua cadeira de rodas debaixo da frondosa e florida paineira logo à frente da casa, contemplando o final de mais uma tarde. Geta se encaminhou para dentro da casa, mas, em poucos minutos, voltou para fora aos prantos, dizendo, em desvairado desespero, que sua mãe estava morta.

Depois disso, foi um rebuliço só. Em menos de uma hora, a pequena casa já estava apinhada de gente. Dona Niltinha fora dada como morta por volta das cinco da tarde e, antes das oito horas da noite, já estava banhada, amortalhada e convenientemente enfeitada para o velório.

No caixão, que fora rapidamente improvisado pelos vizinhos mais habilidosos, havia diversas flores diferentes, dando um aspecto bastante primaveril à querida falecida, que deixava atrás de si um rastro de gratidão e muitas boas histórias para todos aqueles que a conheciam.

Dona Niltinha, em vida, não era uma criatura dotada de grande beleza, mas também não era de assustar ninguém com sua aparência. No entanto, parece que a morte não tinha sido muito gentil com ela, e ali, deitada no caixão, não era uma imagem muito interessante de se ver.

Suas magras mãos, que, devido à artrite, tinham adquirido o formato de conchas, pareciam ter crescido e ficado com um aspecto assustador pelo tamanho dos dedos e pelas unhas amareladas. Seu rosto ossudo estava encovado e com uma aparência bastante maquiavélica, como se tramasse uma grande maldade. Para Quinca e Geta, era apenas sua falecida mãe que estava ali, e o desconsolo de ambos era algo inominável.

Quinca era o mais choroso dos dois, pois sabia que, a partir dali, sua vida não seria nada fácil sem o carinho e a proteção de sua mãe.

Já passava da meia-noite, quase uma hora da madrugada, com a lua já se encaminhando para o horizonte, quando Gena chegou acompanhada de seu marido e de seus três filhos. Ela, que já vinha com o rosto todo banhado em lágrimas – pois passara o caminho inteiro se acabando de chorar –, pulou do cavalo em que estava ainda na entrada do caminho que levava até o pátio da casa e logo se encaminhou para o local onde a mãe estava sendo velada, ignorando os cumprimentos que recebia pelo caminho. Seu marido era quem os agradecia.

Gena, ao entrar na sala, lançou-se sobre a mãe e quase a derrubou no chão. Seus gritos podiam ser ouvidos de muito longe. Sua dor era algo indescritível. Seus irmãos, que pareciam já ter se conformado um pouco mais, juntaram-se a ela naquele ensandecido desespero e também choraram bastante.

Por quase meia hora, houve muitas lamúrias e bastantes soluços.

No entanto, se não há felicidade que perdure para sempre, o sofrimento também não deve ser ad aeternum, e logo os ânimos foram se abrandando, e o silêncio se fez presente outra vez, sendo rompido, vez por outra, apenas por um soluço mais profundo ou um suspiro mais dolorido, vindos principalmente de Gena, que se aninhara ao lado da mãe e de lá não saíra mais.

Seu marido, Carmelito, um vaqueiro acostumado a dormir cedo e levantar-se sempre de madrugada para a lida com o gado, sentou-se em um pequeno tamborete um pouco mais afastado, encostado logo à parede, tentando ao máximo vencer o sono, mas, vez por outra, dava breves cochiladas, das quais despertava com os sons de ais que sua esposa emitia em involuntárias demonstrações de sofrimento pela perda.

Quincas estacionara sua velha cadeira de rodas no lado oposto de Gena, mas não tão próximo ao caixão, pois já tinha passado por essa fase e agora lamentava muito mais sua vida a partir dali do que a própria perda da mãe. Alguém o ouvira dizer, quase em sussurro entre um suspiro e outro, que não era justo ele ficar nesse mundo sem sua amada mãe.

Geta estava sentada ao lado do esposo, num banco rústico, em um canto mais afastado, e, vez por outra, dormitava alguns minutos, acordando sobressaltada com os suspiros da irmã.

A noite, que avançava lentamente, alcançara aquele horário em que o silêncio se faz presente em qualquer lugar, onde tudo se aquieta e todos parecem dormir. Na sala, meia dúzia de gatos pingados ainda se aguentava acordada, enquanto outros, lá fora, rodeavam uma fogueira improvisada, num silêncio quase absoluto, sendo rompido, vez por outra, por alguma estória que envolvesse a falecida e suas benfazejas práticas, tanto de competente parteira quanto de forte benzedeira.

A falecida, que estivera entrevada numa cama por mais de cinco anos, tinha ficado com as articulações das pernas atrofiadas e, por isso, fora necessário amarrá-la dentro do caixão para que permanecesse na posição adequada.

No entanto, devido às diversas evoluções que o corpo enfrenta logo após ter todas as suas funções vitais cessadas – rigidez cadavérica e inchaço pela produção de gases – e ao fato de os nós que prendiam as pernas de Dona Niltinha estarem bem apertados, impedindo que o corpo retornasse ao estado habitual dos últimos cinco anos, ela, num rápido movimento, levantou-se de supetão e ficou sentada no caixão, como alguém que acaba de despertar de um terrível pesadelo.

Gena, que a todo tempo clamava pela mãe em profundo desespero, foi a primeira a correr, deixando para trás tanto a mãe por quem tanto lamentava quanto o marido ou qualquer outro que fosse.

Carmelito, seu marido, que havia colocado um dos pés entre as travessas do tamborete, ao sair correndo apavorado, trouxe consigo uma das travas do pequeno banco, mas também deixara para trás uma considerável tira de pele da própria canela.

Geta e o marido saíram pela porta da sala aos trambolhões, um caindo sobre o outro e se levantando logo em seguida. Os demais fugiram como puderam.

Teve gente saindo até mesmo pela janela.

Os que estavam do lado de fora, vendo e ouvindo todo aquele alvoroço, também correram em disparada, sem ao menos saber do que se tratava. Um deles, ao tentar passar por cima da fogueira e cair sobre ela, acabou queimando ambos os pés e ferindo uma das mãos.

Depois de alguns minutos, quando os mais corajosos decidiram retornar para verificar o que realmente havia ocorrido, se depararam com a falecida sentada no caixão, com o corpo pendido para um dos lados, quase caindo ao chão.

A partir de uma observação mais detalhada, logo se soube o motivo de aquilo ter acontecido. O corpo de Dona Niltinha rapidamente foi devidamente acondicionado ao seu caixão, e todos puderam fazer um breve inventário dos possíveis danos que cada um havia sofrido na desvairada fuga.

No desespero que cada um enfrentara, todos esqueceram o pobre Quinca e, quando finalmente deram por falta dele, perceberam que sua cadeira de rodas estava vazia. Nesse momento, organizou-se uma verdadeira frente de buscas para tentar encontrá-lo.

Por mais de meia hora, chamaram por seu nome. Primeiro, dentro da casa; depois, ao redor, pelo lado de fora; e, em seguida, um pouco mais distante, mesmo que aquilo parecesse um completo absurdo, pois, em toda sua vida, ele jamais dera um único passo sequer.

Mesmo assim, fizeram uma varredura em um raio de quase duzentos metros ao redor da casa e, quando já estavam prestes a desistir e esperar pelo nascer do sol, encontraram-no morto, enrolado nos arames farpados de uma pequena cerca que circundava um velho chiqueiro.

 De alguma forma, – sabe lá Deus como – ele havia descido de sua cadeira e fugido como todos os outros fizeram, mas, em completo desespero e sem saber para onde estava indo, acabou se enrolado ao arame, morrendo enforcando. Sua mãe que sempre cuidara dele, ouviu suas preces e veio buscá-lo...

Texto publicado na Edição 13 da Revista Castelo Drácula. Datado de fevereiro de 2025. → Ler edição completa

Leia mais em “Contos”:

Anterior
Anterior

Adormecido Sol

Próximo
Próximo

Diário de Anton Stefan Miahi — VIII