Amor do Pai

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula
Ismael viveu toda a sua vida intimamente com o medo, que era seu melhor amigo, amante e confidente. Sentia-se perseguido a todo momento, e uma voz discreta no fundo de sua mente sempre o lembrava de olhar por cima do ombro ou dormir com a luz acesa no quarto.
Aos vinte e dois anos, atacou um idoso enquanto gritava que o andador dele eram tentáculos. Isso ocorreu à luz do dia, em um mercado famoso da cidade. O resultado foi uma internação compulsória até que a situação se estabilizasse.
Aos trinta anos tornou-se padre, encontrando paz de mente na santa casa, sob o zeloso e amoroso olhar do Pai. Mas, no fundo de sua consciência, ainda ouvia a voz que o lembrava de olhar para trás quando estava sozinho.
Em uma noite de chuva torrencial, no calor escaldante do janeiro campinense, Ismael estava ajoelhado sozinho em frente ao grande crucifixo da nave da igreja. Rezava fervorosamente, pois sabia que o horror da paranoia havia retornado. Solicitava, com angústia, ser guiado a um estado de espírito elevado que o fizesse esquecer a alucinação que tivera há poucos momentos.
A igreja estava sem energia já fazia horas. Ele escutava sons alienígenas e aterrorizantes vindos de um corredor escuro à direita, próximo de onde encontrara o corpo do jovem coroinha. Era um eco agudo que passava por cima de suas orações, não importando o quão alto rezasse.
Cravou as unhas na coxa; a dor trazia paz, silêncio e a bênção da santa casa. Funcionou.
O barulho que invadia sua mente e destruía seus pensamentos cessou. Continuou rezando e se machucando por mais alguns instantes para garantir. Chorou de alegria ao concluir que havia sido bem-sucedido. Encontrou na escuridão a paz e o amor que só o Pai e sua casa poderiam proporcionar. Agora, teria que encarar seu medo para provar a si mesmo que não havia corpo algum.
Entrou na sala mal iluminada pela lua. O corpo não se encontrava entre as mesas e cadeiras. Respirou fundo, aliviado. Sentia-se feliz agora que tinha O guia para conduzir sua mente atormentada.
Virou-se para se retirar aos seus aposentos e cuidar do ferimento na perna, mas se deparou com dois seres que o observavam estáticos.
Ambos eram de um azul estrelado, como se galáxias habitassem seus corpos. Seus crânios eram desproporcionais ao resto do corpo, como bolhas que correspondiam a metade de suas alturas totais. Os corpos humanoides eram pequenos e de aparência gelatinosa.
A garganta de Ismael fechou, e ele não conseguia respirar. Tremia e gritava, em silêncio, que estava alucinando.
Ergueu os olhos em direção ao horizonte, ignorando os pequenos seres, da forma como havia treinado a vida toda. Deu dois passos à frente e sentiu algo gelado pegar suavemente sua mão, de forma quase carinhosa. Outro ser envolveu sua coxa na região da ferida que ele havia feito há pouco.
Agora, produziam um som que parecia uma canção da igreja. Sentia o corpo frio e a visão escurecendo rapidamente. O pequeno ser que havia envolvido sua perna com o braço ficava cada vez mais vermelho, transformando-se lentamente em uma galáxia carmesim.
Ele acordou algumas horas depois, cercado pelos irmãos e irmãs da igreja. Conseguia ouvir os pensamentos de todos em sua cabeça. Moviam-se e cantavam alegremente, procurando mais pessoas para trazer à comunidade.
Agora ele ouvia ao Pai, ouvia a todos e todo ouviam ele.
Texto publicado na Edição 13 da Revista Castelo Drácula. Datado de fevereiro de 2025. → Ler edição completa
Luiz E. Marcondes é um escritor brasileiro de literatura de terror cósmico e psicológico. Desde jovem, sempre foi curioso sobre a mente humana. Formou-se em Psicologia Comportamental e Existencial e faz uso de sua formação profissional para agregar mais complexidade e valor aos textos...
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