Asas nos pés da fugitiva
Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula
“Se opuseram, senhora.”
Vestiu-se, apressada, do manto grosseiro rumo ao ôco do inverno. Cavalarias, praguejos, convites de funeral… o inferno a incendiar os céus! “Era tão jovem… era tão belo…” Retirou do armário quatro ou cinco frascos da valeriana, dois de olíbano e um da mais búlgara rosa. Lavandas, folhas em branco, água de laranjeira; velas que, segundo bisbilhoteiros transeuntes, eram feitas de gordura humana e ambarada. Mais livros que roupa, arames no fecho das bolsas, estatuetas de Héstia; colares de rubi; três ou quatro casacos.
“Basta!”
Tudo tinha. E nada deixava a ser encontrado. “Dê tudo às meninas do cais, distribua entre suas amigas. Fique com o que quiser, também.” ternamente, agradecia-a com olhos e pulseiras de brilhante que, àquela altura, já não lhe traziam serventia. Partia, rumo à terra dos exilados. “Bruxa maldosa”, “fera fugida do submundo”, a “eterna mal-amada”, repetiam. Esperavam-na na praça, os vendedores e as costureiras, políticos e patrícias, todos para assistir ao rolar daquela cabeça, toda feita da ventania. E tanto queriam ver, num sopapo de lâmina, o cabelo voar… quão deliciosamente odiavam… e seguiam, a praguejar.
“Sem direito a defesa, por escolha do conselho.” Queriam a cabeça, o pescoço e toda a honra que um dia tivera. “Maldita seja!” gritava um ou outro, e muitos eram os nomes que recebia. Pouco se importava que falassem os amigos da família, as mulheres que sempre tivera de cumprimentar, o marido de sabe-se lá quem... Bem sabia que o conselho era pago para pensar. “Não há oráculo, não tem sabedoria nesses velhos, que raio de substância compõe este conselho, afinal?!”
“É a ordem, querida. É como funciona a vida.”
Na escrivaninha, o fumo que não terminaria, cartas que não seriam entregues e a procuração, em horrendo estrelismo ao centro da mesa. “A quem tentam enganar?... Com que balança pesam a escolha da vida e da morte? Como conseguem enfiar o peso de oitocentos cavalos numa decisão?... Sem direito à defesa. Como bicho.” e certo é que bicho se sentia. Rangia os dentes e dizia-se — fitando no espelho o amargo dos olhos — que seria sua, a vida. Não mais de um homem! Não mais do amor. Seria sua!
— Dois soldados passaram na rua da frente… mais trinta ou quarenta minutos até que passem novamente.
E aprontava, a si e às malas. “Não precisaria fugir se não o tivesse matado… não o mataria se não tivesse tentado matar-me primeiro.” E seguia, desnaturada. Caminhante vulcão, deserdada por Hera, terrivelmente distanciada de tudo aquilo que era. De tudo que existia até o último mês.
Dizia a carta que claras são as leis. A envenenadora deveria vir a público e enfrentar o peso da justiça. Matara Mateo, afinal! Como justificaria a crueldade infeliz de assassinar o único filho do procurador? Como explicaria à pobre mãe o porquê de impor, a seu doce menino, tamanha dor? Vomitara parte das vísceras, eles sabem. Ah, amargo cianeto… alega a menina que ouviu, somente, o conselho de uma bruxa mesopotâmica que passava. “A tudo se dá, a todos escuta!”, dizia o procurador ao investigador principal.
Mais falaria se soubesse, mais falaria, se conhecesse, à peça. Cantava com lamúria profunda, “voz de enterro”, repetiam os vizinhos; chamava a chuva sempre que queria empatar o andar da cidade e nunca, nunca abaixava a cabeça aos generais que passavam. Agora, condenada… Condenada! Mas não havia de dar o gosto àqueles que criaram um monstro, alimentado com ambrosia e endossado sua desonestidade. Não havia de render espetáculo à deglutição funesta dessa gente ruim.
— Queime esta porcaria de procuração… diga a mamãe que eu parti.
— E se perguntar-me para onde?
— Conte o que sabe.
— Mas, Isolda, eu não sei para onde está indo!
— Exatamente, querida! Conte o que sabe.
Fugiria, viveria na Itália, escondendo-se num convento e fingindo rezar. Abençoaria, noite e dia, a vida que fica; soterrando com terra de jardim o amargo daquelas feridas. Vingaria a primavera daquela pele febril. “Dane-se Saturnália! Danem-se os parentes daquele mesquinho, dane-se a vida que tive na Grécia! Não existe mais Grécia para mim… perdoe-me, Athena, por não ser como as boas… Por não enfrentar a morte… perdoe-me…”
E num levantar de folhas, as árvores contavam — em pleno silêncio — que honra alguma há em sacrificar-se. Matara para viver, e viveria.
A tempestade rugia, feroz, em tortuosa melodia, lembrando-a, a todo instante, do sino e do lodo das rochas; fervia o leite e temperava de especiaria. Eruptiva garganta, estômago inflamado… morta por dentro, morta para esta terra e morta para eles; tão longe de ser compreendida… “apressa-te, menina, ou vai perder o barco!”
Bebia, hora ou outra, do frasco de lavanda francesa, fugindo do ópio dos ingleses. A tormenta vinha mansa, maldosa, no seio do sono. Inquieta passagem de estrelas, estranho burburinho dos viajantes que seguiam, tão pouco interessantes. Paralisava-se no remoer constante das raladuras de sua alma, outrora luminosa. Outrora feliz. E, por segundos, congelava em divagação, tornando por interrupção, “uma água, madame?”
Como doía a vida… quão ingrato era o amante que achara de ter… Velha prosa em desmantelo… torrente aguda que insistia em desaguar — queria não ter memória, e queria limpar-se daquele homem maldito, e, por horas, queria não mais ser gente... E sorria, em busca de confundir o enfado, no rumo da doce Itália. “Talvez uma fuga ou outra, talvez uma tarde na cidade...”
Manhãs em prosa com os panos de chão, túnicas a remendar, baldes cheirosos… comida quente; sabor algum, exceto nas noites de vinho — pouco e às escondidas —. E o pão… “deixa passar, Amália, deixa passar.” — Mais ainda fermentava. Comíamos, e quão bom era o estrago; deitar à luz do luar, procurando constelação e zombando das idiotices do passado. Todo mundo tinha história, todo mundo tinha alguma vergonha a contar. Morríamos de rir das de quedas, mais ainda das brigas por meninos e das tias, com seus romances clérigos. E a conversa sempre findava num quarto escuro, sob a sombra de um pai desprotetor, ou de um irmão malvado. E de tanto remendar os panos, aprendia a remendar a si e às outras, tão quanto, feridas.
“Paciência com o amargo das mais velhas… nunca se sabe o porquê de estarem aqui.” “Tantas não chegam pela fé, mas em fuga, dos outros ou de si.”
E perdoava a grosseria, a bronca, a piadela. Perdoava o que se podia perdoar. E dentre elas, a irmã Zélia, bruxa oculta e curandeira, a quem sempre recorria quando precisava chorar. “Reze em mim, irmã… mas reze com folha e flor…” e ela rezava. Amornava a água que, por dentro, fervia e espantava os miasmas com palavras d’outro lugar. “E que tua mãe te abençoe”, dizia a voz, de fumo e camélia.
E no descarrilho da noite, atormentava-lhe o fel da alma. “Por quanto tempo fingirá ser freira neste convento? Como viverá sem liberdade?” Perguntava-lhe a sombra esgueirosa que em toda parte se fazia presença — a voz do desprezo, entoada das cavernas de dentro. “Ao contrário.” respondia-lhe. E sabia, viveria Athena e o lago, viveria Artemis, as ninfas e os sátiros no véu de cada madrugada. “Aquosas são as formas da liberdade.”, repetia, e muito acreditava. Ficaria o tempo que precisasse. Pouco seria.
O tempo engolia, à farta colherada, a dor daquela que encontrou no amor a inominável deslealdade. A face que não se mostra; o avesso monstruoso. Pouca gente sabia que trazia, Mateo, feridas de lepra em seu caráter, e tão bem fingia que era bom... Tão bem forjava o amor… risonho, juvenil… carne macia e preenchida da vaidade mais vazia. Seguia, ela, lavando os panos. Mãozinhas embebidas de toda a culpa que não era sua. “deixa lavar, deixe que a água leve embora esse sofrer…” — E não mais questionava o curso dos rios. Não chorava pecado algum, e grande esforço fazia para não perder um único acordar daquele céu, de alaranjada explosão — algodão a abafar a melodia chorosa das iniquidades e da miséria escondida, num pequeno bolso de sua mala.
Acostumou-se às pedras — à memória, ao fantasma —. Embriagava-se de valeriana e plantava lavandas no canteiro lateral. O doce rapaz apodrecia, numa cova de família. Reinavam as flores, no solo acima, com beleza magistral.
Na Grécia, procuravam por Isolda. Na Itália, Leonora escrevia versos e cantava, com o ar que persistia nos pulmões. Cantava, para espantar toda maldade que, um dia, cruzou a estrada. Louvava à sorte, à ventania e ao coração.
Olhos de pútrida esperança; entre o frígido derredor, onde as mãos do insondável inverno conduzem a pequenez de seres irrisórios. Ela se aproxima…