O Sangue da Bruxa
Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula
Como de costume, ela caminhava sozinha pelos corredores do castelo, seus longos cabelos negros reluzindo com um brilho azulado sob a pouca luz. O corredor que percorria era ladeado por uma extensa varanda de mármore, com vista para as imponentes montanhas envoltas pela neblina matinal. A penumbra de um céu nublado tornava o ambiente ainda mais sombrio, mergulhando tudo em uma atmosfera de mistério e quietude.
Uma voz masculina ecoava ao longe, chamando pelo seu nome. Ela não se virou para olhar, mantendo o passo sereno e despreocupado. Estava descalça, e o vestido preto, longo, era adornado com rendas e bordados delicadamente alinhavados que emolduravam a saia. Ao alcançar a varanda, ela parou, deixando o vento brincar com o tecido enquanto aguardava calmamente que a voz se aproximasse. Aquele era seu pai o rei Kheas, cabisbaixa ela apoiou o braço no mármore frio, sem olhar para a figura autoritária ao seu lado, como se já soubesse o que iria ouvir.
— Minerva! Já disse que não é adequado andar descalça pelo castelo, mesmo sendo o que somos... — ele parou ao lado dela, penteando a barba longa e ruiva com os dedos. Kheas era um homem esbelto, tinha olhos fundos cor de mel e sempre se vestia com cores escuras.
— Não tenho o direito de sentir o chão do castelo? — respondeu ainda sem olhar para ele.
— Essa é uma atitude antiga demais, não precisamos mais fazer isso.
— E o que você sabe sobre as coisas antigas? — perguntou ela, com os olhos fixos no topo de uma montanha distante. O queixo repousava sobre a palma de sua mão direita, enquanto um suspiro desanimado escapava de seus lábios, carregando um ar de melancolia.
— Não fale coisas sem nexo, você é parte deste reino e eu sou a autoridade maior. Te espero na Sala das visões. — Ele se retirou com uma postura controlada, sem demonstrar irritação. No entanto, ela sabia que suas palavras o haviam incomodado.
Em outro momento, ao ser questionado por ela dessa maneira, agiu de forma oposta. O resultado foi a princesa passar quase um mês com o rosto escondido por um véu negro. Seus olhos azuis, agora vermelhos como sangue, estavam constantemente marcados por lágrimas silenciosas. Em seus pensamentos sombrios, ela jurou a morte de seu pai, Kheas.
Uma jovem princesa, filha da magia e das montanhas, vivia confinada, presa às mesmas correntes que um dia aprisionaram sua mãe, a rainha Nuara. Por anos, o rei as tratou como meras joias da coroa, belas, mas silenciadas. Ele explorava os poderes e a inteligência de ambas, mas nunca lhes concedia o verdadeiro crédito por seus feitos.
Nuara era conformada com sua condição, enquanto a filha não aceitava, de nenhuma maneira, aquela forma de vida. Suas fortes personalidades eram tidas, por todo o reino, como flores da meia-noite: muito delicadas. A beleza das duas chamava atenção. A corte e o povo não imaginavam que a genialidade das construções e da gestão era, na verdade, autoria das duas, que eram confinadas ao disfarce do silêncio.
Minerva carregava consigo um rancor profundo, fruto de anos de sofrimento silencioso. Ela não era uma rosa delicada, mas sim uma pedra preciosa e rara, dura como um diamante — um diamante que seu pai insistia em tentar quebrar. Tratando-a como um mero objeto de estudo, ele a subjugava com sua autoridade, reforçando que ela era parte do reino e devia obrigações. No entanto, o pior de seus atos deixou marcas irreversíveis: ele a transformou em cobaia de uma transmutação, um experimento cruel que deixou cicatrizes não apenas em seu corpo, mas também em sua alma.
O Reino da Áugures, um lugar onde os segredos da ciência antiga eram guardados nas sombras, era o domínio de Kheas, um alquimista obcecado pelo que todos buscavam: o conhecimento absoluto. A imortalidade, uma dádiva rara de sua raça, não era o suficiente para saciar sua sede insaciável por poder. Em sua busca, ele ousou realizar o impensável, transmutou sua própria filha, Minerva, fundindo-a com uma loba.
A forma resultante foi a maldição do reino, um reflexo de sua crueldade. As dores da transmutação não apenas afetaram seu corpo, mas também corroeram sua mente. Durante meses, Minerva permaneceu como loba, uma criatura atormentada pela dor física e pela confusão mental, enquanto o reino, agora marcado por essa transformação sombria, ecoava os ecos de seu sofrimento.
Sem conseguir reverter o processo, Kheas trancou Minerva em uma cela no calabouço do castelo, condenando-a a viver em sua forma monstruosa. Mas foi quando Nuara, a rainha, interveio, determinada a salvar sua filha, Nuara fez ajustes em elementos místicos e, com grande esforço, conseguiu libertar Minerva de sua forma de loba, mas ela ainda transmutaria na lua cheia.
Cada vez que a transformação acontecia, ela chamava esse processo de "rasgar a pele", pois sentia como se sua essência fosse dilacerada, dividida entre duas existências, forçada a conviver com a dualidade de sua natureza. Em condição de loba, ela se tornava um pouco inconsciente de si própria, era uma enorme fera de pelos negros. Avistá-la era assombroso. Seu corpo se contorcia e sua pele se rasgava. Uma bruxa em pele de loba, insana nas noites de lua cheia.
Ela caminhava em direção à Sala das Visões, o peso da tristeza obscurecendo seus passos. Era hora de revelar os planos de Kheas, um segredo que pesava mais do que o próprio silêncio que envolvia o castelo. A Sala das Visões era uma biblioteca peculiar, circular, com estantes escuras de jacarandá que se estendiam até o teto. Cada prateleira estava repleta de livros antigos, escritos em línguas que desafiavam o entendimento de muitos. O ambiente, sem janelas, parecia sempre imerso em uma sombra perpétua, e o frio que emanava das paredes parecia penetrar até os ossos.
No centro da sala, um pentagrama intricadamente desenhado no chão servia como base para uma mesa redonda, onde repousava um candelabro de ouro negro. Criado pelas primeiras bruxas do reino, o candelabro emanava uma luz tênue e distante, como se carregasse consigo séculos de feitiçaria e sabedoria ancestral. Ela sabia que, naquele lugar, cada segredo do reino estava guardado, e agora era sua vez de desvendar o mais sombrio deles.
Minerva utilizava o candelabro negro para acender as suas velas ao realizar, ritualisticamente, as leituras de tarot, as bruxas do passado eram suas guias durante o processo. Kheas já estava lá sentado à sua espera. Ao chegar diante do local, ela respirou fundo enquanto olhava o ouroboros de madeira esculpido na porta. Aquela serpente engolindo a própria cauda sempre a lembrava de sua primeira transmutação. Sempre se repetiria. Pedindo forças à magia, ela entrou e foi até o centro, sentou-se à mesa já prevendo o que ele iria perguntar, o que sugaria sua energia naquela tarde.
— Preciso saber se seremos bem-sucedidos na comemoração de amanhã, onde você conhecerá seu noivo. — Ele estava sério com os olhos fixos nos dela.
— Acontece que já o conheço, ele só não sabe o que você fez com a noiva dele. — a voz dela soava trêmula.
— Você entendeu o que eu quero dizer. Preciso que saiba controlar a sua situação para que nada saia do comum amanhã na lua cheia.
— Para que a maldição que me impôs não atrapalhe a aliança entre Áugures e Zhale? Ele não sabe das histórias que contam por aí?
— Minha querida, o rei Hansert será um bom marido. Já que se amam, seja sensata!
— Ele não sabe por sua culpa! – exaltada ela parou de súbito, respirou fundo e continuou. — Vamos às cartas...
Ela respirou profundamente, posicionou a vela no candelabro e a acendeu, permitindo que a chama dançasse com suavidade. Sob a toalha especial, espalhou as cartas de tarot, seus dedos acariciando o tecido enquanto sua mente se concentrava no que estava prestes a acontecer. Com um movimento lento, sua mão direita se ergueu no ar, percorrendo as cartas, captando a energia que elas emanavam.
A primeira carta foi puxada com cuidado e colocada sobre a mesa. Seus olhos estavam fechados, os lábios murmurando palavras antigas, enquanto as mãos trêmulas sentiam a conexão entre o presente e os destinos que estavam prestes a ser revelados. A sala parecia suspensa, aguardando o desfecho das forças que se alinhavam diante dela.
Novamente ela percorreu a mão pelas cartas sentindo a energia que atraía sua mão e escolheu a segunda, o mesmo foi feito na escolha da terceira.
— A primeira carta é O Mundo, quer dizer que o momento é propício, a festa pode sim ser muito bem aproveitada.
— Enquanto a segunda carta? — perguntou ao apontar.
— A segunda carta é O Diabo, pelo contexto você está preso a alguma coisa. Suas conquistas que escondem o que você realmente é. Isto provavelmente está ligado ao que aconteceu que você tanto deseja esconder do mundo.
— Não é isso que eu quero saber, Minerva! — ele falou com rispidez.
— A festa vai ser bem-sucedida. O rei Hansert ficará feliz, só que esta carta do Diabo mostra um apego forte aos seus bens e diria até mesmo... O medo de se perder tudo! Ela está invertida. Indica que é o momento de olhar para o seu ego, pai! Não é o momento de esconder mais nada! — ela estava apreensiva.
— Chega, não preciso ouvir você! — ele gritou, sua voz ecoando pelas paredes da sala. No mesmo instante, a marca da transmutação de Minerva surgiu em sua mão esquerda, uma linha vermelha incandescente que iluminou a palma com um brilho intenso e ameaçador. Ela, no entanto, não se intimidou. Ignorando o fenômeno e a fúria dele, continuou a leitura.
— A terceira carta é o Enforcado. — Houve uma pausa em sua fala — O que você deseja exige sacrifício e, pelo visto, você está disposto a fazer.
— Você sabe que sim. Amanhã é lua cheia, e, se for necessário, eu a trancarei. Não ouse usar seu poder contra mim amanhã à noite. Sua língua será selada, e você não pronunciará uma única palavra, seja como bruxa ou como loba, se é que a fera é capaz de falar e não apenas rugir! — declarou ele com frieza, cada palavra carregada de ameaça e controle.
— Sim, meu pai, eu não pretendo te envergonhar em uma noite tão importante! – disse ela, ironicamente.
Ele se levantou da mesa e deixou a sala sem sequer agradecer pela leitura feita. Minerva, com os nervos à flor da pele, pressionava as têmporas com força, tentando conter a irritação que pulsava em sua mente. Ela soprou a chama da vela revoltada, guardou suas cartas e saiu de lá sem finalizar o ritual devidamente. A porta da sala ficou aberta, dividindo o círculo do ouroboros ao meio.
***
Minerva estava em seu quarto, acariciando um enorme gato preto. Ambos estavam deitados em um sofá espaçoso, escarlate como sangue, a lua invadia o lugar pela janela longa em formato de lanceta. Seu pensamento estava distante, um recado de Hansert foi entregue a ela, enviado por um corvo astral que entrou pela janela. A tinta do bico de pena ainda estava com o cheiro forte, estava escrito:
“Logo nos encontraremos, filha da penumbra, dona do meu coração.”
Amavam-se, porém, ele não sabia que a sua condição de loba era feral. E ela tinha planos para que isto mudasse. Ele acreditava que ela era uma beldade atormentada pelas dores de sua “pele rasgada”, Kheas o convenceu de que, como loba, ela era consciente e o casamento era um sinal de aliança entre dois reinos sábios. O segredo de Minerva, supostamente, seria uma herança para os futuros herdeiros dos dois reinos.
Rosas vermelhas adornavam cada cômodo, seu perfume intenso contrastando com a escuridão. Os convidados, trajados elegantemente em preto, moviam-se com uma graça quase teatral. Zhela e Áugures, repletos de segredos e histórias compartilhadas, estavam finalmente reunidos sob o mesmo teto, sob a vigília silenciosa da noite.
A noite da festa estava especialmente escura e as nuvens no céu eram vermelhas, a lua se escondia nas trevas. O castelo estava decorado com muitos castiçais, haviam rosas vermelhas distribuídas pelos cômodos e as pessoas estavam elegantemente trajadas em preto. Zhela e Áugures estavam no mesmo lugar.
Minerva estava em seu quarto, mas a sensação que a envolvia era a mesma de quando estava na masmorra. Para ela, não fazia diferença; sentia-se apenas um experimento, uma criação sem vontade própria. Amarras pesadas a prendiam à parede em frente à janela, e em seu pescoço repousava uma coleira de couro de dragão, presa a uma corrente de aço forjada pelas mãos habilidosas dos anões.
O quarto era tomado por seus gritos, longos e agonizantes, enquanto seu corpo se contorcia, sofrendo a inevitável transmutação. A dor era lancinante, como se sua própria essência estivesse sendo rasgada e moldada novamente sob o peso de uma maldição.
Os gritos de Minerva ecoavam pelo castelo, atravessando as paredes e chegando ao salão onde a música da orquestra real tentava abafar a agonia. O som do piano e do violino se mesclava com os gritos distantes, criando uma melodia tenebrosa. No centro do salão, o rei Kheas mantinha sua fachada inabalável, transformando seu erro em uma nova mentira.
Ele declarou a todos que sua filha havia se voluntariado para o experimento, manipulando a narrativa para proteger sua reputação. A festa, repleta de convidados trajados de preto, celebrava não apenas uma aliança, mas o suposto controle sobre Minerva. O noivado entre Minerva e Hansert simbolizava a união dos reinos Áugures e Zhelas, prometendo consolidar suas forças sob um só poder, ainda que o preço fosse o sacrifício de sua própria filha.
A princesa seria finalmente apresentada em sua forma de loba e as histórias de suas aparições sombrias seriam confirmadas. Esta era a noite das feras, os lobos e as bruxas eram exaltados. As nuvens já se mexiam com o vento, os uivos de Minerva eram altos e poderosos. Todos estremeceram ao ouvir e sentir o poder que emanava vindo dela.
As memórias de sua primeira transmutação sempre pairavam em sua mente. Naquela noite, todos conheceriam a bruxa e loba que nela habitava. Aquela corrente a enlouquecia, ela desejava fugir enquanto sofria. Seus uivos evocavam os uivos ferais de outros lupinos e até mesmo os cães uivavam por ela. Todos ouviam seu rugido que não mais seria silenciado!
No baile, os bruxos da corte entregavam-se à diversão, seus risos e murmúrios crescendo à medida que se embriagavam com o vinho vermelho como sangue. Entre taças erguidas e olhares conspiratórios, Hansert permanecia inquieto, imóvel durante o evento.
Cada uivo que ecoava pelos corredores do castelo parecia atravessar os ouvidos dele e cravavam alfinetes em seu coração. A dor não era apenas física; era o peso insuportável da culpa e do horror, enquanto a verdade da maldição de Minerva se desenrolava bem acima deles.
Atrás da porta do quarto, a rainha Nuara sofria em silêncio, suas lágrimas vermelhas escorrendo como gotas de sangue que carregavam toda a sua angústia. Cada soluço abafado era uma pergunta sem resposta: por que não conseguia reagir? Por que permanecia imóvel diante da loucura de Kheas? Encostada na parede de pedra fria, ela escondia o rosto entre as mãos trêmulas, enquanto o peso da culpa e da impotência a esmagava. Seu coração estava em pedaços, dividido entre o amor por sua filha e o medo paralisante do homem que chamava de rei.
Enquanto no andar de cima os sofrimentos de Minerva eram ocultados nas sombras do castelo, os dois reis discutiam no salão principal, seus olhares frios e calculistas observando a festa que acontecia ao redor deles. Entre copos de vinho e risos forçados, suas palavras afiadas se cruzavam, trocando acusações e estratégias.
—Rei Kheas, eu preciso vê-la! Ter certeza de que ela está bem.
— Claro que ela está bem! Só precisamos diminuir um pouco toda a histeria da corte.
— O que quer dizer? – Hansert o olhou confuso.
— Seria interessante evitar que ela assustasse nossos convidados.
— Ela está sofrendo com as dores e está acorrentada como um animal, como pode ser tão frio?
— Rei Hansert, lembre-se de que a Minerva que conhece é uma criatura da noite. O que queremos é mostrar força, somos melhores que os homens comuns e sem magia é isto que queremos impor esta noite!
— Não foi isso que você me falou antes, ela poderia ter morrido neste experimento hediondo que você inventou! Só pensa em si mesmo e na magia oculta na escuridão que deseja dominar, como eu fui tão cego?
— Você não compreende. Não tem a noção do poder que está guardado nela, diria que nem ela ainda tem. Não pense que ela sofreu sozinha. — ele desviou o olhar, um vulto sinistramente negro adentrava o salão, todas as velas se apagaram e a música parou.
PELE RASGADA
Minerva estava imersa na dor de suas primeiras memórias da transmutação. A maneira como tudo havia acontecido, foi tirada à força de seu quarto em uma noite tempestuosa, arrastada para um calabouço onde foi espancada e teve a alma violada pelo próprio pai. Por alguns segundos se calou, sabia que estava quase no fim. Seus olhos viam patas no lugar das mãos e a dimensão do ar que respirava era diferente. Ela era uma loba, o presente mais imponente que ganhara de seu algoz e a maior maldição.
IPSO FACTO
Todos estavam imersos em um tremor coletivo, paralisados pela visão estática da criatura diante deles. Enorme, ela se destacava na penumbra da noite, seus pelos negros e brilhantes refletindo, de forma fantasmagórica, a luz vaga da lua que adentrava pela janela do salão de festa. A cada movimento, os pelos pareciam brilhar como se fossem feitos de sombras e luar. Seus olhos, azuis e faiscantes, eram como chamas em meio à escuridão. Uma corrente quebrada pendia de seu pescoço, uma marca do passado e da dor que a acompanhava.
Um uivo longo e agonizante rompeu o silêncio, ensurdecendo os presentes, fazendo com que todos se tremessem de medo e fascínio. Kheas, no entanto, a olhava fixamente, diante de algo que ele mesmo havia criado e agora não podia mais controlar. Quando ele deu um passo à frente para se posicionar, Hansert interferiu avisando para que ele olhasse ao redor, uma legião de lobos estava se agrupando ao redor dela. A grande loba encarava os bruxos e bruxas com desdém e fazia menção de falar.
— Esta é minha forma, e esta é minha legião de feras. Esperei muito por isso — a voz de Minerva ecoou com um poder sombrio, reverberando pela sala. Seus olhos faiscavam com uma intensidade ameaçadora, enquanto as criaturas ao seu redor se agitavam, como se atentas à sua autoridade. — Temam a mim e não a ele — continuou.
— Por favor... — Kheas tentou falar, mas foi interrompido abruptamente. Um dos lobos avançou, derrubando-o com força e mordendo-o, ameaçando rasgar sua garganta.
— Somos fortes, e somos um, meu pai! Esses não são bruxos, mas lobisomens que vivem nas montanhas de Áugures. Ele não é rei, é um verme... — Minerva rosnou com a ferocidade de uma líder, suas palavras ecoando com o peso de sua nova identidade.
A multidão, paralisada, observava em choque enquanto os lobos se espalhavam, cada um se aproximando lentamente de uma pessoa. O medo se espalhava como uma epidemia, e o ar vibrava com a tensão crescente. Os lobos, em ferocidade, cercavam a todos, prontos para mostrar que o poder de Kheas havia se desvanecido naquele momento.
Minerva se aproximou de Kheas, que tremia sob o olhar feroz de sua filha, uma loba imponente. O silêncio no salão se estabeleceu por alguns segundos quebrado apenas pelos uivos distantes e pelo som da respiração pesada da criatura. Ela se abaixou até ele, suas garras afiadas tocando sua pele, realizando um movimento rápido e brutal, arrancou a cabeça de Kheas, a engoliu diante dos olhos atônitos de todos.
O sangue jorrou, escorrendo pelo chão, enquanto Minerva ergueu-se, agora mais poderosa do que nunca. O noivo, Hansert, estava paralisado, impotente diante da visão de sua futura esposa, transformada em uma fera imbatível. Ele ficou sozinho no salão, a multidão dispersando em pânico, incapaz de compreender o que havia acontecido. A rainha Nuara observava escondida toda aquela cena.
Minerva olhou para ele uma última vez, seus olhos azuis faiscando com um brilho gélido e distante. Sem uma palavra, ela virou-se e se uniu aos lobos que a acompanhavam. Eles avançaram, e como uma sombra, desapareceram na noite, deixando o castelo para trás. A liberdade estava finalmente ao seu alcance. Em um canto escuro da sala, ela viu a figura de sua mãe, Nuara, parcialmente oculta nas sombras, os olhos assombrados pela dor. Por um momento, seus olhares se encontraram. Ela se aproximou, suas palavras suaves, mas firmes, cortando o silêncio:
— Mãe, venha comigo. Não há mais razão para permanecer aqui!
Nuara hesitou por um instante, os olhos perdidos em uma mistura de medo e alívio. Com um suspiro resignado, Nuara se aproximou e, com a ajuda de Minerva, subiu nas costas dela, montando como uma amazona. Juntas, mãe e filha começaram sua fuga.
Os lobos, como sombras ágeis e implacáveis, se moveram ao redor delas, guiando o caminho para a liberdade. Enquanto o castelo ficava para trás, Minerva sentiu, pela primeira vez em sua vida, que o peso das sombras de seu passado estava finalmente sendo deixado para trás. O destino dos reinos de Áugures e Zhelas estava selado, mas agora, ela era a dona do seu próprio caminho sob o luar.
Olhos de pútrida esperança; entre o frígido derredor, onde as mãos do insondável inverno conduzem a pequenez de seres irrisórios. Ela se aproxima…