Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

“Cautela; à dor pertence tudo o que se é — e nas sombras do ser há uma angústia imorredoura. Ainda assim, há contento ao sentido. Veja-me, desvele-me na clareira da densa floresta; um poder inominável aguarda a lua cheia dos olhos que veem, se capazes. Sempre dourados. Encontre o que há de valor e o que há de valor há de encontrar quem o procura. O emergir da distância é parte de uma inestimável boa ventura.” — Ouvi, como se imersa em um delíquio e não em um sonho; um lapso de tempo, uma prostração infinitesimal em duração e de uma expansão significativa e misteriosa. A voz era minha, mas não era eu quem dizia. Era eu quem dizia, mas a voz não era minha. Levantei-me com o coração frenético e o corpo trêmulo, escrevi palavra por palavra. Respeirei fundo. “O que isso quer dizer?” — eu pensei. 

De súbito, à minha mente, viera a verdade dos símbolos ensinados por Lorrt e do ritual de exorcismo. Isso me levara a um levante célere, de modo que meu damanoute parecera pairar no ar em sua leveza agradável. Sobre o assoalho de madeira, usei a tinta que banhava a pena, para traçar os detalhes dos sigilos. Passei a repetir em minha mente, o verbo sombrio para conjurar a magia e temi que Seth se personificasse para me impedir de concluir o ritual. Eu estava certa de como realizá-lo, algo que, se adviesse apenas de um sonho comum, eu não poderia compreender com tamanhos detalhes. 

Ainda mais repentino, com o último verbo proferido, derramando meu sangue para selar o ritual — o que me fazia compreender o quanto algo em meu âmago confiava cegamente em Lorrt; Seth emergiu dentro do círculo, com seu semblante assustado e em meio a uma névoa carmesim que tão logo se esvaneceu. Eu estava um pouco distante do sigilo, para não ser diretamente afetada; os olhos de Seth, assim que fitaram os meus, possuíam uma aura de raiva e pesar. Seth segurava em suas mãos uma flor, símil à sua descrição das noctúrnias. A cena me levou a uma dor no coração, não literalmente, uma tristura por fazer aquilo daquela maneira, afetando-o sem aviso prévio… Eu não conseguia compreender minha existência, pois, se eu era, de fato, uma vampira, como poderia não estar completamente refém de minha luxúria? Ao invés disso, apenas queria respostas e sentia-me íntima da desolação e da empatia. 

— O que… tu fizeste? — Ouvi. Seu tom era grave e colérico, seus olhos fixos em minha face. Ele tentou dar um passo à frente, mas o círculo o prendia. — Não… — Murmurou. Eu me afastei em direção aos umbrais do aposento. — Não me deixe aqui, Áurea!  

— Eu… volto… prometo… eu só preciso… — O olhar de Seth deixava-me inquieta e ansiosa. 

— Áurea… eu não sinto mais a tua alma… eu não poderei proteger-te… Não faça isso! — Insistiu. Parecia tentar manejar seu tom, no entanto, a ira em seus olhos não podia ser manipulada, eu a notava em evidência. 

— Eu só… preciso de respostas… eu volto… será breve… — Sussurrei, abrindo as portas e deixando, rapidamente, o aposento. Não olhei para trás, pois, se olhasse, me arrependeria… 

Um susto, no entanto, fez-me cessar os passos mesmo assim. 

— Olá, Áurea. — A presença de Olga era, de forma absurda, densa e amedrontadora, embora ela fosse sempre cuidadosa e simpática. Sua voz persuasiva conduzia algo dentro de mim, era hipnotizante. 

— Olga! — Minha face decerto estava um tanto atônita. 

— Estás bem? — Ela indagara, incólume. 

— S-sim… — Sentia-me aluída. 

— E Seth? — Fiquei atordoada com a pergunta. Imersa em pensamentos fugazes sobre como Olga sabia sobre Seth, um assombro apossou-se de mim por notar que, talvez, ela teria conhecimento do ritual que realizei. Não consegui respondê-la. — Pherhesí sempre desvela a si mesma para mim n’este alcácer, querida residente. Instigo-me a questioná-la quem poderia ter ensinado-te tamanho poder, sem relevar o teu desconhecimento pulcro… — Permaneci em silêncio ao ouvi-la, porém, o olhar daquela mulher… não era, tão somente, um olhar… 

— E-eu… precisava… de… li-liberdade… — Foi o máximo que fui capaz de explicar. 

— Hum… eu compreendo… Não preocupes a ti, pois não abscindirei teu ritual; cuidarei para que Seth permaneça sob Loccullaessatt até que retornes. Entretanto, estes sigilos não serão capazes de encarcerá-lo inn perpehctua. Estejas ciente, símil, de que Pherhesí, isto é, a Magia do Sangue, pode conduzir tua alma ao verossímil olvidar que tanto te atormenta. — Ela se aproximou dos umbrais de meu aposento, abrindo-os sutilmente, com elegância mórbida. —E se Pherhesí determina a decadência mortífera d’um Igual, pela insolência de manipulá-la desprovido de ciência, eu não hei de interferir. — Senti minha saliva descer em minha garganta como se engolisse um caule espinhoso de Rosaemori.  

Era difícil compreender Olga… parecia-me que ela advinha de uma civilização arcana desconhecida e oculta; suas palavras e a mistura entre um idioma e outro atordoava meus sentidos; no entanto, era evidente o seu poder e o tanto que ela sabia a respeito daqueles que residiam no Castelo Drácula. Eu sabia, além disso, mesmo com a dificuldade em entender com maestria a sua fala, que ela estava me ameaçando. 

— Vá… — Disse, com um sorriso suave que mais alimentou meu receio sob a sensação intimidatória de suas palavras. —  Lëvri está fora do Castelo, um errante a caminho do jardim. 

Olga fechou-se em meu aposento. Sua presença perturbadora já não existia e, consequentemente, não conduzia minhas emoções. Respeirei com alívio e, por instantes, pensei em espiá-la, espiar Seth... ouvi-los...., entretanto, meu objetivo maior era saber da verdade, lembrar-me do que era preciso para honrar minha história e, da mesma forma, a história de Lorrt — que tanto me ajudara com aquele ritual; aliás, eu sabia que eu não poderia mais realizá-lo, pois eu temia Olga... então aquela era a minha única oportunidade. 

Corri, assim, pelos mesmos corredores sombrios; com o coração em pulso frenético, segui em direção aos jardins do Castelo sob clarões soturnos e coercitivos que lumiavam por segundos a escuridão eviterna; eles vinham com estrondos majestosos e eu avistava, das fenestras, uma tempestade ciano-acinzentada se formando no horizonte. Era, em profundez, estranho; mas, eu não era capaz de questionar que a neve esquálida não poderia perdurar com tamanha intensidade enquanto a chuva vertesse de densas nuvens e da escuridão. Assim vi com perfeição o firmamento tão metamorfo e a palidez sepulcral dos arredores do Castelo; estes, por sua vez, estavam cobertos por casas góticas e pontiagudas, feitas de pedra e madeira — levou-me ao questionamento de ser, pois, Séttimor, todavia, em nada se assemelhava a ela. Eu, contudo, não tinha tempo de saber. 

O jardim tinha, em congelamento mórbido, todas as plantas, com exceção das tulipas negra, das nnivealiz e um tipo de morango negro silvestre — se destacavam na cândida invernia; do céu vertia, de fato, uma fina chuva cristalina e os raios, em perigo eminente, tomavam a totalidade da imensidão acima. Então, eu o vi; seu amplo dorso, seus cabelos escuros... suas mãos que acariciavam as pétalas de uma negra tulipa. Era... sufocante... minhas mãos tremiam e meu corpo se lembrava... Era Lëvri... tudo ao derredor parecia silenciar à medida em que me aproximava dele; um longínquo violino triste conduzia meu coração. Sussurrei seu nome tal como um ser fantasmagórico o faria e vi seus dedos tornarem-se estáticos; deixando de afagar as pétalas e, da mesma forma, vi teu corpo imóvel, tencionado. E levou um tempo até que, por fim, ele se virasse para me olhar. 

Seus olhos negros, sem esclera. Um semblante tênue em mágoa com seriedade indene. Seu silêncio... um abismo entre minha paixão outrora vívida e vibrante. Quis tocá-lo, mas hesitei; ele matou Lorrt, eu sentia, eu sabia... matou Lorrt com o intuito de me conduzir ao desertificado chão onde os joelhos de Ohropo se fendem na esperança mórbida de reencontrar Sepulcro. Não quero viver como Ohropo, não quero ser conduzida aos braços de Exício tal como Sepulcro. Assim eu sentia... e sentia demais... um medo e uma aflição solitária que apertava meus pulmões, meus órgãos, minha alma. Eu não podia mais esperar... 

— Tu mataste Lorrt... o último Illitan... tu e outros como tu... a Rosaemori em teu dorso é a autenticidade d’este fato... Quem és tu, Lëvri? Por que me enganaste com tamanha frialdade? E por que me tomaste com tamanha paixão sob a noite índigo mesmo tendo o sangue do meu único amor em tuas mãos? Mesmo sabendo que dele me olvidei em razão da tua maldade que fizera com que o ritual de transmutação vampírica se transfigurasse em uma cena terrífica? Sabes o que o veneno pernicioso da Rosaemori causa? A morte lenta... dolorosa... solitária... amedrontadora... angustiante... Por quê? — Meus olhos já lacrimejavam, cristais se formavam nas lágrimas que escorriam e congelavam em meu rosto; os cílios em meus olhos acumulavam infinitesimais flocos de neve; nunca senti um frio tão pernicioso como aquele que se difundia nos arredores do Castelo. E fitava Lëvri, ainda inalterado. Pensei que ele nada diria. 

— Eu não te vi, Áurea. No entanto, vi Rahstemur fincar a Rosaemori em Lorrt e deixei o local assim que Lorrt, em absurda cólera, arrancou de seu próprio peito a haste espinhosa e cravou-a na boca de Rahstemur. A força de teu único amor era amedrontadora; éramos em seis, somente eu sobrevivi porque... me acovardei... Lorrt destruiu a todos e levou teu corpo coberto por um manto ensanguentado; fiquei à espreita e vi... levou-te para algum lugar que eu não sei. Mesmo envenenado, ele fez tudo isso e eu, pouco tempo depois, vagando sem rumo, com absurdo medo de ser questionado por Krvier, eu... encontrei este Castelo... — Ouvi atenta e abalada; na surpresa de que lembranças vieram à minha mente sem que a dor me corrompesse, conforme ele as narrava, e na comoção absurda de saber que Lëvri não foi aniquilador mor de Lorrt. 

— Como... soubes... se nunca... me viste...? — Lëvri aproximou-se. 

— Teus olhos, ora rubros ora áureos; trouxeram-me a dedução de que tu tinhas algum elo com os Illitan, em razão da criatura mítica que sustenta o poder que lhes foi dado. Entretanto, eu não poderia supor... exceto quando soube teu verdadeiro nome, dito por alguém n’algures; e soube, portanto, quem tu eras. 

— E quem é Krvier? Por que o temes? — Lëvri demonstrou-se irritado. 

— Eu não direi. 

— Não? O que queres? Cumprir o que outrora acovardou-se a fazer? — Aproximei-me com uma ira aterradora. 

— Eu já o teria feito se assim quisesse; não há razões para te dizer mais nada. 

— Diga-me quem é Krvier! Aquele por detrás de todas as tuas ações tolas, por detrás do teu temor, por detrás do que és? Aliás, quem és? Vamos, tenha coragem uma única vez. — Ele silenciou, imerso em ira e contendo-se, eu percebia. 

— Eu... — Ele abaixou seu tom de voz, suas veias ficaram mais aparentes. — Eu sou fraco... iguais a mim há outros tantos em um exército... mas eu sou o mais fraco... sou uma criatura destinada à reprodução, ao sofrimento e ao assassinato. Minha natureza é mórbida, meu instinto é violento... e... minha covardia é a única coisa que me difere daqueles que são como eu... então eu a manterei comigo... — Ficamos em silêncio. Queria compreendê-lo, mas, não era possível. 

— Se não me falares sobre Krvier, eu descobrirei... eu o encontrarei... e me vingarei... — Lëvri se afastou, tênue. 

— Quando uma criatura se torna criador, somente outro criador é capaz de detê-lo e nunca uma criatura...  

— Seja claro, Lëvri! Estes enigmas estão insuportáveis! Este lugar, estes segredos... eu quero a verdade! Eu quero me lembrar! — Vociferei, ouvindo minha voz atravessar a neve mais longínqua e alcançar o tom dos trovões sombrios. 

— Deixe-me voltar a sentir a textura das pétalas... deixe-me em silêncio... diferente de ti, não quero lembrar... e tu... tu sempre serás a minha Ennehris, pois, o que senti por ti diferiu-se tanto quanto minha covardia... manterei ambos... como relíquias em meu peito... não exija mais que eu fale do meu cruel criador... eu já lhe esclareci o que me era possível... 

Como podes... almejar o esquecimento... e tornar-se um dos perdidos... sem nome... sem uma bússola no coração... 

— Talvez tenhas desejado isso antes de perder tua memória... — Ele murmurou e mais silêncio nos envolveu. Eu percebi, então, a dor no ser de Lëvri, não posso dizer como percebi, mas o fiz.  

— Eu nunca desejaria esquecer... — Proferi, um pouco mais triste... queria mostrar que olvidar não é o melhor caminho, mas Lëvri fechou seus olhos, como se implorasse pela morte e, ao abri-los novamente, apenas virou-se e seguiu caminhando entre as tulipas, tocando suas pétalas. Em meu peito descansava um coração partido, a sangrar, lacrimejando. Perdida, esquecida... em busca de uma pequena esperança, uma singela salvação de algo que não se podia evidenciar. A chuva fina sobre meu corpo assemelhava-se ao meu próprio pranto... e Lëvri se distanciava como se nunca tivesse estado próximo... — Diga... — Sussurrei, impossível ser ouvida por ele. — Diga meu verdadeiro nome, Lëvri... — Ele continuava se afastando. 

“O emergir da distância é parte de uma inestimável boa ventura.” — Lembrei-me. Um presságio? Era um adeus velado, nas sombras de nossas divergências... e toda a imensidão nívea, frígida, inóspita... as torres de pedra de um Castelo misterioso... os raios violentos e a chuva calmante em contraste. Minha esperança protegida no relicário de meu ser. “Encontre o que há de valor e o que há de valor há de encontrar quem o procura”. Caminhei, lânguida, observando as construções; eu sabia de meu dever de voltar ao Arcanjo-Maldição, entretanto, almejei novamente a fuga; encontrar Liliana, talvez, uma verdadeira amizade a qual descansar minha tristura — “à dor pertence tudo o que se é, e nas sombras do ser há uma angústia imorredoura”. Eu estava na profunda expectativa de sonhar com Lorrt... reencontrá-lo... questioná-lo... entender nossa história..., eu gostaria de adormecer livre, sem o Piche do Oblívio aterrando meu plano onírico, sem a culpa prensando-me como um ataúde à sete palmos. Uma aspiração, espreitada pela intuição de que eu não encontraria nada naquele lugar. 

Eu... não esperava fitar o abandono; ou talvez soubesse... sem gotas de força. E a astenia estava naquele corpo que, outrora, em profunda significância, toquei. Olhos negros exaustos de uma dedicação possível ao que poderia tornar-se um amor... não era ainda, muito cedo para dizer. Uma paixão derradeira? Ao destino que há de me consumir na eternidade do meu lamento, meu esquecimento e, principalmente, minha solidão? Eu não queria me repetir; como um eterno retorno de languidez e melancolia — as mesmas dores, os mesmos prantos; ainda havia muita humanidade no que residia em meu peito: uma alma ou uma existência vazia. Na verdade, eu não sabia o que eu era, se estava morta ou viva, então, como saber se havia mesmo a paixão? Apenas um momento, estranho e obscuro momento, de entrega, de vínculo... por que isso eu não podia esquecer? Talvez ele estivesse certo, algumas coisas precisam deixar nossa memória em paz. 

Colossais dúvidas afligiam-me enquanto caminhava pelo jardim, na lentidão sombria, estavam meus passos arrastados, embora silentes; os raios reluziam perigosos e não desejei retornar ao Castelo. Acolhi-me no arbusto de nnivealiz, com seus papilhos repousados ainda intactos, embora o vento estivesse feroz. Nascidos em uma grama macia, à leste do jardim, apesar da neve. Deitei-me ali, observando o firmamento nublado e chuvoso. As gotículas de água sobre meu rosto caíam, congelando-se em cristais tênues, fazendo o papel das lágrimas de outrora. Minha tez reconhecia. Meu corpo frígido pela neve abaixo, entre o aconchego da gramínea. Tudo isso, de modo estranho, me serenava. “Ainda assim, há contento ao sentido.” — lembrei, como se acolhido na imensidão do ar, de repente, por mim mesma. Então fechei meus olhos e esperei acordar n’outra realidade, no meu verdadeiro lugar para, então, dizer aos que aguardam meu retorno, que tive um sonho perturbador e que senti aguda falta de cada um deles, mesmo sem me lembrar de quem são... 

“Veja-me, desvele-me na clareira da densa floresta; um poder inominável aguarda a lua cheia dos olhos que veem, se capazes. Sempre dourados.” 

Texto publicado na Edição 13 da Revista Castelo Drácula. Datado de fevereiro de 2025. → Ler edição completa

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Sara Melissa de Azevedo

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