Cognição Vampírica
Diário Não Datado – Declínio Dourado
Minha mente parece estar composta por todos os destroços das minhas vítimas, a sofreguidão me acalenta em sua dissidência estupidamente melancólica.
Minhas lamúrias são como abraços de facas que me atravessavam sem pausas, eu me sinto tão morta quanto estive antes de me tornar essa criatura.
Éramos e ainda somos, apenas eu e ele...
— Miau — Jason telepaticamente mia.
Penso que se talvez eu não tivesse aceitado rodopiar naquele baile, o que me teria alcançado? Quais sentimentos iriam me consumir de acordo com as minhas escolhas?
Como seria bom voltar para as cores daquela festa, o dourado irradiava naquele salão, mesmo que dentro de mim fosse como uma borracha apagando ativamente cada vestígio da Maria existente de outrora. Sinto tantas coisas ao mesmo tempo que sinto um vazio me cobrir a cada segunda em que busco respirar nessa carcaça imortal. E a minha adorável amiga... meu outro consolo neste imenso castelo que me cerceia de dúvidas, se meu coração pudesse saltar, agora ele estaria no chão do quarto com um vestido vermelho dançando algum tango com as minhas emoções conflitantes.
— Miau — Jason me interrompe na hora da minha escrita.
Não consigo sentir raiva dele neste momento, pois ele me acordou por um bem maior. Tem estado preocupado comigo desde a nossa última refeição e que felicidade seria apenas ser uma viagem alucinante após um copo do líquor-carmesim que eu nem sequer tocara.
Levanto-me deste dossel e agora percebo que tudo no meu quarto combina com as cores do meu cabelo, antes eu estava tão no automático e procurando respostas, que nem dei vazão para as emoções com tanta destreza que nem agora que me encontro em tamanho descontentamento. Passei o dia estranhamente no escuro e na companhia do meu gato não vi a hora passar. Eu me senti em combustão depois de sorver todo o sangue daquela criatura que atrapalhara meu caminho. Os humanos são tão frágeis que chega a ser repugnante, ao mesmo tempo que os invejo.
Com as cortinas fechadas o dia inteiro, a escuridão se fez presente e ao vaguear agora no corredor do castelo com o Jason, percebo que já anoiteceu. Mas não vejo a lua amada que admiro todos os dias. Hoje está diferente. A lua está cheia, mas as cores estão diferentes, nos vitrais brilham três tons e esse carmim me traz vagas lembranças...
— Miau — Jason faz uma interação telepata tentando me confortar.
— Eu não sei se consigo controlar Jason, eu me sinto cheia de ontem, mas algo me chama e eu quero mais. Eu estive todo esse tempo suprimindo meus desejos e os suprindo com a escrita. Mas não sei se irei aguentar por tanto tempo, me sinto perturbada nesse momento. Você consegue me entender agora nesta nova fase?
— Miau — Jason mia baixo e me mostra em nossa conexão mental que estará comigo em todos os momentos. Que preciso me controlar, pois há muito ainda a ser feito e vamos aprender algo com nossa dor atual.
— O que é aquilo? — Vejo uma sombra no vitral e nunca fui cética, pelo contrário. Não consegui sentir nenhum cheiro, a etérea fantasmagórica nos convida.
Vamos correndo seguindo-a pelos vitrais no clarear da lua túrgida. Eu consegui me desvencilhar um pouco dos sentimentos enquanto estava nessa fuga da minha realidade. Não consigo observar os detalhes com clareza, a aparição tem apenas cabelos longos e o corpo parece coberto por uma manta.
Ao chegar aonde não se encontrava mais nossa descoberta, sou pega de surpresa, pois há uma catedral dentro do castelo. As paredes não têm a mesma pintura dos cômodos do castelo. São tantas cruzes e tantos símbolos de religiões diferentes, que julgo ser um lugar para aqueles que buscam algum refúgio para o espírito, vampiros fazendo prece me parece tão satirizado.
Seguro-me em um banco que está envolto de um lençol branco, algumas árvores cortadas estão na catedral e tudo parece um grande caos abandonado. São tantos vitrais de modelos diferentes. Mesmo que distintas em seus formatos, apenas a luz dessa lua que tange em reflexivo e penetrante cor todo o ambiente.
Como já venho me sentindo tão amargamente contrariada e lamuriosa, resolvo pedir para a única em que acreditei em toda a minha vida, a mãe natureza. Quem sabe me respondesse em meio a esse lugar nada sagrado, para a minha alma já perdida e uma mente volúvel que agora só crer no poço profundo que busca incessantemente.
Peço para Jason fechar os olhos e junto comigo um clamor para que ela se faça presente naquele momento, que me desse alguma brecha para que um novo rumo se abrisse à minha frente.
Não aguento mais ficar na constante dúvida de existir nesta nova vida em que levo. E mesmo que eu não tenha os elementos mágicos para fazer os pedidos aqui comigo, deixei todos no meu quarto. Deixei-os de lado depois que me tornei vampira, mas sempre estão comigo de algum modo que me prendesse na vida humana em que eu tivera.
Não demorou muito para que uma nova forma etérea aparecesse e com ela um clarão incandescente, seu formato fazia conjunto com os troncos cortados próximos aos bancos. Sua silhueta em formato de uma mulher, de uma mãe que estava gestando não apenas um filho, mas uma chusma. Seus cabelos estavam esvoaçantes em formas de arbustos num verde claro que ainda sim era ofuscado pela luz dos vitrais da lua. Em suas mãos tinham sálvias me trazendo o sentimento que eu almejava.
Meus olhos ficaram avermelhados e em seguidas lágrimas escorreram pelo meu rosto, lágrimas de sangue e, ao olhar para o Jason, ele sentia o mesmo.
Meus cabelos curtos em formato de algodão doce ruivo com manchas verdes agora estavam voando como o dela, da mãe que me trouxera a conexão divina que é um dos significados da sálvia e a sabedoria que eu almejava. Eu não consigo conter minhas lágrimas e me sinto sonolenta. Ao bocejar sinto meu corpo esvanecer.
Lembranças
Sinto o cheiro da grama molhada do meu antigo jardim, da casa que tive meus melhores momentos com o meu pai. Minha mãe havia falecido quando eu ainda era uma bebê e tudo que me restava dela eram algumas fotos que tirara comigo no dia do meu nascimento. No dia que mudamos para essa casa, meu pai me contara diversos sonhos que tinha para nós e lembrar que, ainda morando neste lar, também o perdi. Me submeti a uma nova mudança logo após o passar do meu luto, estava decidida a morar sozinha e viver uma carreira de autora, ainda que fossem difíceis os sentimentos de lembrança do meu melhor amigo, um pai presente, que para muitos hoje está em falta.
A herança que ficou para mim, usei para gastos supérfluos, aumentando meus atos compulsivos e impulsivos de colecionadora. Morar numa cidade quente como Fortaleza me fez repensar muito nas minhas compras.
Tento abrir os olhos e logo sou jogada para uma nova lembrança.
— Esse dia não, por favor. — A mãe me acalenta com uma das plantas em suas mãos e eu adormeço novamente.
Os dias absurdamente quentes que as nuvens não estavam à nossa vista, o sol queimava a retina e o corpo transpirava em lugares inenarráveis. Nessa época eu estava de cabelo azul, assim como a cor da caneta que eu escrevia no meu diário. Meu livro ainda não tinha vendido nenhum exemplar e eu me sentia desconsolada e as esperanças esquecidas no meio de qualquer lugar do mundo. Eu olhava para o céu em busca de queimar de vez a retina e a minha esclera quiçá ficasse da cor que era a emoção que me afligia. O céu naquele azul intenso que me ardiam os olhos, me dizia que eram dias que eu tinha que me recolher. E foi dentro de mim mesma que virei um casulo… Nesses dias eu me jogava no chuveiro, uma cidade tão quente e neste dia minha alma estava tão fria… “Por aqui, a única tempestade que tinha era de minhas lágrimas enquanto eu molhava meu corpo, escorria tudo de dentro de mim e, por fora, eu virava apenas uma só com a água”.
Enquanto vagueio nessas lembranças, me vêm esses trechos do meu diário e me recordo que nesse mesmo dia eu o conheci. Depois de um banho e logo suada estava novamente, fui caminhar até a praia e no antigo Porto dos Ingleses ou Ponte Metálica eu fiquei a refletir sobre a minha escrita e foi ali que eu ouvi um miado. Bem distante e um serzinho mufino escondido com os pelos siameses e sujo. Eu queria morrer naquele dia, minha mente estava explodindo com todos os meus problemas além do livro. Eu cogitei me jogar daquela ponte até aquele miado me entreter. E foi assim que Jason nunca mais saiu da minha vida.
Diário Não Datado - Um novo dia
Ao acordar depois daquele encontro, ainda no meu dossel, apalpei meu rosto e senti as lágrimas secas e grudadas, Jason ao meu lado estava do mesmo jeito. Acredito que a mãe natureza quis me mostrar que independente de tudo que estejamos enfrentando nesse castelo sombrio, se continuarmos juntos, seremos mais fortes. Quanto à lembrança do meu pai, sinto que era o consolo que eu buscava, após perdê-lo criei um desconforto em manter algum tipo de comunicação com homens, foram poucos que tiveram minha atenção. E agora que me encontro neste castelo vou precisar lidar com isso, principalmente quando Drácula vier ao meu encontro, ou algum morador do castelo.
As sombras eram solecismos factuais; um ruído medrava-se horrífico. Algo físico entre nós inibia-nos, impedindo quaisquer aproximações; uma divisão vítrea, perceptível…