Afirmando a autenticidade dos fatos

Imagem criada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula, com Midjourney

Estimado amigo, admito, elaborei uma farsa a respeito de meu passado. Fabulei em minhas rotinas de escrita.

A razão de minha expulsão, digo com relação ao colégio interno destinado a jovens moças. Nenhum plano malévolo jamais fora arquitetado contra minha pessoa, sou a única responsável por meus infortúnios. Concebo imagens de minha silhueta abraçada a mim mesma, consoladas sobre o mesmo véu negro invadido pela desesperança. Vejo-me como uma pedra afligindo uma fina flor, e afogo-me em luto, minhas mãos alcançam a superfície, porém ninguém jamais poderá resgatar-me da transgressão; deixe-me flutuar junto ao mar de flores, tal como Ofélia, deixe-me sangrar até sucumbir penalizada...

Através da janela contemplei a vista dos vales inteiramente cobertos pela neve, as árvores empalidecidas e parcas parecem-me solitárias a certa distância. 

Extraordinário a forma habitual como o azul tingido na amplidão do céu durante a alvorada, atinge todo o horizonte com a variação índigo da cor.  Ressentida, deixei uma lágrima escapar ao testemunhar as nuvens ocuparem o espaço, absorvendo a coloração, tornando o firmamento empalidecido, como o azul das Campânulas ressequidas ao alcance de minhas mãos, como os olhos de Teodoro Trindade. Em momentos de extrema lucidez, desejo de todo coração não possuir uma memória impressionantemente vasta, até mesmo os sons são armazenados em minha memória. 

Adaptei-me a adormecer na companhia de uma sonoridade específica; os gritos pueris da infância, as desconexas sentenças, assombrosas, que ecoam em minha memória, regularmente, durante as madrugadas. No momento em que ocorre, sinto um certo alívio, sinto-me em casa. Próxima a Teodoro Trindade.

Amadeu, Luiz Antônio e Theodoro Trindade eram membros do Esquadrão da Guarda do Vice-Rei de Portugal, o 1º Regimento de Cavalaria do Exército. Os homens Trindade deixaram seu país de origem após a invasão napoleônica, buscando abrigo em nosso simplório colégio. Eu os vi adentrar os portões cercados pela neblina cálida e úmida, desenvolvida por consequência da sensação térmica elevada, e arrisquei-me a estudar o estranho trotar de seus cavalos em nosso território. O Sargento Teodoro carregava consigo, abraçado ao tronco, uma criança, mais tarde descobri ser um jovem de seu próprio sangue, nascido de um caso vulgar de amor 

Por meses eu o vi arar a terra e auxiliar nas tarefas de manutenção do terreno e do prédio onde se alocava o colégio. Teodoro trazia, em seus olhos azuis, profunda tristeza lacrimosa, e os cachos dourados de seus cabelos perdiam o brilho e a maciez conforme seu tempo estendia-se em nossa companhia. Trindade não fazia uso das palavras, perdera a habilidade da manifestação vocal ao ter a língua decepada durante uma tortura, minutos antes de sua fuga. 

Após as tarefas, o sargento recolhia-se aos fundos da propriedade, onde dedicava-se ao filho, o acalentando, na esperança de fazê-lo olvidar os dias de flagelo. A criança berrava noite e dia, e os olhos de Teodoro enchiam-se de lágrimas instantaneamente, mesmo ele carregava na alma o efeito da covardia humana, e sobrevivia puramente pela esperança de auxiliar o retorno do filho à jovem casca.

Eu o visitava pela madrugada, o sargento tinha meu interesse como o presente dos céus, uma gentileza atrelada a minha alma pura e jovial, embora eu nutrisse certa fraqueza por seus olhos azuis lacrimosos e a força como atravessava o rio da vida, molhando-se o tanto quanto era permitido, afogando-se na esperança de sufocar a dor latente de carregar bárbaras memórias de violação de seu corpo e de quem mais amava, um sobrevivente, jamais carregado pela maré, apesar do desejo oculto de permitir que a morte ceife sua vida. 

Sentei-me certa vez ao pé de sua cama, de modo que pudesse tocar em seus dedos alvos e longos, sentindo a aspereza de sua pele sobre a palma de minhas mãos. Trindade era um jovem homem na casa dos vinte e cinco anos, poucos anos à minha frente, porém, sua constante vestimenta branca, o olhar puro e temeroso e o movimentar dos olhos vagarosamente ao levar as mãos aos lábios pequenos e rosados, o atribuía um ar pueril.

O homem fora meu lar quando esquecida por meus familiares e vivia em uma rotina cansativa de estudos e leituras, ao menos meus livros acompanharam-me em minha jornada. Jamais nos beijamos em vida, ou trocamos o calor de nossos corpos, embora eu tenha fantasiado, e no desfecho de nossa história encostar os lábios nos seus empalidecidos, em busca de soprar-lhe de volta à vida, intoxicando-me com o gosto frio da morte impiedosa.

Pois bem, Trindade aproveitou de meu conhecimento para que o ajudasse em uma ocorrência, fez-me prometer encontrar uma forma de ceifar sua vida e a da criança, primeiramente segurou minhas mãos trêmulas sobre um punhal de encontro à sua artéria, imprensando seu torso nu, aproveitando de minhas distrações por seus olhos lacrimosos e melancólicos e lábios rosados para arrancar de mim a ímpia promessa de morte. 

Eu não o matei, não à sua hora, embora o tenha executado mais tarde, quando sua afeição fora direcionada à irmã Celeste. Ele jamais a pediu que o deixasse escapar para o descanso eterno, era feliz ao seu lado, contudo cumpri minha promessa, findei sua vida, e a de seus irmãos e de sua prole, ambos envenenados com arsênico, privando suas células do organismo de obter oxigênio. Antes de partir, Teodoro abraçou o filho, assentiu para mim de forma compreensiva e pranteou ao aceitar a morte. 

A culpa recaiu sobre mim como podes imaginar, a jovem ensanguentada por fustigar o rosto contra parede em busca da dor e do padecimento, a jovem cujas lágrimas misturavam-se ao plasma sangrento, gotejado sobre as pálpebras e lábios entreabertos em um grito de cólera. Não havia uma outra alma sabida como a minha em companhia de uma coleção de livros e artigos intelectuais relacionados à biologia, alquimia e estudos herméticos. Neguei o crime, todavia deixo aqui minhas palavras, afirmando a autenticidade dos fatos. 

Ainda consegues nutrir afeição por mim, estimado amigo, mesmo após ouvir a minha verdade?

Texto publicado na 6ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de junho de 2024. → Ler edição completa

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