Diário de Anton Stefan Miahi — VIII

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

De Ivan Molchanov
(Cartas guardadas)

17 de agosto de 1871 — Minha chegada a solo romeno fora tardia. O inverno implacável no norte da Alemanha atrasara minha jornada em vários dias, forçando-me a uma travessia lenta e extenuante. Quando enfim pisei novamente nesta terra esquecida, vi-me obrigado a dedicar um tempo à readequação. Os arredores do castelo haviam mudado, não tanto em sua natureza lúgubre, mas em detalhes sutis—trilhas deslocadas, edificações em ruínas, presenças que antes não existiam. Investiguei. Observei. E, numa das noites em que perambulava entre as sombras da fortaleza, meus olhos captaram dois vultos. Um deles, masculino, exibia o andar hesitante de um intruso. Suponho que seja este o homem ao qual Nestor deseja que eu elimine.

O tempo não dissipou as trevas desta região. As montanhas escarpadas continuam assombrosamente solitárias, e a silhueta do castelo, cravada na penumbra das alturas, permanece um lembrete incontestável da ausência de divindades que ousem reivindicar este domínio profano. Recordo-me das paredes sóbrias e cinzentas, impregnadas com um odor peculiar—morte, químicos e algo de essência inominável.

Ao chegar, busquei Nestor. O acesso ao castelo foi feito pela entrada oculta na base da montanha, um caminho de outrora, com o qual me habituei nos anos de serviço obscuro sob o estandarte de Drácula.

Nestor aguardava-me nas profundezas do castelo. Seu vulto emergiu da penumbra, envolto na penumbra lamacenta das tochas trêmulas. Seus olhos brilharam, avaliando-me.

— Molchanov… — Sua voz cortou o silêncio, grave e deliberada. — O tempo não tocou tua essência. Sempre um soldado.

Fixei-o com um olhar firme.

— O dever não permite espaço para mutabilidade vã. Vim a teu chamado.

Nestor assentiu lentamente, um espectro de satisfação perpassando-lhe o rosto.

— Tens um alvo, — Declarou, aproximando-se. O cheiro de cera derretida e pedra úmida misturava-se ao aroma ferroso no ar. — Anton. Tem andado por lugares onde não deveria. Há segredos que devoram os curiosos.

Eu já sabia o que seguiria.

— Se ele não aceitar o Abraço da Noite, — prosseguiu, a voz sem qualquer traço de hesitação, — então deve desaparecer.

Meus dedos roçaram instintivamente a empunhadura da adaga sob o sobretudo. Um gesto automático, um reflexo do instinto de execução.

— Compreendo. E qual será o veredicto? Sangue ou trevas?

— Se resistir, finda-o. Tua lâmina será seu último horizonte.

Assenti. Sem hesitação. Sem perguntas.

— Assim será.

A conversa findara, mas o peso da tarefa já se assentava sobre meus ombros como uma mortalha invisível.

Deixei a sala, caminhando pelos corredores úmidos do castelo. O chão de pedra reverberava sob minhas botas, um eco solitário que se desfazia nas arcadas sombrias. O ar era frio, carregado com o cheiro rançoso de cera e poeira antiga. Ao cruzar um arco em ruínas, a vastidão do salão principal abriu-se diante de mim, seu teto sustentado por colunas grotescas, esculpidas em formas disformes—rostos angustiados, corpos entrelaçados, como se artistas dementes tivessem imortalizado almas atormentadas na própria estrutura do castelo.

No alto, além dos vitrais estilhaçados, a lua espreitava com seu olhar cínico, testemunha silenciosa de pactos e traições.

Continuei meu caminho, descendo pelo labirinto de corredores até emergir na passagem oculta ao sopé da montanha. A trilha era traiçoeira, serpenteando por entre pedras escorregadias e raízes retorcidas. O vento sussurrava nas árvores, trazendo consigo o cheiro de lenha queimada, um resquício da civilização à distância.

Ao longe, as luzes mortiças da cidade tremeluziam como vaga-lumes prestes a se extinguir. Um mundo diferente do castelo, mas não menos condenado.

A vila me esperava.

E Anton não veria o amanhecer.

Horas mais tarde — A cidade abaixo do castelo me é estranha, um detalhe novo que não reconheço de outrora. No entanto, a atmosfera permanece imutável. Há algo nesta terra que persiste, um odor espectral que não se dissipa. O castelo sempre foi um palco de anomalias: sombras que se movem sem fonte, espectros inquietos, aposentos que se deslocam como se fossem dotados de consciência.

Nestor advertira-me sobre tais ocorrências, mas o que testemunhei nas últimas noites desafia qualquer aviso.

O céu e a névoa ostentam tons ciano-azinhavres, como um prenúncio de morte. Raios rasgam a escuridão com luzes espectrais, trovões retumbam como tambores de guerra, e o vento... o vento ruge como uma matilha em frenesi. A neve, tingida em um gradiente sombrio, cai lenta, mas sem suavidade.

Então veio a noite passada.

A lua ergueu-se, titânica e dominadora, uma deusa silenciosa entre nuvens disformes. Caminhava pela floresta, atento aos sussurros do vento entre os galhos nus, quando vi—a primeira fissura.

Uma linha no ar, trêmula, pulsante. Então outra. E outra.

Até que se abriu um rasgo maior diante de mim.

O ar que emanava daquela fenda não pertencia a este mundo. Um odor de carne pútrida rastejou até minhas narinas. Algo se movia no outro lado, uma silhueta deformada oscilava entre a névoa espessa. Primeiro vieram os sons: grunhidos abafados, o estalar de ossos partidos. Então a luz pálida cresceu.

E eu vi.

A criatura rastejou da abertura. Sua pele era um tecido flácido e esbranquiçado, esticado sobre ossos retorcidos, veias arroxeadas pulsando sob a derme translúcida. Olhos sem íris, sem pupilas, apenas globos vazios, brilhando como pálidas esferas de morte. Sua boca se abriu num sorriso de presas finas como agulhas, e entre elas... restos humanos ainda gotejavam.

— Deixe de observar...— Uma risada gutural, profunda, ressoou em meus ouvidos. — Não gosto… que testemunhem meu deleite carnal e mundano. Sou… Ttyphrssett.

Meus músculos enrijeceram. Garras se projetaram. O instinto de sobrevivência rugiu dentro de mim.

A criatura avançou. Rápida, como um borrão espectral.

Saltei para o lado, girando o corpo. Minhas garras rasparam o vazio onde sua carne estivera há meros instantes. O vento sibilou quando ela girou, desferindo um golpe.

Levantei o antebraço a tempo—o impacto reverberou pelos ossos.

Ela riu, uma cacofonia de vozes sobrepostas.

— Fome é a minha eternidade… Estranho ser… deste mundo. — Sibilou sua voz estranha.

A voz era um sussurro, um grito, um eco de algo ancestral.

— E se te oferecesse uma presa melhor… Ttyp…Ttyphrssett? — Cuspi as palavras, desviando-me de mais uma investida.

A criatura parou. O vazio em seus olhos se contraiu levemente.

— Carne fresca. Alma quente.—

Ela inspirou o ar.

— Fala...— Seus dentes brilharam sob a luz difusa. — Mas que não seja engodo, ou devorar-te-ei antes do amanhecer.

Mantive a postura firme, a voz tão cortante quanto minha lâmina.

— Anton. Um mortal intruso nos domínios de Drácula. Um erro que precisa ser corrigido.

O ser inclinou a cabeça, avaliando-me.

— E como o entregarias a mim? — Gotas vermelhas gotejaram de sua boca cheia de dentes filosos e finos.

Um plano já se desenhava em minha mente.

— Um espelho. Na igreja central. — Minha voz era uma promessa de aço. — A armadilha será sutil. Ele não suspeitará até ser tarde demais.

A criatura lambeu os lábios maculados de sangue.

— Se tua promessa falhar, tua carne substituirá a dele.

Inclinei a cabeça levemente, um gesto de assentimento.

— Se falhar, nem mesmo merecerei sobreviver.

Tenho pouco tempo. Anton deve perecer. Sua vida será o tributo exigido por esta entidade insaciável. Não há hesitação.

Ao final, seu corpo sem vida será entregue a Nestor.

A escuridão desta terra exige tributos constantes, e hoje… Anton será o sacrificado.

A floresta estava silenciosa quando deixei aquele lugar profano. A criatura desaparecera, dissolvendo-se na noite como um espectro faminto. Minhas mãos ainda tremulavam com a adrenalina do confronto, mas meu pensamento já estava focado no próximo passo.

Caminhei em direção à cidade, ocultando-me entre as sombras das vielas. As ruas estavam desertas, a névoa rastejava como uma criatura viva, esgueirando-se entre as construções de madeira decrépitas. A poucos passos, uma das casas abandonadas se tornou meu refúgio temporário.

Empurrei a porta com cuidado. O interior estava empoeirado, com móveis gastos e uma lareira apagada há muito tempo. Um antigo lampião sobre a mesa me forneceu a luz necessária para registrar o que se sucedeu.

Sentei-me, puxando um pedaço de papel envelhecido. Minha caligrafia firme começou a preencher a página.

Larguei a pena sobre a mesa, observando a tinta escorrer lentamente.

Antes do dia fatídico, no entanto, precisaria encontrar Nestor novamente. Informá-lo do plano recém-forjado. Anton não poderia escapar... e eu deveria me certificar de que cada peça estava devidamente posicionada no tabuleiro antes que a noite de caça se iniciasse.

De Narcís Nestor
(Anotações em seu Caderno)

25 de agosto de 1871 —Ivan, sempre fiel à sua frieza militar, deixou-me uma carta em sua entrada habitual, como um cão de caça que deposita sua presa aos pés do mestre. A despeito de sua natureza imperturbável, até mesmo ele parece ter se assombrado com os eventos recentes. A ironia disso quase me diverte. Nos últimos tempos, o castelo tem sido palco de fenômenos tão frequentes e diversos que sua mera enumeração tornar-se-ia cansativa. Mas sigamos ao que realmente importa, ao haver um jogo a ser concluído, e o tempo é um luxo que não podemos nos dar. E o que ele relatou foi isto:

“Tenho pouco tempo para executar meu plano. Anton deve perecer, sua vida será o tributo exigido por esta entidade insaciável, Ttyphrssett. Não haverá trégua nem hesitação. Ao final, seu corpo sem vida será entregue a Nestor, e que ele decida o destino final dos restos mortais. A escuridão desta terra exige tributos constantes, e em três noites, Anton será o sacrificado.”

Tão direto e eficiente quanto um relatório de campanha. Há algo de quase tocante nessa disciplina militar com que Ivan trata até mesmo as monstruosidades mais abjetas. No entanto, como eu suspeitava, sua descrição não omite a repugnante participação de Ttyphrssett — aquela aberração execrável, escarrada das mãos da estimada senhora Olga. Como é peculiar que sua fome cega e primitiva venha, enfim, a ter um propósito. Ironia refinada.

Entretanto, antes que a peça final seja disposta no tabuleiro, há ainda um último e irritante dever a cumprir. Devo tratar com os Santos Dominadores. Ah, que nome pomposo para um bando de degenerados cuja “santidade” não passa de um véu esgarçado cobrindo vícios e ambições. Eles me causam repulsa, confesso. No entanto, são um mal necessário, mais profanos em sua falsa fé do que Ttyphrssett jamais será em sua fome animalesca.

O jogo se aproxima do xeque-mate. Restam três noites.

De Narcís Nestor
(Anotações em seu Caderno)

27 de agosto de 1871 — Nesta noite, pela discreta entrada ao pé da montanha, encontrei-me com um dos clérigos que infiltramos entre os patéticos Dominadores. Pobres almas iludidas por sua própria grandiloquência, sempre tão ávidas por acreditar que detêm o domínio sobre aquilo que mal compreendem. Mas que sigam em sua ilusão, pois essa nos serve.

O emissário desta vez foi um jovem chamado Luca — dezesseis anos apenas, mas já contaminado por uma ambição que me diverte. Há nele um brilho voraz nos olhos, não de fé, mas de algo muito mais interessante: um desejo de ascensão, de poder. Veremos até onde suas próprias ambições o conduzirão antes que o devorem.

Entreguei-lhe a mensagem destinada a Ivan, informando-lhe que o espelho necessário para a armadilha estará oculto dentro da nave da igreja, velado sob um grande pano negro. Detalhes importam. A simbologia importa. Um véu negro sobre o instrumento de condenação — quase poético.

Acrescentei ainda que Anton será devidamente instigado a dirigir-se à cidade a nordeste do castelo. O resto acontecerá como deve. Uma carta será deixada para Anton. Ele estará na igreja, às dezenove horas em ponto.

Resta ver se Ivan desempenhará bem seu papel.

Anton S. Miahi XIX
(Escrito em meu Caderno)

28 de agosto de 1871 — Os eventos que pude relatar foram demasiadamente assombrosos e perturbadores em níveis que jamais concebi ou sequer encontrei descritos nas páginas dos volumes mais soturnos que estudei. Suponho não viver um sonho, mas um tormento desperto, um pesadelo onde o próprio tempo parece corrompido. Meu peito se aperta, e por vezes me falta o ar. Tento desesperadamente organizar meus pensamentos, amarrar a razão ao que meus olhos testemunham, buscar um ponto de ancoragem para não ser tragado pelo abismo da loucura que habita estas paredes.

Nesta manhã, por primeira vez, despertei sem sobressaltos, sem os suspiros entrecortados de quem tem os nervos castigados pelo desconhecido. Houve uma calmaria incomum que me tranquilizou. Arrumei minhas coisas, limpei minhas botas com a atenção meticulosa de um soldado e observei a janela. Por algumas horas, a ilusão de normalidade me envolveu como um véu frágil. Mas, como tudo entre os vivos, a paz é efêmera.

O céu, antes cinzento e imóvel, começou a se transmutar. Primeiro, as nuvens espessas formaram um manto opressor sobre o vale. A chuva caiu pesada e súbita, e então, como uma guinada grotesca da natureza, deu lugar à neve. O frio invadiu o aposento, e a neblina rastejou pelas encostas como uma criatura faminta. Dirigi-me à janela, e, ao fitar a clareira de Séttimor, vi as luzes outra vez. Clarões de tons roxos e azul-acinzentados pulsavam na floresta como lanternas espectrais. Já as notara antes, mas hoje me pareceram mais próximas, mais intensas.

E então, um som.

Passos abafados no corredor. Um deslizar breve, contido, como se quem estivesse do outro lado hesitasse antes de agir. Girei nos calcanhares, fitando o vão da porta. Uma sombra estacionou diante dela, e sem que a madeira rangesse sob seu peso, um envelope foi deslizado por baixo. Permaneci imóvel por um instante, prestando atenção. Nenhum som de passos se afastando. Apenas o eco da minha própria respiração.

Aproximei-me. A carta jazia ali, pálida sobre o assoalho. Peguei-a com hesitação. O papel era espesso, amarelado, com um selo partido, como se tivesse sido aberta e lacrada novamente. Deslizei os dedos sobre sua superfície, sentindo um perfume antigo, amadeirado, quase espectral.

Ao desdobrá-la, li:

"A morte não é silêncio, Anton S. Miahi. Nem o tempo é um cárcere impenetrável.

O sangue derramado sempre busca seu reflexo, e ecos do que foi se enlaçam ao que ainda será.

A sombra do passado repousa sobre teu nome, e os fios que te ligam àqueles que se foram não foram cortados—apenas esquecidos. Olga tece as teias e cria caminhos, como sempre fez, e em meio ao lamento das pedras, há um nome que insiste em se erguer entre os mortos. O nome de teu irmão.

Se anseias pela verdade, procura-me onde os sinos dormem e as velas tremem ao menor sopro de vento. Onde o solo foi profanado e os juramentos, quebrados.

A noite de hoje te aguarda na cidade ao nordeste do castelo."

O ar no aposento pareceu tornar-se mais pesado. Olga. O nome que eu desejava sepultar no esquecimento ressurgia como um cadáver reanimado. E meu jovem irmão... há muito tempo morto, longe dos meus braços, mas jamais do meu espírito.

Quem escrevera tais palavras? Como sabia de coisas que poucos poderiam conhecer?

A cidade ao nordeste do castelo... um convite ou uma armadilha?

Independentemente da resposta, eu sabia que não poderia ignorá-lo.

Naquela noite — o que me ocorre ao recordar os eventos que nela se sucederam não é simplesmente uma lembrança indesejável, mas um terror que se assemelha, em sua intensidade e gravidade, aos próprios horrores vividos nos campos de batalha. O que testemunhei, no entanto, não se limita a um mero vislumbre de pesadelo: é uma marca indelével, profundamente gravada nas paredes de minha mente, que jamais se apagará.

Permitam-me, no entanto, oferecer-lhes o relato o mais fiel e acurado possível, como é meu dever como homem de ciência.

Em minha preparação para o que seria uma jornada incerta, vesti-me com o habitual cuidado de um oficial acostumado a respeitar os caprichos da natureza e os rigores do clima. Coloquei sobre meus ombros uma capa espessa de lã, resistente aos ventos cortantes daquela região desolada. A bota de couro, que se estendia até os joelhos, selava minha caminhada com firmeza e austeridade. O chapéu negro, de aba larga, e o sabre, meu fiel companheiro, completaram a indumentária, que, mais do que proteger-me da intempérie, era uma armadura psicológica contra as incertezas do desconhecido. O peso da experiência de combate, forjado nos campos de guerra, incitava-me à cautela, e, por isso, embora o temor de um desafio oculto pairasse sobre mim, minha razão ainda prevalecia, guiando-me através da escuridão.

O dilema que me atormentava não era pequeno. Deveria eu seguir os conselhos da lógica, da razão pura e das lições adquiridas em meu labor como historiador, ou ceder à tentação da descoberta, ao risco de me lançar em uma jornada cujos contornos eram, por ora, indiscerníveis? A dúvida pairava como uma sombra inquietante, mas a experiência adquirida nos campos de batalha me fazia permanecer firme, pois, como sempre, a razão deveria prevalecer sobre o instinto.

Felizmente, o tempo que dediquei ao estudo das cartas e dos mapas do Conde, documentos que o próprio me confiara, revelou-se, de maneira inusitada, como uma arma poderosa. Através deles, pude traçar o percurso, conhecendo os meandros daquele terreno que, embora familiar, ainda me era enigmático. O estudo intenso, por tanto, mostrou-se não apenas uma fonte de prazer intelectual, mas uma ferramenta de sobrevivência.

Ao sair de meu aposento, fechei a porta atrás de mim com um leve e contido estalo, como se o som não fosse mais do que o eco de minha decisão. O corredor do castelo se estendia à minha frente, envolto pela penumbra das tochas tremeluzentes, cujas chamas dançavam sobre as pedras e as paredes de pedra fria. O ar estava carregado, pesado, como se o próprio castelo estivesse respirando, aguardando a minha partida. Segui até a porta leste, a única que dava para o exterior, e ali, ao abrir a pesada folha de madeira, senti o impacto do ar gelado. A noite estava envolta em uma espessa camada de névoa, e o silêncio, profundo e solitário, me acolheu como uma capa de luto.

Antes de avançar, um impulso me fez olhar para trás, e foi quando, ao longe, através de uma janela turva e empoeirada, avistei uma silhueta. A luz tênue que emanava de dentro do castelo projetava sombras longas e desconcertantes, e, naquele instante, compreendi: era Nestor, observando-me daquelas alturas. O pressentimento que ele me causou não se limitava à mera curiosidade; algo em seus olhos me alertava para que a jornada que eu estava prestes a empreender era mais perigosa do que imaginava.

Decidi, no entanto, não hesitar. Tinha um destino, e era para ele que eu me dirigia. A carta que recebera indicava-me o caminho, e como um cavaleiro indo à sua cruzada, eu avançava, agora movido não apenas pela razão, mas por uma força que parecia transcender minha compreensão.

O percurso até a cidade mencionada na missiva foi árduo, e a densa vegetação, com árvores de pinheiro que se erguiam como sentinelas sombrias, parecia absorver a luz da lua, tornando cada passo mais difícil e incerto. O chão estava coberto de lama, que, a cada passo, grudava às solas de minhas botas, tornando a caminhada ainda mais extenuante. A neve voltou a cair, fina como pó de prata, e o vento, agora mais forte, parecia sussurrar palavras que não consegui compreender. As árvores, cujos troncos retorcidos pareciam lamentar sua própria existência, eram um cenário perfeito para o pesadelo que se desenrolava em minha mente.

Após uma caminhada de quase quarenta minutos, finalmente avistei o que procurava. Uma pequena cidade, erguida sobre uma elevação, com mais de vinte casas, se estendia à minha frente. No ponto mais alto, erguia-se uma igreja de duas torres pontiagudas, cujos contornos negros pareciam rasgar o céu nublado, como se estivessem conectados a algum poder obscuro. Uma sensação de estranheza me envolveu ao perceber a proximidade daquela cidade, uma cidade que não deveria existir, não tão perto do castelo, não tão afastada de Séttimor.

— "Então, este lugar realmente existe?" — A pergunta surgia involuntária, como uma súplica ao destino. Não podia acreditar que uma cidade assim pudesse estar oculta, a apenas quatro ou cinco horas de caminhada forçada, mas ali estava ela, desafiando toda a lógica.

O muro de meia altura que cercava a cidade não era mais do que um amparo inútil contra o mundo exterior, e o portão de madeira rústica parecia, mais do que uma entrada, uma brecha para outro mundo. Não havia uma alma viva na rua, mas as luzes tremeluzentes das casas indicavam que, pelo menos, havia algum tipo de vida. O silêncio, no entanto, era ensurdecedor, e o som distante de animais de fazenda acrescentava uma camada de inquietação à quietude sobrenatural que pairava sobre o local.

Ao cruzar o portão, algo alterou a realidade ao meu redor. Foi como se o próprio tecido do espaço se distorcesse, como se uma película invisível tivesse se rasgado, e eu fosse lançado em outra dimensão. O ar parecia se fragmentar, e eu, em um estado de confusão, apoiei-me no portão, sentindo minha cabeça girar. Quando finalmente consegui abrir os olhos, tudo havia mudado. O mundo ao meu redor se tornava maleável, ondulante, como se estivesse imerso em um rio sereno. Bolhas surgiam, flutuando diante de mim, e dentro delas, imagens que se desfocavam antes de revelar cenas de lugares nunca antes vistos — mas que, inexplicavelmente, se assemelhavam a minhas próprias memórias.

Dentre essas bolhas, uma se formou diante de meus olhos, e ao tocá-la, a cena que se revelou fez meu coração parar. Meu irmão, em meus braços, sangrando. O sangue se espalhava sobre suas roupas, escorrendo pelas minhas mãos e caindo sobre minhas pernas. Um grito, abafado pela memória, ecoou em minha mente, e uma sensação de angústia imensurável tomou conta de meu ser. A bolha explodiu, e outras começaram a se formar, distorcidas e caóticas.

Foi neste momento que tomei minha decisão: eu precisava entender o que estava acontecendo. Eu precisava desvendar os mistérios que aquele lugar ocultava.

Avancei, com a determinação que só a dor pode conceder, em direção à igreja. Porém, a uma curta distância das portas, uma barreira invisível parecia me deter, como se o próprio espaço estivesse rejeitando minha presença. Respirei profundamente, voltei a me concentrar, e apertei o punho ao redor do sabre. Estava resoluto, mais do que nunca.

A porta da igreja, que parecia aguardando minha chegada, estava escancarada, como se me convidasse a adentrar seu domínio. Não queria ser impetuoso, pois sabia que a cultura local talvez exigisse mais respeito. Então, entrei com o maior cuidado possível.

Foi quando fui tomado pela estranha melodia que preenchia o interior. Um canto singular, que me remeteu aos cânticos gregorianos da Notre-Dame. Sua beleza não ocultava a estranheza de sua origem. Não sabia se aqueles monges eram católicos, anglicanos ou luteranos, mas sabia que algo em sua música ressoava com a obscuridade daquele lugar.

A arquitetura da igreja era como uma sinfonia de sombras, com colunas robustas adornadas por desenhos que pareciam antigos demais para serem identificados. O altar, elevado e macabro, estava coberto por símbolos que não se assemelhavam a nada que eu já tivesse visto. No altar, o sacerdote se destacava, um homem de barba grisalha, vestindo um manto negro com uma faixa cinza no peito. O ambiente todo emanava uma aura de segredo, e, no lado esquerdo, uma cortina cobrindo algo… algo que eu sabia que não deveria ver, mas que, mesmo assim, me atraía como uma força magnética.

Aquela noite, tão aguardada e temida, chegou com a promessa de revelar mistérios que jamais poderia imaginar. Adentrei a igreja com a diligência habitual de um homem de armas, mas também com a mente de um historiador. Eu sabia que a verdade, em sua forma mais pura e aterradora, seria revelada ali, entre aqueles muros ancestrais. 

O ambiente, imerso numa quietude sagrada, parecia reverberar com a história das eras passadas. As paredes de pedra estavam adornadas com inscrições em latim e símbolos antigos que pareciam pulsar com uma energia quase tangível. O canto dos monges, profundo e doloroso, era a alma daquele lugar — seus ecos tocavam minha alma, como se estivessem chamando não apenas à reflexão, mas ao despertar de algo profundo e sombrio.

Gradualmente, meus olhos se adaptaram à penumbra da nave. Eu estava ali, mas não como nenhum homem comum, não como um simples soldado ou professor. Eu era um espectador, aguardando o momento certo para agir, para confrontar o desconhecido que se ocultava por trás dos véus daquele culto sombrio. No entanto, o que me aguardava não era mera informação, mas uma experiência que desafiaria todos os meus princípios.

Foi quando me sentei, num banco distante, que senti a presença de um monge ao meu lado. Ele não disse nada de imediato, mas sua presença era inegável. Um pequeno monge de semblante pacífico, mas cuja aura emanava algo indescritível.

Ele se virou para mim com uma suavidade calculada e falou em tom baixo, quase sussurrante, mas ainda assim carregado de uma autoridade que não pude ignorar:

— Anton S. Miahi, o oficial da cavalaria? Eu sabia que você viria. Seu destino está entrelaçado com o que aqui acontece. Sou Luca.

Eu o olhei com desconfiança, não compreendendo o que queria dizer com aquilo. Mas havia algo em sua fala que me fez hesitar. Ele sabia meu nome. Mais ainda, sabia do meu propósito ali. Esse conhecimento não era comum, e era isso que me inquietava.

— Como sabe quem sou? O que sabe sobre meu irmão? — Minha voz saiu quase imperceptível, mas o monge ouviu.

Luca baixou a cabeça ligeiramente, como se ponderasse suas palavras, e então se inclinou mais perto, falando com uma confiança perturbadora:

— O que você busca aqui, Anton, não é apenas justiça. Você está buscando a verdade sobre seu irmão, o que aconteceu com ele. Sei onde ele está, mas o que posso lhe oferecer será além daquilo que você pode compreender no momento. Imploro: espere até o fim do canto. Quando os monges cessarem, sua resposta estará diante de você.

Suas palavras eram enigmáticas, mas algo em meu íntimo me dizia que ele falava a verdade. O medo, que em outros tempos teria me paralisado, agora se transformava em uma força incognoscível, uma determinação que me impulsionava a continuar, a esperar.

Mas a verdade, como sempre acontece com as trevas, chegou mais cedo do que imaginava.

Os cânticos interromperam-se abruptamente, e o silêncio se abateu sobre a igreja, como uma tempestade prestes a romper os céus. Olhei para o altar, e então percebi o que se desenrolava à minha frente. Um monge tirou o capuz e olhou-me com um sorriso cruel, um sorriso que denotava algo além da simples perversidade. Ele tinha uma cicatriz que cortava o lado direito de seu rosto, uma marca que falava de guerra, dor e sacrifício. Seus olhos, os olhos de um homem que já havia visto o inferno, fixaram-se em mim. Um arrepio percorreu minha espinha.

Ele foi até a cortina, com um gesto quase ritualístico. Movendo-a, ele recitou palavras em uma língua estranha, e, quando a cortina foi retirada, um espelho apareceu. Não era um espelho comum. Suas bordas estavam adornadas com símbolos que emitiam um brilho obscuro, uma luz azul-acinzentada, quase sobrenatural. E, então, a névoa começou a se formar. Um cheiro de carne apodrecida e sangue se espalhou pelo ambiente. Todos os presentes começaram a se agitar, mas ninguém ousou se mover.

Uma risada gutural e grotesca ecoou pela igreja, reverberando em meus ossos, como se o próprio ar estivesse rindo da nossa impotência.

E então, a criatura apareceu.

Ela não era humana. Suas formas, distorcidas e contra-natura, eram algo que eu nunca poderia ter descrito em palavras. Sua pele era pálida, esticada sobre ossos frágeis, como uma tela de carne que se retorcia com cada movimento. Seus olhos, ou melhor, os buracos onde os olhos deveriam estar, estavam vazios, sem íris, sem pupilas. Mas havia algo ali — uma presença, uma malícia que me cortava mais profundamente do que qualquer espada. O sorriso que ela mostrou era o de um predador — dentes finos e afiados como agulhas, dentes que brilhavam sob a luz fraca. Seus membros, longos e elásticos, pareciam ter vida própria, prontos para envolver e esmagar qualquer um que ousasse enfrentá-la.

A voz esganiçada dela cortou o silêncio, uma voz que parecia ecoar de todas as direções ao mesmo tempo:

— Criaturinha… Pequeno coelho… você é a próxima vítima. Venha, venha e seja consumido!

Os monges ao redor começaram a recitar preces freneticamente, mas não havia proteção ali. A criatura avançou, seus passos rápidos e pesados, esmagando a paz que até então reinava. Puxei minha espada, o metal reluzindo sob a luz sombria. Mas antes que pudesse reagir, a criatura avançou sobre mim com uma velocidade sobrenatural.

A luta foi um turbilhão de movimentos. Meus golpes, treinados por anos de batalha, eram rápidos e precisos, mas a criatura esquivava-se com uma agilidade impossível. Ela me atingiu com uma força esmagadora, um golpe brutal que fez com que minhas costelas se rompessem com um estalo doloroso, uma dor que fez tudo ao meu redor desaparecer em uma névoa de dor pura. Antes que pudesse me recuperar, ela saltou sobre mim, mordeu meu braço direito com uma força aterradora. A dor foi tão intensa que me fez quase perder os sentidos, mas, com um esforço desesperado, mantive minha espada firme.

A criatura recuou momentaneamente, e foi quando aproveitei a chance. Em um movimento rápido e preciso, cruzei minha espada e acertei o pescoço da criatura, rasgando sua carne podre. Ela gritou, uma gritaria grotesca e cheia de fúria, mas não recuou.

Com um último esforço, criei uma abertura e, com a força que me restava, cruzei o aço da lâmina contra a sua garganta. O sangue negro jorrou, e a criatura desabou no chão, sem vida. Eu estava exausto, sangrando, a dor consumindo cada fibra do meu ser.

Mas antes que pudesse dar um passo, a escuridão me tomou. Caí ao chão, meu corpo um emaranhado de dor. Senti meu sangue sair, quente e espesso, a dor alucinante do meu braço direito e das minhas costelas rompidas. Minha cabeça girava suavemente, mas pude reconhecer o velho monge barbudo, ainda com seu manto negro e cinza. Ele se aproximou, murmurando preces enquanto me tocava.

Eu mal conseguia entender suas palavras, mas o tom dele me trouxe uma sensação de alívio, mesmo em meio ao caos.

— Cavalheiro, você está no limiar entre a vida e a morte. Mas há algo que posso lhe oferecer… Se você aceitar a salvação, se desejar seguir a verdade da Igreja, sua vida será preservada.

Meu corpo, debilitado e atormentado pela dor, resistiu a essa oferta. Mas minha mente, naquele momento, sentiu o peso da escuridão que se aproximava. Eu, com um esforço sobre-humano, olhei para o monge e disse, com a voz embargada pela dor:

— Eu aceito…

A escuridão tomou conta de mim.

Quando acordei, estava em uma sala estranha, cheia de vapores e luzes opacas. O ar estava quente e úmido. Algo acontecera, algo além da compreensão humana. Mas o quê? O que havia mudado em mim? Eu não sabia, mas o temor tomou conta do meu ser. Algo estava diferente… algo em mim tinha sido alterado.

Texto publicado na Edição 13 da Revista Castelo Drácula. Datado de fevereiro de 2025. → Ler edição completa

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