O Ritual do Vinho
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
Minerva dormia pairando no reino do inconsciente, ela se via imersa em um sonho inusitado, um devaneio que parecia adentrar a alma. Sob a cama seu corpo flutuava acima dos lençóis e sua mente a levava até um descampado no centro de frondosas macieiras, por entre estas árvores brotavam as flores Ovaeren que começavam a se abrir, as pétalas escuras de algumas e alvas de outras se desdobrando à meia-noite como se obedecessem a um comando inaudível. O aroma doce e letal incendiava o ar, impregnando cada partícula da atmosfera com um torpor.
No centro do descampado, dançarinos giravam em círculos, cobertos por mantos esvoaçantes em uma dança ritualística. A dança era precisa, como se executasse um ato profético há muito escrito. Seus movimentos não pertenciam à alegria, mas à servidão de algo maior, de algo que Minerva sentia no fundo de seu ser, algo que chamava por ela naquela noite.
Em sua visão, ela caminhava em meio aquelas pessoas e seus olhos enxergavam pelo formato amendoado de uma máscara que cobria seu rosto. Os cabelos longos e negros estavam soltos e seu corpo de pele pálida estava livre de qualquer veste. Ela sentia os pés descalços tocarem as folhas outonais espalhadas pelo chão, tocou o próprio rosto sentindo a textura da máscara de porcelana que erguia em sua cabeça orelhas de láparos. Ao tentar removê-la, ela não conseguiu e percebeu que sua respiração ofegava por dentro dela. Uma fogueira estava acesa e o fogo crepitava vermelho quase incessante.
Aos poucos, conseguia sentir o ambiente ao redor e, sem conseguir pronunciar nenhuma palavra, observou os dançarinos, que entoavam cânticos em uma língua diferente, lançarem palavras que ela desconhecia. Ao seu redor, eles faziam uma ciranda letárgica e macabra. Um arrepio gélido tocou seu corpo, fazendo com que ela abraçasse a si mesma lentamente, passou as mãos frias pelos braços, apertando-os como se tentasse se proteger, sentindo o toque de sua pele estremecer a cada sibilar do vento e as vozes em coro, agressivas e agudas.
Ela tentava cobrir os seios expostos, envolvendo-se em um abraço trêmulo, enquanto seu coração tamborilava em seu peito. O festejo continuava, mas algo na dança parecia estranho, pois, as sombras dos dançarinos se alongavam, movendo-se com vontade própria, como espectros desprendidos de seus corpos. O cântico crescia, ecoando na noite como um feitiço que ganhava força.
Então, uma mulher se desprendeu da roda, erguendo os braços em um gesto ensaiado. Em uma das mãos, segurava uma taça de vinho, que ergueu lentamente antes de estendê-la a Minerva, os olhos faiscando sob a luz vacilante das chamas.
A dança ritualística parou e todos a observavam, Minerva entendeu que deveria aceitar a bebida que foi oferecida. Ao pegar o cálice, suas mãos encostaram nas mãos da outra e elas se entreolharam como se invadissem suas próprias almas com o olhar. Minerva conseguiu erguer a máscara para removê-la apenas naquele momento e levou a bebida aos lábios, ela sentiu o vinho fumegar ao descer pela garganta e sua pele aquiescer, libertando-a de seus pensamentos.
Ela ofereceu a bebida à outra mulher, que jogou o cálice no chão sem hesitação, os olhos ardendo em intenções. Com passos lentos, a estranha se aproximou, envolvendo Minerva em um abraço firme, quente como um feitiço recém-lançado. Seus rostos ficaram a um sopro de distância antes que os lábios se encontrassem em um beijo agridoce, onde suas línguas dançavam em um ritmo lento, carregado de desejo. Ao redor, os dançarinos permaneceram imóveis, testemunhas silenciosas da volúpia.
Minerva aos poucos permitiu que seu corpo se inflamasse pelo desejo. As carícias eram rituais silenciosos, percorriam suas costas e roçavam seus seios em um toque que oscilava entre devoção e pecado. Os lábios da mulher traçaram um caminho febril por seu pescoço, degustando sua pele como se absorvesse sua essência. Um gemido velado escapou de Minerva quando os dedos ágeis desceram, desenhando promessas sobre sua carne.
Ela se deixou conduzir, deitando-se sobre as folhas secas enquanto sua máscara caía, esquecida no chão e quebrada pelo impacto. O tempo se dissolvia entre beijos e toques embriagantes, até que, possuída pelo êxtase, Minerva arquejou, sentindo seu corpo pulsar em calor profano. Seu suor tinha um perfume adocicado, misturando-se ao aroma de fumaça e fogo que envolvia o ritual, como se a própria noite estivesse naturalmente inebriada.
Ela procurou a outra mulher com o olhar, mas ela havia desaparecido. Os dançarinos agora pareciam estátuas, imóveis, enquanto apenas as sombras se agitavam, dançando ao ritmo da crepitação da fogueira. Um novo calafrio percorreu seu corpo, fazendo-a estremecer sobre as folhas secas, ainda tomada pelo torpor. Então, de súbito, figuras encapuzadas emergiram da penumbra. Elas deslizaram entre ela e os dançarinos, seus mantos negros e carmesins ondulando como espectros vivos sob a iluminação trêmula.
No rosto, também carregavam máscaras de coelhos com cabeças alongadas, olhos vazios e escuros como poços profundos. Caminhavam em silêncio, organizados, seus passos ecoando de maneira ritmada. Entre as dobras dos mantos, carregavam objetos cuja natureza Minerva não conseguia discernir, mas cuja aura a fazia estremecer.
Ela tinha participado de um ritual macabro? Um sussurro rastejou em sua mente, indistinto, mas carregado de um chamado irresistível. Algo obscuro pulsava no coração, e talvez, apenas talvez, aquele sonho lúcido não fosse apenas um sonho e ela estivesse consciente de fato.
Minerva sentiu um frio estranho percorrer sua espinha quando, entre as figuras encapuzadas, um rosto conhecido emergiu. O pálido reflexo da lua escorria sobre as feições delicadas de sua mãe, Nuara, que exibia a face rígida, os olhos inexpressivos, quase vazios, mas indiscutivelmente os mesmos que um dia a acolheram. No entanto, era como se ela não pudesse ver a filha ali, como se aqueles caminhantes estivessem em outra dimensão e seus espectros passeassem entre os mundos.
Seu coração disparou e um chamado preso na garganta, sufocado pelo torpor da visão e ainda inerte pelos últimos momentos, fez com que ela se levantasse cambaleante. Sem pensar, ela correu até as figuras tentando alcançar o rosto da mãe. Os pés dela afundavam nas folhas secas, mas por mais que acelerasse, as figuras se afastavam como luzes fugidias se apagando. O manto da mãe cintilou uma última vez antes de se dissipar entre os outros mantos.
Seu coração foi tomado pela angústia que a envolveu como um abraço gélido. O tempo pesou sobre ela, implacável. Quanto tempo fazia desde a última vez que ouvira a voz da mãe? Quando foi a última vez que procurara saber onde estava sua mãe? O castelo a consumira de tal forma que o mundo além de suas paredes se tornou esquecimento.
E agora, no limiar entre o real e o irreal, Minerva sentia que algo estava terrivelmente errado. Ela caminhava pela floresta envolta em um silêncio que era quebrado apenas pelo sibilar do vento. Os galhos secos, em um vermelho-acinzentado e profundo, estendiam-se como ornamentos retorcidos contra o céu negro, formando um túnel de sombras e espectros que exibiam maçãs vermelhas e que sangravam um néctar viscoso. O ar era denso, carregado de umidade. Então, entre o chão das árvores, corpos de coelhos decepados e inertes juncavam o caminho e, por ali, ela passava desejando acordar.
A respiração dela se tornou ofegante ao ver humanoides erguidos sobre patas alongadas, observando-a. Seria aquela visão um delírio causado pelo vinho? Lágrimas escuras verteram dos olhos da bruxa, ela sentia em seu íntimo que aquilo era algo além de sua magia e o desespero tomou conta dela enquanto tomava partida do sonho lúcido, ela sabia que precisava acordar e retornar para si mesma.
Fechando os olhos ela respirou profundamente por três vezes, acalmando seus pensamentos e buscando a saída, então, Minerva acordou com um sobressalto. O peito subindo e descendo de forma descompassada, o corpo despencou do ar sob os lençóis fazendo-a arquejar de leve. O quarto estava mergulhado em sombras, e seus olhos ardiam, as escleras vermelhas pulsavam sangue. Ela sentia o gosto acre da inquietação na boca, como se a própria essência daquele pesadelo houvesse se impregnado nela.
A bruxa ergueu-se da cama, os pés descalços tocando o chão frio. O castelo parecia respirar em seu silêncio profundo, os corredores escuros se estendendo como veias. Minerva saiu, os passos ecoando suaves, mas carregados de pressentimento. Foi então que ela parou e ali, no meio do corredor, viu um coelho.
Os pelos eram negros como a noite sem lua, e os olhos, os olhos eram rubros, ardendo em uma luz maldita, refletindo o brilho de um chamado sobrenatural brilhantes como rubis ao sol. Ele não se movia, apenas a observava, imóvel, como se a esperasse. Minerva apertou os punhos, sentindo um arrepio lhe percorrer a espinha petrificada, estava claro que aquilo não tinha sido um sonho.

Minerva, uma bruxa de alma inquieta, carrega como fardo uma maldição perversa e encontra no Castelo Drácula um refúgio para sua incessante busca por conhecimento e poder. Entre vivências intensas e, por vezes, terríficas, ela confronta os espectros de seu passado enquanto desvenda os enigmas que o presente lhe impõe. A cada passo, aproxima-se de uma verdade arcana — e sente que sua maldição é a chave oculta desse segredo. Sua rapsódia é o confronto entre sua alma e o destino que lhe foi imposto, enquanto revela uma sensibilidade de essência rara, há muito tempo privada de se expressar. » Leia todos os capítulos.

Júlia Trevas
Júlia Graziela Pereira Trevas é uma escritora de 29 anos, natural de Campina Grande, Paraíba. Formada em Letras - Inglês pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), também atua como professora de inglês. Sua paixão pela escrita começou ainda na pré-adolescência, quando compunha pequenos versos. Mais tarde, ao ingressar na faculdade, aprofundou-se na literatura gótica, que hoje é uma de suas principais influências criativas. Uma curiosidade interessante é que... » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 15ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de abril de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
Uma monodia litúrgica bizarra atravessara nossas almas, tão mais que os tímpanos. A morte parecia habitar o derredor, as velas tremeluziam…