Séttimor
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
Minha cabeça dói exacerbadamente. Não sei por quantas horas dormi — só sei que gostaria de ter permanecido lá, mesmo que isso significasse a morte. Afinal, seria a morte ao lado de Sibila.
Nunca tivera um sonho como aquele, tão real: primeiro, aquele cheiro de lavanda infestando todo o local; depois, Lieran, aquele jovem portando uma chave dourada enorme, se dizendo guardião de um portal onírico. Mesmo imerso naquele mundo, algo em meu íntimo sussurrava que aquilo não era real — até Lieran surgir, segurando com sua mão esquerda uma chave dourada enorme, presa a um cordão grosso ao redor do pescoço.
Eu tinha uma simpatia silenciosa pelos canhotos — pareciam esquecidos pelo mundo, como produtos com um leve defeito de fabricação — assim como eu. Pois bem, até que ele girou a chave em uma espécie de fechadura invisível, a mão esquerda no ar.
Então, uma enorme porta se abriu. Do outro lado, um imenso campo tomado por uma relva verde e baixa. Ao cruzar a porta, olhei para as minhas mãos e já não eram enormes e esverdeadas, eram brancas e macias. Corri em busca de algo que espelhasse o meu reflexo, e Lieran prontamente me estendeu um espelho. Ao mirar o objeto, vi um rapaz de cabelos loiros e feições simetricamente perfeitas, lábios rosados e dentes alinhados e branquíssimos. Mas o olhar — esse eu reconheci — era o meu próprio reflexo. Eu não podia explicar, mas sabia que era eu mesmo! A cor dos meus olhos não mudara, continuavam sendo tristes e da cor âmbar, como se tivessem sido tomados por uma doença oculta. Eu sempre achara que meus olhos tristes eram ecos da morte, de onde eu nascera, já que eu era feito de partes de diversos cadáveres.
Lieran me explicou, então, que naquela dimensão era possível ter a própria aparência alterada pelo simples fruto de nossos desejos e também devido ao que o nosso interior refletia. Então ele me fez adentrar ainda mais. Caminhamos através da paisagem em silêncio até chegarmos à beira de um precipício. Então ele anunciou, como um anjo que guardava as sombras do meu coração saudoso, que traria ela:
— Eu sou Lieran, guardião do primeiro umbral de Somníria — um local além do tempo e do espaço, onde seres podem descansar da própria realidade ou mergulhar mais fundo nos próprios medos e pesadelos. Eu porto a chave para um portal: o sonho da pessoa com quem mais você precisa conversar agora.
Então me sentei ansioso, aguardando que ele a trouxesse. Quando eu a vi, tentei esboçar o sorriso mais genuíno de todos, como quem tenta esconder uma rachadura profunda com uma camada fina de verniz. Eu queria ser perfeito aos olhos dela. Pedi para que se sentasse e apreciasse a paisagem comigo, tentando manter a voz firme, apesar do coração descompassado. Ela caminhava com elegância silenciosa, envolta por um manto branco que cintilava sutilmente, adornado por bordados dourados e vermelhos em forma de dragões orientais — criaturas que pareciam mover-se a cada passo seu, como se vivos estivessem no tecido. Com um gesto calmo, ela retirou o manto e o dobrou com cuidado antes de se sentar ao meu lado, como se aquela cena merecesse respeito e solenidade.
Seus olhos, de um verde claro quase âmbar, refletiam algo que eu não saberia nomear: curiosidade, apreensão, talvez uma antiga solidão. Sua pele, tão branca quanto a luz filtrada por nuvens densas, parecia fria ao toque, mas transmitia uma serenidade perturbadora. Os cabelos castanhos, ondulados e presos com perfeição num penteado elaborado, emolduravam seu rosto com uma beleza sóbria. Pequenos brincos de pérola reluziam sob a luz suave do sonho. Quando ela falou — "Sinto que o conheço, porém nunca o vi em toda a minha vida..." — sua voz carregava um tom grave e suave; suas palavras derreteram minh’alma. O batom, um laranja pálido, parecia destoar levemente do restante, como um sopro de cor numa figura fantasmagórica. E, ainda assim, tudo nela era beleza para mim. Alta, esguia, o corpo quase reto, sem as curvas tão endeusadas por outros — para mim, era a imagem da perfeição. Uma perfeição não óbvia, que me fazia querer protegê-la do mundo — e de mim mesmo.
Ah, foi tão perfeito poder conversar com ela... eu nunca ouvira a sua voz, pois sempre a observei de longe. Era muito mais bonita de perto, muito além do que eu imaginara. Seu perfume, um bálsamo para a minha alma animalesca e solitária, que ansiava por aquelas notas frutadas com um fundo de canela, sempre acalmavam meus pensamentos conturbados. Agora, sentado à beira desse catre sujo e frio, cheirando à bebida, percebo que fora só um sonho, fruto do delírio e desespero que sinto após o seu inexplicável desaparecimento.
Ainda com a cabeça latejando, permaneço deitado por alguns minutos, tentando estender aquela sensação de paz que o sonho me proporcionou. Fecho os olhos, buscando o som da voz dela, tentando resgatar o aroma do perfume, mas tudo o que me resta agora é o gosto amargo do álcool e o frio que emana do chão de pedra sob minha cama improvisada. Sibila... seu nome ecoa em mim como uma oração que perdeu a fé, como um eco em um templo abandonado. Preciso encontrá-la — não importa como, nem o que custe. A ideia de tê-la visto em sonho só serviu para reacender em mim uma certeza: ela ainda está em algum lugar, e eu não descansarei até encontrá-la.
A ideia me pareceu insana à primeira vista, mas foi se assentando na minha mente como um sussurro cada vez mais convincente. Forjar documentos. Eu sabia que, se quisesse entrar na antiga casa de Viktor Frankenstein — patrimônio agora sob custódia do Estado prussiano —, precisaria de uma justificativa legal forte. Bastaria alegar ser seu filho ilegítimo, fruto de um relacionamento secreto mantido nos anos de juventude, antes de sua ascensão como referência na comunidade científica internacional. Para isso, bastou uma combinação precisa de papéis envelhecidos artificialmente, um diário falso com entradas forjadas sobre uma suposta mãe desconhecida, e uma certidão de nascimento modificada. Com o apoio de um velho conhecido que devia favores e que conhecia os atalhos do sistema burocrático da Prússia, consegui o suficiente para enganar as autoridades locais. Ninguém ousaria duvidar de um documento bem selado, ainda mais quando carregava o nome de Viktor Frankenstein.
Após ludibriar as autoridades locais e portando as chaves do casarão onde Viktor escondia sua figura torpe, dirigi-me para lá sem demora. A chave girou com dificuldade na fechadura enferrujada, como se a própria casa resistisse à ideia de ser violada. Ao empurrar a porta, um rangido grave ecoou pelos corredores escuros, trazendo à tona o cheiro penetrante de formol que eu sempre sentira do lado de fora, mas que era imperceptível por aqueles que não eram iguais a mim.
Adentrei mais e mais os cômodos da casa. No primeiro e no segundo andar não encontrei nada que me levasse até ela. Visitei o que provavelmente fora o seu quarto e não encontrei nada relevante. Parecia que ela havia partido com muita pressa, pois não levara seus pertences. A escova de cabelo ainda repousava sobre a penteadeira; fios castanhos brilhavam sob a luz pálida que penetrava o recinto. O frasco de perfume repousava ao lado da escova. Eu o abri e borrifei alguns jatos no ar, enlevado pelo momento mágico que era estar onde ela vivera anteriormente. Me flagrei imaginando que tipo de relação eles tinham. Mentor e aluna? Pai e filha? Amantes? Captor e refém?
Será que Sibila e Viktor eram cúmplices, ou será que ela era apenas uma vítima daquele cientista obcecado por suas próprias ambições? O que importa isso agora, já que procuro ecos de alguém que já partiu... Não, ela não está morta, não posso aceitar isso. Tenho que encontrá-la de alguma forma. Os armários estavam cheios de roupas femininas, mas nenhuma eu a vira usando. Será que eram os vestidos das vítimas que ela desovava no rio? A cama era de solteiro, tinha uma fronha cor de rosa que eu decidi levar comigo. Ainda conserva o odor de sua pele misturado à deliciosa fragrância do seu humilde perfume.
Após procurar pelos dois andares em busca de pistas e sem sucesso, decidi olhar o porão. Desci as escadas de pedra com cuidado; uma espécie de suor tomava as paredes. O ar condensara-se, pois ali era mais quente do que o frio do inverno que tomava o exterior da casa. Não havia janelas no porão, o cenário perfeito para esconder as atrocidades que Viktor fazia ali. Um vazio pesava em meu estômago. Era engraçado pensar que, apesar de ser uma criação, eu me assemelho em muitas coisas aos humanos — sentir medo era uma delas. Que segredos sórdidos eu descobriria naquele local?
Comecei por vasculhar todas as gavetas de uma escrivaninha — eram seis no total. A última estava emperrada, mas não fora um grande empecilho para mim, já que eu sempre fui mais forte do que a maioria dos humanos. Após abri-la, o seu conteúdo revelou um caderninho de capa de couro marrom surrado, parecia ter sido extremamente manuseado. O seu interior trazia anotações e mais anotações sobre anatomia humana, alquimia e estudos sobre o que Viktor nomeava de “Ciência Oculta”. Uma frase anotada na contracapa me chamou a atenção: “testes com tecido neural feminino mais recente apresentaram reações promissoras. A transferência deve ocorrer antes do segundo dia. Ainda creio que o corpo dela possa recebê-la.”
Além do travesseiro de Sibila, decidi levar aquele caderno comigo. Folheando-o, percebi que da metade para frente o cientista começara a escrever em uma língua desconhecida para mim. Havia glifos e símbolos estranhos anotados nas margens. Em uma das páginas ele desenhara um castelo à luz da lua. Ao longe, ainda nas proximidades do castelo, ele também rascunhara o que parecia ser uma vila. Embaixo estava escrita a palavra Séttimor. Um lugar? Um código? Por que esse nome me dá arrepios mesmo sem eu saber por quê? Guardei o caderno em meu bolso. Poderia voltar a examiná-lo mais tarde, quem sabe descobrir que língua era aquela.
No laboratório havia muitos frascos, alguns com cores fortes, como vermelho-sangue e azul-petróleo. Outros, pálidos, com líquidos espessos que lembravam leite coalhado. O ambiente estava estranhamente asseado. Passei a mão por algumas bancadas de trabalho — não havia pó... a sensação de esterilidade era pungente. O cheiro de formol era extremamente intenso, fazia minhas narinas e olhos arderem. Passeei em frente a alguns frascos. Muitos conservavam partes de animais em formol. Mas, à medida que caminhava, a visão se tornava mais opressora ainda.
Havia cerca de trinta vidros, todos com etiquetas de nomes de mulheres: Eleanor, Ema, Gema, Ava, Rose... De quem eram todos aqueles nomes? Tomado por uma estranha compaixão repentina, passei as pontas dos dedos por cada rótulo, desconfiado de que aquilo era o mais próximo de uma lápide que aquelas almas femininas teriam direito. Quantas? Quantas vidas ele apagou para cumprir essa obsessão? E Sibila... onde entra nisso tudo? Todos estavam vazios. O que será que ele planejava guardar ali? Ou será que Sibila ocultara o conteúdo antes de desaparecer? O que Viktor estava tentando fazer?
Continuando minha busca por pistas que me levassem até o paradeiro de Sibila, tateei por cima de uma prateleira com mais substâncias para experimentos. Encontrei alguns papéis amarelados com desenhos dele. Eram estudos de anatomia feminina, continham infindáveis anotações e respingos de sangue seco por todos os papéis, mas, ao contrário do caderno, tudo estava compreensível. Parece que ele estava tentando recriar o meu experimento, mas, desta vez, ao invés de partes de cadáveres, ele precisava encontrar uma vítima que recém tivera perdido a vida — algo muito difícil de conseguir de forma natural... Céus! Viktor, o que tramava? Qual era a natureza da relação deles? A julgar pelas diversas vezes que eu observara Sibila jogando sacos nos rios madrugada afora, os experimentos dele não iam nada bem, mas ele estava obcecado em obter sucesso, visto que não tivera escrúpulos nem respeito perante a vida.
Em uma das paredes do laboratório havia um retrato de uma mulher cujo semblante eu conheci bem — era a falecida esposa do velho cientista. Ela tinha olhos e cabelos pretos, pele extremamente clara, uma expressão preocupada e séria, como se estivesse assistindo a um momento solene. Retirei o retrato da parede. Atrás dele algumas palavras haviam sido rabiscadas com caneta tinteiro, em uma letra elegante:
“Quero que guarde esse presente como recordação do amor que sinto por você, Viktor. Faça somente isso, após a minha partida. Não se prenda a mim, viva a sua vida em toda a sua plenitude. Quero saber das suas aventuras quando me encontrares no além-vida!
Elizabeth Frankenstein.”
Ao que parece, Elizabeth sabia das intenções de seu esposo após a sua morte. Acho que ela foi uma grande mulher. Recoloquei o quadro na parede. Quando já estava me retirando daquele lugar triste e mórbido, pensando que já tinha vasculhado tudo — ao menos o suficiente para aquele dia, pois eu pretendia fazer mais buscas na casa que agora me pertencia —, o retrato que eu acabara de recolocar caíra no chão.
Ao me abaixar para juntá-lo, o caderno de Viktor escorregou do meu bolso e, ao cair, revelou uma folha rasgada e rabiscada com uma letra cursiva diferente da de Viktor. Nela estavam escritas as seguintes palavras: “...eu nunca quis participar daquilo, Viktor. Não era isso que prometemos. Eu tentei ajudar, mas agora... os olhos delas me perseguem.” Desconfio que esse papel é fragmento de algo que Sibila escrevera para Viktor.
O que será que prometeram um ao outro? Que tipo de relação doentia eles mantinham? Séttimor... esse nome ecoava em minha mente como um prenúncio. Algo me dizia que minha jornada estava longe do fim. E, por mais que abominasse o que Viktor fizera, não podia ignorar o que agora crescia em meu peito. Viktor, agora, não me parecia ser tão moralmente errado. Assim como ele, eu desejo ardentemente algo, reencontrá-la, e... sim, eu mataria por ela.

Aryane Braun
Aryane Braun é curitibana por nascimento, amor e dor. Formou-se em Letras pela UFPR e possui duas graduações na área da educação. Atualmente, trabalha em uma biblioteca de um colégio público em Curitiba e adora o que faz, pois ama o ambiente que os locais de ensino proporcionam. Afinal, que lugar melhor para trabalhar do que uma biblioteca para alguém que sempre gostou de literatura, antes mesmo de compreender o que ela representa em seu intelecto?... » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 15ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de abril de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
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