Último Sono

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Era por volta das onze horas da noite. Eu estava me preparando para dormir; já havia feito meus rituais noturnos, como ir ao banheiro, escovar os dentes, trancar as portas, lavar algumas louças pendentes do jantar, encher minha moringa de barro e colocá-la ao lado direito da minha cama, sobre a mesinha de canto feita de carvalho, onde fica um antigo exemplar de capa dura da minha obra favorita, Morro dos Ventos Uivantes, uma das doces lembranças que tento preservar nesta casa repleta de fantasmas silenciosos. 

Deveria ter me acostumado com a solidão; afinal, faz tantos anos que convivo com ela, mas seu prazer é torturar-me dia e noite. As paredes desta casa estão fartas de ouvir minhas lamúrias. A noite ia ser longa, meu travesseiro é meu confidente, assim como você foi um dia. O lado em que você dormia permanece intacto, como se algum dia você pudesse voltar. Eu sei, é bobagem alimentar tal devaneio; preciso aceitar o fato de que nunca mais verei teu sorriso acolhedor, teu caloroso abraço e teu plácido olhar quando dizia que me amava. De nada adianta lamentar-se; não há como reparar o mal que tanto lhe causei. Se existir alguma divindade neste infinito cosmo, ela me fará dormir eternamente. 

A incômoda e brilhante luz do sol rastejou pelas frestas da persiana, sempre que a brisa matinal soprava, atingindo meus sonolentos olhos. Não sei o que é mais doloroso: não poder ouvir teu amável "boa noite" ou teu caloroso "bom dia". Observo, com melancolia nos olhos, o doce tear das aranhas armadeiras; elas tecem cada fio sem preocupação. Bocejo e, em seguida, me levanto. 

Enquanto tomo meu café, meu celular toca; era um número que não conheço. Penso ser uma daquelas ligações indesejáveis de telemarketing que recebemos durante o dia, mas decido atender. A princípio, o silêncio permanece, até que escuto um melancólico "alô". Era uma voz feminina, que soou um tanto trêmula. Ela me contou o motivo da ligação e disse que conseguiu meu número por indicação de um amigo. (De fato, já havia feito alguns trabalhos como fotógrafo — casamentos, batizados e alguns ensaios —, mas nada se comparava a isso.) O trabalho em questão era um registro post-mortem. 

Foi algo tão inesperado que fiquei desconcertado, mas prossegui com a conversa e disse, com pesar, que sentia muito por sua perda, mas, infelizmente, não seria capaz de realizar o trabalho. Ouvi a dor em sua respiração. Ela entendeu e, aos prantos, desligou. Encontrei-me extasiado, contemplando a fumaça do café evaporando no ar. Aquela conversa me fez lembrar de um seminário que participei há alguns anos, onde foi abordado um tema que, na época, me soou um tanto mórbido. O seminário em questão foi sobre os diferentes campos da fotografia. Eu ainda estava engatinhando nesse maravilhoso mundo e sentei nas cadeiras do meio, empolgado, pois, entre os temas, havia um em especial que causava uma estranha curiosidade. 

A voz rouca do palestrante anunciou o tema, e lembro dos avisos de que seria um tema sensível. Ele apagou as luzes, ligou o retroprojetor e exibiu uma obscura galeria. Explicou que esse tipo de fotografia trata-se de retratos post-mortem, um registro fotográfico de um ente querido após o falecimento. Ele mencionou que esse tipo de fotografia foi bastante difundido na era vitoriana, mas também na Europa e na África, e era dividida em categorias, como “O Último Sono” (como o próprio nome diz, a fotografia era tirada com o cadáver numa cama, algumas decoradas, outras não); outra categoria era “A Última Presença Social” (a fotografia era realizada com os amigos mais próximos e familiares, que ficavam em volta do cadáver, como o último evento em honra ao morto); e havia também a categoria chamada “Mãe e Filha” (em sua maioria, as filhas ou filhos eram natimortos, e geralmente as fotos eram das respectivas mães abraçadas com suas crianças).  

Ele bebeu água, enxugou a testa e prosseguiu, dizendo que, diferente da pintura, o daguerreótipo tornou mais acessível ter esse registro fotográfico de um familiar querido. Para nossa surpresa, os organizadores do seminário trouxeram dois exemplares reais, cedidos gentilmente para serem exibidos a nós. A fotografia estava envolta por um sólido compartimento de acrílico; nos deram luvas para manuseá-la, e posso te dizer com franqueza: assim que a toquei, senti uma terrível angústia. Eu não conseguia encarar a fotografia. A foto em questão era o “Sono Eterno”. Era desconfortante encarar aquele semblante calmo, com traços angelicais e, ao mesmo tempo, um tanto sombrio, o que me causou arrepios. Olhei rapidamente e a devolvi, pois não conseguia ver aquela imagem por muito tempo. Mas a verdade é que aquela fotografia permanece viva em minha memória; aqueles olhos fechados me assombram até hoje. 

Texto publicado no Desafio Sombrio 2024 do Castelo Drácula. Em outubro de 2024. → Ler o desafio completo

 
 

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