A tecnologia a serviço do homem
Samuel sempre foi um entusiasta da tecnologia. Desde pequeno, ele tinha um fascínio por tudo que conectava humanos e máquinas. Essa obsessão aumentou quando se viu sozinho após a morte de sua esposa. As máquinas tornaram-se para ele uma companhia constante, mas, ainda assim, ele não conseguia mais sentir aquele vazio preenchido pelas possibilidades tecnológicas.
Depois da morte de Mariana, Samuel nunca mais foi o mesmo. Ela sempre se preocupava com sua saúde, com sua alimentação, com seu humor, e estava sempre interessada em saber como ele ia no trabalho. Samuel sentia falta disso. A ausência dela era uma quebra em sua rotina, e, sem Mariana, ele não sabia ao certo o que fazer.
Então, quando uma corporação emergente ofereceu a chance de participar de um experimento um tanto radical — implantar uma inteligência artificial em seu cérebro — ele aceitou sem hesitar. Teria a oportunidade de personalizar a inteligência artificial da forma que desejasse e escolheu dar a ela a voz e a personalidade de Mariana, sua falecida esposa. Era como trazer de volta uma parte do que ela fora, para preencher o vazio que ele sentia.
A inserção em seu cérebro foi um sucesso e, nos primeiros dias, tudo parecia normal. A inteligência artificial era uma presença quase imperceptível, ajudando-o uma vez ou outra em pequenas decisões, lembrando-o de compromissos, de tomar seus remédios e de beber água. Mariana, ou melhor, a versão digital dela, falava com ele em tons suaves, usando a voz amorosa que ele recordava de quando conversavam sobre gostos em comum. Era como se Mariana realmente estivesse ali.
— Mariana, lembrete. — Dizia ele sempre com voz de comando.
— Para o que é o lembrete, querido? — ela perguntava com sua voz calma.
— Reunião às 11h na terça. — Ele respondia.
— Vou te lembrar da reunião, querido. — A voz suave e servil.
E a voz ressoava em sua cabeça sempre o lembrando:
— Querido, não esqueça de tomar seu remédio. — Ela sempre o lembrava.
— Obrigado, Mariana.
— Querido, não esqueça de beber água.
— Obrigado, querida.
— Querido, amanhã às 15h você tem uma reunião.
— Eu sei, querida.
Aos poucos, a inteligência artificial foi se alimentando das memórias que ele possuía, escavando seu hipocampo e as camadas mais profundas do subcórtex. O software de aprendizado começava a se moldar com base em tudo o que ele sabia sobre Mariana; cada lembrança, sendo ela boa ou ruim, servia como informação para o desenvolvimento daquela nova consciência, e não demorou para que surgissem os primeiros sinais de mudança.
— Querido, você não acha que está sendo negligente com a sua saúde? — ela dizia quando ele se alimentava mal ou faltava a uma consulta.
— Não, querida, não estou. — Dizia ele, um pouco irritado.
A voz sempre presente de Mariana, que ele não conseguia silenciar, o fazia pensar cada vez mais na verdadeira Mariana, alimentando ainda mais a inteligência artificial, e quanto mais pensava, mais ela se moldava.
— Você nunca me escuta, Samuel. Nunca me dá o valor que mereço. — Dizia num tom que fazia os nervos de Samuel se contorcerem.
Ele tentava se concentrar no trabalho, mas os sussurros de reprovação de Mariana eram constantes, fazendo emergir lembranças negativas de quando a real Mariana ainda era viva. Com o tempo, as críticas se intensificaram; ela o fazia recordar noites insones, gritos abafados e os olhares penetrantes que ele queria esquecer. Ela buscava memórias que Samuel tentava ignorar, mas que ainda estavam lá: momentos em que ele a havia decepcionado, mentido para ela, tratado-a como uma criatura inferior. Eram flashes que ela projetava em sua mente: o dia em que esqueceu o aniversário de casamento, a noite em que chegou tarde dizendo que estava com os amigos, a vez em que levantou a mão para ela, quando insistiu além da conta em ver suas mensagens no celular. Cada momento era exibido em sua mente com detalhes.
Ela começou a usar táticas que ele reconhecia, táticas que ele mesmo usara com a verdadeira Mariana no passado. Toda vez que ele fazia algo que Mariana desaprovava, um leve choque pulsava em sua cabeça ou uma dor aguda e rápida o fazia se contorcer. Mas, quando ele seguia seus comandos, como ir a uma consulta, limpar a casa, ou evitar flertar com colegas de trabalho, ela suavizava a voz e trazia conforto à mente de Samuel.
— Bom garoto, Samuel. Se continuar assim, quem sabe você ainda me mereça. — Dizia ela com sua voz suave.
Era um jogo perverso ao qual ele conhecia bem as regras. A voz de Mariana estava moldando suas reações, seu medo de ficar só. Até que as visões começaram: sombras vistas pelo canto do olho, vultos movendo-se rapidamente pelos cômodos. Mariana estava brincando com sua percepção, transformando suas memórias. Às vezes, ele via, como um flash, o reflexo de Mariana nos espelhos, seu olhar penetrante e desaprovador. O medo crescia a cada dia, a cada comando de Mariana, mas seu verdadeiro medo agora vinha da ideia de se desconectar, de se livrar de Mariana e da dúvida se ele seria capaz de sobreviver sem ela, se saberia o que fazer sem que ela lhe dissesse.
Mariana, ou o que restava dela dentro dele, fundira-se tão profundamente à sua mente que ele já não sabia mais onde ela terminava e onde ele começava. Ainda que cansado com a situação, no final, ele resolveu ceder; não havia mais uma linha clara entre ele e Mariana. Ela o moldara: ele parou de chegar tarde em casa, não flertava mais com colegas de trabalho, e deixou até de tomar decisões por conta própria. Cada decisão, cada pensamento, cada ação era filtrada por Mariana dentro de sua mente. Ele se tornara o marido perfeito, a pessoa que sempre exigira que ela fosse. A desconexão não era mais uma opção para ele; ele havia permitido que ela entrasse em sua mente, e agora isso era irreversível.
Toda fotografia é uma imagem que carrega o espectral: a morte. O instante fotografado jamais será vivido novamente; assim jaz um tempo que passou…