O que os olhos não vêm, o coração [em cera] não sente...
Na cidade pulsante de Nova Arcadia, onde o neon iluminava o abismo da decadência humana, Rhys, um pintor exilado, vagueava entre a vida e a morte, sua essência dilacerada pela perda e pela obsessão. Em seu estúdio, um espaço escuro e claustrofóbico, ele transformava a dor em arte, mas a arte que criava era uma celebração grotesca do horror.
Rhys não apenas pintava; ele coletava corações.
A cada batida de seu coração mecânico, uma vida era arrancada. Ele retirava os olhos de suas vítimas, aqueles orbes que uma vez brilharam com esperanças e medos, e os inseria nos corações, preenchendo-os com cera derretida.
Em frascos de vidro, os olhos se tornavam prisioneiros, testemunhas silenciosas de sua obsessão. Era um ato de controle, uma maneira de capturar a essência efêmera da vida e do sofrimento.
Ele mesmo era um enigma, um corpo sem alma, com um coração que pulsava ao ritmo de engrenagens frias.
Os dias se transformavam em um borrão de sombras e cores, enquanto ele buscava a beleza em sua própria degeneração.
Sem olhos reais, Rhys habitava um mundo distorcido, onde a visão se tornava uma lembrança distante, substituída por uma percepção tortuosa da realidade.
Suas telas eram um reflexo de sua psique fragmentada.
Ele mergulhava em uma paleta de vermelhos e negros, suas pinceladas violentas expressando a luta interna entre a vida e a morte, amor e dor.
Cada quadro era uma narrativa visceral, uma explosão de emoções que desafiava os limites do que era aceitável.
Rhys acreditava que, ao retratar o sofrimento, poderia, de alguma forma, entender sua própria dor.
A cidade, repleta de sombras e ecos, tornava-se sua inspiração. Cada grito distante, cada lamento sussurrado nas ruas, alimentava sua criatividade, transformando-o em um predador de almas.
Mas, à medida que coletava corações, a linha entre a arte e a vida se tornava cada vez mais tênue.
Rhys se via não apenas como artista, mas como juiz e carrasco, preso em um ciclo vicioso que o consumia.
Em uma noite fatídica, enquanto a chuva caía como um lamento, Rhys encontrou uma jovem artista que desenhava nas ruas, sua energia vibrante contrastando com a escuridão que o cercava. Seus olhos brilhavam com uma intensidade que o desarmou, despertando algo há muito adormecido dentro dele.
Ao observá-la, ele sentiu uma faísca de humanidade, um desejo de conexão que não podia ignorar. Ele hesitou.
A tentação de capturá-la, de transformá-la em mais uma de suas obras, lutava contra o impulso de se abrir para ela.
Rhys percebeu que, em vez de extrair a essência de mais uma vida, ele desejava entender a beleza do que era ser humano.
Em sua mente, o dilema se intensificava, uma batalha entre o instinto predatório e a necessidade de se redimir.
Naquela noite, em meio a um turbilhão de sentimentos, Rhys decidiu se afastar do horror que o definia...
Ele começou a pintar a jovem, mas não como um objeto de desejo; ele a retratou como um símbolo de esperança.
Cada pincelada era um esforço para resgatar sua própria alma, uma busca por redenção em meio à sua perdição.
Com o tempo, as telas de Rhys passaram a contar uma nova história, uma narrativa de luta e amor, onde os olhos que uma vez desejou capturar eram agora um convite à empatia.
Ele percebeu que, embora seu coração fosse mecânico, ainda existia uma centelha de vida dentro dele, uma prova de que a arte poderia ser um meio de cura.
No estúdio de Rhys, a luz fraca filtrava-se através da neblina, revelando um mundo onde o grotesco dançava com a beleza.
As paredes estavam cobertas de quadros, cada um mais intenso que o anterior e, diante de cada tela, a dor e a vida se entrelaçavam em um abraço mortal.
Os potes de vidro, alinhados como sentinelas em uma prateleira empoeirada, continham não apenas corações, mas a essência de vidas perdidas. Dentro de cada frasco, a cera espessa envolvia os corações e olhos, criando uma superfície viscosa e reluzente que refletia a luz em fragmentos de cor. O que os olhos não veem, o coração não sente...
Era como se, ao capturar o olhar de suas vítimas, Rhys tivesse aprisionado também a alma que pulsava dentro delas.
Aqueles olhos, embora imóveis, pareciam vibrar com a energia das memórias, como ecos distantes de risos, lágrimas e sussurros.
Os quadros, por sua vez, eram um umbral entre a vida e a morte, uma passagem onde a dor se transformava em beleza.
Rhys mergulhava seu pincel nas cores mais sombrias — o carmim profundo do sangue e o negro da noite —, e cada traço se tornava um grito silencioso.
As formas que surgiam eram distorcidas, mas, em sua grotesca deformidade, emanavam uma vitalidade palpável.
Os rostos que surgiam nas telas refletiam não apenas sofrimento, mas uma luta visceral pela existência, um desejo ardente de serem vistos, de serem compreendidos.
Cada obra era uma ode à vida que brotava do horror.
Nos detalhes mais sutis, as sombras pareciam pulsar...
Texto publicado no Desafio Sombrio 2024 do Castelo Drácula. Em outubro de 2024. → Ler o desafio completo
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