Hermético
Tudo começou com uma reminiscência. Caminhando pela rua, por alguma calçada que serviu de gatilho, voltei vinte anos atrás. Tempo bom aquele em que brincava, em que o dia de amanhã não me preocupava. Pulando como simples criança, lembrei da brincadeira de saltar linhas, evitando pisar nas demarcações que formavam ângulos nas lajotas da cidade. Por algum motivo incontornável, levei a sério a missão que retornava: não podia mais calçar as retas.
Assim voltei para casa, atento a cada passo, sem deixar nem mesmo um centímetro da ponta dos pés avançar sobre as cruzadas formas, podendo apenas me deslocar pousando por inteiro a planta dos pés nas plataformas lisas.
Subir as escadas do condomínio me impôs igual atitude — desviar de toda borda; porém, algo me afligiu: pular de dois em dois degraus mostrou-se nova ordem. A praxe era me adaptar a essa súbita necessidade, sem duvidar nem pôr em descrédito a seriedade do que agora me controlava. Rapidamente, essa maneira de subir os degraus me levou à porta de casa, onde me pus a pensar: até onde irá isso?
Lá dentro, agora automatizado meu comportamento de pisar no interior das formas geométricas do piso, forcejando até ficar na ponta dos pés em alguns momentos, comecei a organizar minhas coisas. Mochilas, pratos, livros, canetas... Tudo à minha frente foi realocado de maneira a parecer em ordem, numa sequência lógica para mim e para os meus olhos. Satisfeito com a sistematização dos itens — que avançara para um jeito de deixar as coisas verticais o mais verticalmente possível e as horizontais o mais horizontalmente possível —, sentei-me para refletir, no meio do sofá.
Parado, mas consciente, observei a disposição de minha casa e até onde haviam chegado as últimas consequências de uma brincadeira levada a sério. Aquilo era, no fim das contas, nada mais do que o que meu dia a dia solicitava: a padronização do ser, a ordem social ampliada ao arranjo individual dos objetos. Faltava, para uma completa satisfação do mundo e de mim mesmo, alcançar agora a ordenação microscópica do organismo, daquele universo unicamente alcançável por minha ação...
Sem pensar duas vezes — o que já era impossível — tratei de fechar meus olhos para o mundo, seguido de minha respiração, buscando uma completa unidade...
Texto publicado no Desafio Sombrio 2024 do Castelo Drácula. Em outubro de 2024. → Ler o desafio completo
Wallace Azambuja vive em Porto Alegre e estuda Letras na UFRGS. Sua paixão por sonetos é intensa e sua maior produção literária atual está voltada à escrita deste clássico formato poético. Atraído pelo mistério e profundidade da Literatura Gótica, o autor participou do Desafio Sombrio 2023, onde mostrou…
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