Uma entrevista do “caso Mmoggun”
Entrevistador: Qual era sua relação com a vítima?
Amigo da vítima: Nos criamos juntos. Amigos de rua, de infância…
Entrevistador: Estavam sempre juntos?
Amigo da vítima: Lógico que não. Conversávamos, trocávamos mensagens, dia a dia…
Entrevistador: No dia do crime, estiveram juntos?
Amigo da vítima: Pela manhã eu o vi. Estava bastante abatido.
Entrevistador: Abatido? Como assim?
Amigo da vítima: Não parecia bem. Tinha olheiras, caminhava devagar, parecia perdido…
Entrevistador: Interessante… Chegou a conversar com ele?
Amigo da vítima: Interessante nada… Ele estava visivelmente triste, tenso, alguma coisa já anunciava algo errado… E não, não conversamos. Quando me aproximei e tentei falar mais alto, vi que ele não me escutava. Ele pareceu se assustar com a minha presença, começando até a caminhar mais rápido.
Entrevistador: E para onde ele foi?
Amigo da vítima: Não sei dizer, apenas vi quando partiu apressado, arrastando e tropeçando os pés na calçada. Ouvi ele dizer algo, mas não entendi.
Entrevistador: Ele conversava contigo?
Amigo da vítima: Não diretamente. Parecia, na verdade, que sussurrava para alguém ao lado… Diria até que conversava com algo invisível… É estranho dizer isso, mas foi o que vi.
Entrevistador: Bastante estranho… Então quer dizer que não viu qual era o destino dele após isso?
Amigo da vítima: Não… Só sei que ele seguiu pela calçada e dobrou a esquina. Parecia saber aonde ia, pois erguia de maneira determinada o olhar na direção que seguia.
Entrevistador: Depois disso, você só o viu em casa, quando descobriram a tragédia?
Amigo da vítima: Sim… Fui chamado pelos policiais que chegaram. Queriam saber se eu ouvira algo…
Entrevistador: E você?
Amigo da vítima: Disse que não, que somente mais cedo havia presenciado aquele estranho comportamento dele, saindo pela rua e não respondendo ao meu chamado.
Entrevistador: Os policiais não perguntaram mais nada?
Amigo da vítima: Eu disse a eles o que sabia; falei um pouco das últimas vezes que tivemos contato…
Entrevistador: Se importa de me dizer qual foi seu relato?
Amigo da vítima: Não… Acho que quanto mais pessoas souberem, melhor será para uma futura investigação… até para a prevenção de outros casos…
Entrevistador: Prevenção do quê?
Amigo da vítima: Do crime! Pois o que aconteceu com meu amigo foi um crime.
Entrevistador: Quais os motivos para dizer isso, com tanta convicção?
Amigo da vítima: Meu amigo foi vítima de alguém que conheceu pela internet. Semanas antes do ocorrido, ele me falava que tinha finalmente tido sucesso no app de encontros. Não me dizia muito sobre quem era ou como se dava a interação; tudo o que me revelava era um enorme otimismo e algumas provas de que, dessa vez, daria certo…
Entrevistador: Que provas eram essas?
Amigo da vítima: Ele me dizia que estava recebendo presentes, alguns mimos da pessoa com quem interagia. Não me mostrou nenhum deles, pois, segundo ele, essa pessoa do outro lado solicitava total privacidade; era uma espécie de trato: ele não deveria falar para mais ninguém sobre o que recebia…
Entrevistador: Um tanto ingênuo seu amigo… Então nenhum desses presentes ele exibiu para você?
Amigo da vítima: Não. Tudo o que consegui dele foi saber como os recebia.
Entrevistador: E como era?
Amigo da vítima: Era uma espécie de código. Na calada da noite, quando a rua estivesse vazia, sem barulho algum, essa pessoa dizia para ele aguardar do lado de dentro da casa, apenas colocando o ouvido na porta para ouvir sua chegada. Os horários eram quase sempre perto da meia-noite... Por isso as olheiras, penso, e o cansaço com que o via nos últimos dias...
Entrevistador: E a chegada dessa pessoa era acompanhada de algo? Não havia interação entre eles?
Amigo da vítima: Não. Meu amigo disse que ouvia apenas os passos vindos de fora, depois uma espécie de palavreado que até agora não consigo rememorar: gugum, logum, nogum… sempre terminava com esse "um"...
Entrevistador: Gugum, nogum... O que isso significa?
Amigo da vítima: Não sei. Ele também não sabia dizer. Os presentes também, um completo mistério.
Entrevistador: Quais eram?
Amigo da vítima: Ele não me dizia. Era proibido, estava completamente de acordo com o sigilo solicitado por quem os trazia...
Entrevistador: Entendo... Aí você só o viu na rua na véspera do crime?
Amigo da vítima: Não, antes eu ainda tinha contato com ele, mas isso foi rareando cada vez mais. Acho — tenho convicção — que as sucessivas madrugadas à espera desses presentes, dessa visita misteriosa, deixaram meu amigo cansado e extremamente alucinado.
Entrevistador: Ele pareceu piorar? Ficou doente?
Amigo da vítima: No mínimo. Suas respostas não eram mais objetivas; ele me respondia com desdém. Se eu perguntava como estava, ou como ia sua relação com aquela pessoa do app, ele me grunhia algo, quase parecido com aqueles nomes que sussurravam do lado de fora da porta...
Entrevistador: Aquele "nhugum, nogum"...?
Amigo da vítima: Isso... Chego a imaginar que possa ter sido um feitiço.
Entrevistador: Então você acha que seu amigo foi vítima dessa pessoa com quem interagia pelo app, que lhe trazia presentes altas horas da noite e que, de alguma forma, acabou entrando em sua casa e fazendo aquilo com ele?
Amigo da vítima: É minha única suspeita. Ele não tinha inimigos, dívidas, nada que pudesse ter levado alguém a invadir sua casa e o deformar daquele modo bizarro. Você viu as imagens?
Entrevistador: Sim. O crime foi tão divulgado que as imagens chegaram até mim. Ele parecia simplesmente sem olhos, nariz, boca. Sua expressão facial, por completo, havia sido removida, deixando o rosto liso, como se uma cicatrização assim fosse possível...
Amigo da vítima: Meu amigo não merecia isso.
Entrevistador: Meus pêsames.
Amigo da vítima: Agora é torcer para que descubram algo, que cheguem à identidade dessa criminosa, que tirou a vida dele e... fez aquilo com ele.
Entrevistador: Vamos torcer. Irei tentar contatar mais gente envolvida nas investigações. Me diga se lembrar de algo que possa ter passado em branco durante a entrevista.
Amigo da vítima: Direi, sim. Espero que eu não seja a próxima vítima. Ando escutando vozes pela casa à noite... e juro que parecem as mesmas que saíam da boca do meu amigo, naquele estado abatido dele.
Entrevistador: O nogum... logum?
Amigo da vítima: Isso, nogum... mogun... acho que era isso…
Entrevistador: Bizarro... Tome cuidado!
Amigo da vítima: Pode deixar.
Toda fotografia é uma imagem que carrega o espectral: a morte. O instante fotografado jamais será vivido novamente; assim jaz um tempo que passou…