Acácia
Prólogo
A cama estava sem o lençol. O espelho estava quebrado. Na cômoda havia poucos pertences: apenas um hábito limpo, algumas roupas íntimas e uma Bíblia. Lá fora, um sabiá assoviava, como se nada demais tivesse ocorrido. Na parede, apenas os indícios de que um grande crucifixo estivera pendurado ali por muito tempo, pois o sol desbotara a tinta da parede ao redor.
Irmã Acácia estava de joelhos num dos cantos do quarto. Havia muito sangue, mas o sangramento já parara, e ninguém soube explicar como o cadáver permanecera daquele jeito. Assim que ela perdesse a consciência, o que não deve ter demorado muito, seu corpo deveria ter desabado para frente ou para um dos lados. Mas parara intacto: uma das mãos segurava firmemente um caco de espelho enorme; ele estava introduzido até a metade em seu ventre avolumado. Ao que parecia, ela tinha golpeado a própria barriga várias vezes e sangrado até a morte. Outro detalhe inexplicável era que ela olhava para cima; os olhos abertos tinham uma expressão de alegria e alívio.
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Agora
Irmã Acácia estava sentada em uma das últimas fileiras de cadeiras da capela. Eram cadeiras de plástico simples, bem diferentes dos pesados bancos de madeira de algumas igrejas que ela tinha frequentado. Ela já não suportava mais, cruzava e descruzava as pernas impaciente.
Irmã Acácia era uma noviça; portanto, habitava o convento havia três anos e meio. Já estava muito acostumada com a rotina do convento, porém. Havia dias em que as obrigações que eram impostas a todas eram difíceis de serem cem por cento cumpridas. Era isso que a perturbava naquele exato momento: achava que conseguiria curar-se pela fé; no entanto, por mais que seguisse todos os ritos e costumes da congregação, não conseguia se sentir plenamente liberta do seu vício.
Já havia feito grandes avanços, com muita perseverança, longos períodos de recolhimento, reflexão e busca de comunhão com Deus. Conseguira deixar o seu passado para trás, um passado que não fizera questão de esconder das irmãs; porém, não gostava de falar sobre, de modo que somente a madre superiora Maranhão sabia dessa mácula em seu passado. Acácia achava isso muito bom, pois, apesar de todas as irmãs serem pessoas muito boas, não se sentia à vontade para revelar que fugira de onde morava porque estava jurada de morte por outra mulher. Ela havia cometido o pecado de ter se deitado com o esposo dela várias vezes, mas ela só tinha descoberto a última.
Por isso, era muito grata à madre Maranhão por tê-la acolhido naquele momento de dificuldade. Não tinha dinheiro nem onde dormir, e ela a recebera, mesmo sabendo do seu segredo sujo. Em um mês, estava habituada e pediu para ingressar na ordem; assim, garantiria uma vida digna, um teto e conseguiria se curar da ninfomania. Madre Maranhão permitira; ela enxergava o futuro e não o passado das pessoas. Mas, agora, ela não sabia como explicar a ela o que estava acontecendo com seu corpo. Na verdade, nem ela sabia; parecia muito com uma gravidez, pois tinha todos os sintomas; porém, estava há meses sem deitar-se com alguém, a última vez fora antes da fuga para o convento.
A última coisa mais sexual que fizera, se é que fizera, fora um sonho que tivera três meses atrás; fora tão real que seu corpo chegara ao clímax mesmo dormindo. O problema é que aquele sonho reacendera a chama do pecado. Para refrear seus impulsos, passou a aliviar-se antes de dormir, acariciava-se com as próprias mãos. Não tardou, e sua menstruação atrasou, e, como se as duas coisas estivessem misteriosamente interligadas, sua sede por prazer voltava aos poucos, mas cada vez mais voraz.
Os dedos já não a satisfaziam tanto quanto ela queria. Sua fome, ela ponderava, era incomensurável. Até que um dia, desesperada por mais sensações e explosões orgásticas mais intensas, começara a roçar-se com o terço. Ora esfregava rapidamente, de fora a fora; ora apreciava sentir conta por conta massageando o seu clitóris. Uma noite, fez tanto daquilo que a delicada pele, que antes era rosa, tornara-se de um intenso e dolorido vermelhão.
Aquele ato, que fazia na solidão do seu quarto, às escondidas, rapidamente transformara-se no ponto alto do seu dia. Era a sua válvula de escape e ninguém precisava saber. Durante, era muito prazeroso, mas depois sentia-se imunda. Em meio a todas aquelas mulheres tão castas, tão puras, tão perfeitas, tão santas... Acácia flagrava-se pensando, todas as vezes após o ato, que aquele não era o seu lugar. Mas por fim, qual lugar seria?
De início, achou que o atraso menstrual pudesse ser uma espécie de menopausa precoce, mas os sintomas eram outros, não batiam. Ela tinha enjoos matinais, estava começando a ir ao banheiro com maior frequência.... Tudo o que estava sentindo correspondia à gravidez. Até que a sua barriga começou a crescer cada vez mais, assim como as suas vontades lascivas. Se pegava reparando na beleza dos padres, imaginava-se deitando-se com eles, para logo em seguida rezar vinte ave marias buscando a absolvição daquele pecado. Para esconder a barriga, enquanto não descobria como contar tudo isso à Madre Maranhão, cortou o lençol de sua cama em tiras e as amarrou em torno dela bem apertado. Sabia que era uma solução temporária.
Agora, o que ela estava sentindo, tinha mais urgência de ser resolvido. Cruzava e descruzava as pernas impaciente, a noviça sentada ao seu lado estava começando a se incomodar com isso. Suor escorria às bicas, por sua testa, pescoço, costas e barriga. Sentia algo se movendo dentro do seu ventre. Era algo, mas não era um bebê, porque tinha acesso aos seus pensamentos; os mais vergonhosos.
Parecia que, naquele momento, aquilo esticava braços e dedos por dentro dela, acariciando-se, fazendo movimentos de vai e vem dentro de sua vagina. "Incomodo?" "Ah, não, continua!" — Sentiu o canal aquecer e umidificar-se; não conseguia parar, ela não tinha controle sobre aquilo nem sobre seus desejos. Em sua mente, começou a ouvi-lo. "Vamos para o quarto! Ora, vamos, eu sei que você é só uma puta querendo gozar. Vamos? Você não é uma noviça de verdade, está se escondendo aqui, em meio a essas cordeirinhas. Não adianta esconder, estou dentro de você, estou aqui sentindo você molhar-se de tesão."
"Para!", ela ordenou com os seus pensamentos. "Não paro!", a coisa gritou em resposta, rasgando a sua vagina por dentro com grandes garras, ao que parecia. Em seguida, ela sentiu a coisa se movimentar de maneira diferente, era como se estivesse fechando as mãos. Sentiu os punhos girando, cada nó das mãos provocando seus sentidos; parecia que era senhora de sua mente, pois sabia que aquilo a agradava. Ainda mais que não era apenas uma, mas sim duas deliciosíssimas mãos dentro da sua boceta. Então, a coisa parou repentinamente, também em sua mente; nada se ouvia.
"Justo agora, quando eu ia gozar? Calma, Acácia, não dá para você fazer isso no meio de uma capela, no meio de uma missa; até para você isso é pecado demais."
Acácia levantou-se, as faixas amarradas em sua barriga a faziam sentir um calor triplicado pelo teto da capela baixo e um número grande de pessoas afuniladas ali. Para a noviça ao seu lado, falou que ia ao banheiro, mas estava passando mal — isso ela não falou. Ao chegar ao banheiro, às pressas, foi direto para uma das patentes e vomitou. Ao abrir os olhos, ela não vê o próprio vômito, e sim uma piscina de esperma; ela sabia, porque tinha o gosto e o cheiro característicos. A visão a fez sentir uma nova e forte onda de enjoo. Novamente um jato. Ousou olhar novamente, viu que havia vomitado muito sangue, algumas partes grossas, coalhadas.
Conseguiu levantar-se, mesmo cambaleante, e não voltou para a missa. Apressou-se em chegar ao quarto. Desabou sobre a cama; deitada de costas, virou-se em direção ao crucifixo, fechou os olhos para não olhar para Jesus. Procurou o terço e não encontrou. "Droga, esqueci o terço na capela."
"Ah, sua vagabunda, esqueceu o consolo de freira, é? Que tal usar a cruz?"
"Não!"
"Vamos, sua rameira, admita que o que você quer é enfiar ele até o talo. Admita que você se sente atraída pela escuridão e pela dor!"
"Não! Não! Sai da minha cabeça!"
"Vamos, Acácia... você sabe que precisa disso. Precisa sentir o prazer, o fogo que te consome por dentro. Só assim você poderá me libertar completamente."
"Não... eu não posso fazer isso. Não aqui, não agora. Eu quero ser salva. Eu quero..." Acácia lutava para organizar os pensamentos, mas a presença da coisa se adensava em sua mente, como um nevoeiro.
"Salvação?", a coisa zombava, com uma risada sombria. "Você já abriu mão disso há muito tempo... Todas as noites que você se deitou com o marido de outra. Todas as vezes que você transou com qualquer drogado que encontrasse por aí, disposta a compartilhar a droga que viesse. E depois aqui no convento? É só questão de tempo até você se deitar com algum padre, afinal, uma hora ou outra você iria achar um tão devasso quanto você, está cheio de pedófilos saindo nos jornais. E todas as noites que você tocou o terço contra sua carne, todos os suspiros abafados, todo o suor que molhou esses lençóis... você escolheu o caminho da perdição, acha que ainda há tempo para mudar a sua essência?"
"Pare com isso! Eu só estava tentando... aliviar essa dor... essa fome. Não é culpa minha. Eu estava... estava..." Sua voz tremia, hesitante, mas a entidade se aproveitava de cada fraqueza, alimentando-se dela.
"A culpa é sua, sim. E é essa culpa que me fortalece. Cada vez que você sucumbe ao desejo, eu me alimento. E eu cresço, Acácia... dentro de você. Já não sente isso? O peso, o calor, o desejo cada vez mais incontrolável? Essa fome que nunca passa?"
Ela engoliu em seco, e suas mãos tremiam. "Então... tudo isso... é você?"
"Eu sou parte de você, Acácia. Sou o que sempre esteve escondido nas sombras da sua alma. Mas, para que eu nasça, preciso que você se entregue completamente. Preciso do seu arrependimento, da sua vergonha... para me fortalecer até o momento certo."
"Nasça? O que quer dizer com isso? Eu... eu pensei que..." Suas palavras vacilavam; um calafrio descia por sua espinha ao entender as intenções daquela presença.
"Isso mesmo", a coisa respondeu, seu tom transbordando desprezo e satisfação. "Você não passa de um meio. Quando você finalmente ceder, quando aceitar o que realmente deseja, estarei pronto para tomar o seu lugar. E você... bem, seu corpo será apenas o portal que me trará à liberdade."
Acácia sentiu uma pressão intensa em seu ventre, quase como se algo se contorcesse para sair. A entidade continuou sussurrando, zombando. "Eu precisava de uma noviça... de alguém que já estivesse quebrada, que não resistisse. E quando você chegou, cheia de desejos sujos, escondendo-se de tudo, foi como uma bênção... e como eu cresci desde então."
"Não... não sou apenas um meio. Sou mais forte do que isso!", Acácia protestou, embora a convicção em sua voz fosse escassa.
"Ah, mas é exatamente isso que você é, minha querida. E, agora, não há mais retorno. Sua fé? Seu arrependimento? Já não são mais que migalhas de uma alma entregue. Continue... me alimente. Ceda uma última vez ao prazer que você busca... e eu nascerei."
Ela sentiu o corpo enrijecer, mas o desejo continuava ardendo. A coisa dentro dela pulsava, crescendo, comprimindo-se, pronta para rasgar sua carne e tomar forma. Os pensamentos em sua mente já não eram apenas seus. A coisa estava em tudo, sussurrando e, agora, quase ordenando. Acácia fechou os olhos, sua respiração ofegante. A coisa deu uma última risada, triunfante: "Não lute, Acácia. Sua resistência... é o que eu mais desejo destruir. Liberte-se, e me liberte junto de você."
Em seu íntimo, a noviça sabia que ela não era uma má pessoa. Temia que aquele mal, se ela permitisse, se espalhasse pelo convento. Faria mal a suas únicas amigas, ao lugar que a acolheu. Então usou tudo o que restava de suas forças para se levantar.
“Não vou deixar que você faça isso! Eu vou gritar, eu vou chamar a madre Maranhão!”
Ao ouvir isso, a entidade a fez levitar, evitando que ela corresse em direção à porta, e a jogou contra o espelho do quarto com muita violência.
“Era isso que eu queria!” Acácia pensou. Agarrou o maior caco de vidro que conseguiu e começou a golpear a coisa dentro de sua barriga. Partiu feliz e aliviada, por estar liberta da espiral viciosa que era a sua própria vida e, também, por libertar o convento daquele mal.
Um último pensamento começava a formar-se em sua mente:
“O céu é.…”
Alguns minutos depois, irmã Maranhão batia a sua porta e, não obtendo resposta, abriu-a, estava destrancada. Mais tarde, as irmãs procuraram o crucifixo, mas em vão, ele não fora encontrado em parte alguma do quarto.
Toda fotografia é uma imagem que carrega o espectral: a morte. O instante fotografado jamais será vivido novamente; assim jaz um tempo que passou…