Semblantes
Algum dia, algum mês, algum ano do século XIX
Mmoggun era um artesão que vivia em um vilarejo isolado, onde sua arte de esculpir máscaras era vista como uma habilidade quase mística. Ele conseguia capturar expressões humanas com tanta precisão que era impossível distinguir entre uma máscara e um rosto.
Mmoggun era um homem estranho, com olhos fundos, uma voz baixa que sempre parecia sussurrar para si enquanto trabalhava. Tinha poucos amigos e quase ninguém o visitava. Na verdade, as pessoas o evitavam, elas temiam que ele escondesse algo mais sombrio em seu talento.
Obcecado pela perfeição, Mmoggun, decidiu que as máscaras que criava já não era suficientes. A madeira não conseguia capturar as emoções humanas na mesma profundidade que as feições vivas conseguiam, algo que somente a carne e a pele continham.
Foi então que uma peste caiu sobre o vilarejo, e as pessoas começaram a morrer. Com a morte se espalhando, Mmoggun viu naquela situação a oportunidade de encontrar a expressão perfeita, capturando o momento exato entre a vida e a morte. Passou a visitar os doentes, esculpindo suas máscaras enquanto os observava em seus últimos momentos.
Ele soube da morte de um amigo próximo, a única pessoa que se importava com ele, e isso o mudou profundamente. Seu amigo, Tomás, morrera após dias de agonia. Ao chegar em sua casa, Mmoggun se ajoelhou ao lado do leito, esculpindo o semblante de morte de seu amigo.
Foi nesse instante que o artesão sentiu que aquele ato o mudara. Sentiu um vazio que nenhuma máscara do mundo poderia preencher. Desesperado, ofereceu uma oração sombria aos deuses antigos, às almas esquecidas que habitavam as florestas e as sombras, pedindo que o ajudassem a capturar a verdadeira essência do medo e da morte. Ele ofereceu sua alma, seu corpo e tudo o que possuía.
Algo respondeu ao seu chamado.
Um vento maligno soprou pelo vilarejo, e uma figura encapuzada visitou Mmoggun. Era uma alma ancestral, uma criatura que vivia nas sombras que havia escutado seu desejo. O ser ofereceu a ele o poder de capturar o medo eterno, mas o advertiu:
— Se você aceitar, mortal, jamais poderá abandonar a sua busca, jamais poderá escapar dessa fome que o consome. Irá se tornar um caçador, incapaz de parar enquanto houver uma face que possa exibir um novo tipo de horror.
MMoggun aceitou sem hesitar.
Quando amanhece, ele já não era mais humano. Sua pele esticou, seu rosto se alongou, sua voz se tornou um sussurro gélido e vazio. Ele adquiriu o poder de capturar o semblante de suas vítimas, arrancando suas faces e usando-as como máscaras.
Ao longo dos séculos, ele passou a visitar vilarejos, oferecendo presentes amaldiçoados aos seus escolhidos. Mmoggun se tornou uma criatura temida e sua história nunca foi esquecida.
Tempos atuais
Uma noite, em um inverno particularmente rígido, um jovem recém-chegado à cidade, Rafael, encontrou um presente. Ele acabara de se mudar, atraído pela calmaria do interior. Estava organizando sua mudança quando notou uma caixa preta à sua porta. A madeira escura da caixa parecia absorver a luz da lua, e o intrincado entalhe de runas desconhecidas a transformava em algo hipnótico.
Ao abrir a caixa, Rafael encontrou um espelho de mão, com uma moldura prateada desgastada que, ainda assim, brilhava de forma inexplicável. Ao tocar o espelho, sentiu um frio subir por sua espinha, mas a curiosidade venceu o desconforto. Ele se olhou no espelho e, por um momento, teve a estranha sensação de que sua própria expressão o encarava. Algo nele parecia errado. Contudo, sem saber, esse olhar desconfortável era exatamente o que Mmoggun desejava: uma curiosidade misturada com um início de receio.
Nas noites seguintes, outros presentes foram surgindo. Uma velha caixa de música, e um colar de pedra vermelha. Cada objeto era uma armadilha, um elo a mais que conectava Rafael ao domínio de Mmoggun. Fascinado pelos presentes, o jovem passava horas a sós com eles, perdendo-se no mistério de cada peça, sentindo-se hipnotizado pela aura sinistra que os envolvia.
Foi quando ouviu o sussurro.
— Mmoggun… mmoggun…
O som vinha do nada, parecendo falar diretamente ao seu ouvido, suave, mas gélido. Rafael tentou ignorar, mas a cada noite o sussurro se tornava mais próximo e insistente. Ele já começava a sentir que era observado quando, numa noite, o sussurro se materializou em uma figura.
Mmoggun estava parado na porta de seu quarto. Um vulto encoberto por um manto negro, alto e deformado, com olhos que eram buracos fundos, famintos por alguma emoção que apenas a visão de um rosto aterrorizado poderia saciar. Rafael, fascinado e assustado, ficou imóvel. Era como se um peso invisível o pressionasse contra o chão.
A criatura estendeu a mão, de ossos longos e mostrou-lhe algo: uma última oferta. Era uma pequena escultura de madeira representando um rosto humano contorcido em uma expressão de medo. Rafael, dominado por uma atração inexplicável, tomou a peça e, ao segurá-la, sentiu o toque gelado de Mmoggun em sua pele, como uma promessa silenciosa de sua morte.
Mmoggun avançou então, aproximando-se com uma lentidão aterradora, e com o rosto encoberto pelas sombras, tocou a face de Rafael. O jovem sentiu seu próprio rosto começar a pulsar sob a pressão daquela mão inumana, cada linha de sua expressão sendo medida, analisada, desejada. E antes que pudesse reagir, Mmoggun enfiou as garras na pele de seu rosto e começou a arrancá-lo, centímetro por centímetro, enquanto Rafael, paralisado, assistia ao próprio reflexo no espelho a se desfigurar.
Enquanto o rosto era arrancado, Rafael sentiu o medo tomar conta de sua expressão, transformando-o em uma máscara viva de pavor absoluto. Era a imagem que Mmoggun desejava. Ele absorvia cada detalhe da agonia de sua vítima, a boca entreaberta num grito sufocado, os olhos arregalados em terror.
Quando finalmente Mmoggun se vestiu com o rosto recém-roubado, seu sorriso era uma cópia vazia do que antes fora de Rafael. Ele admirou a máscara de carne no espelho, um prazer sombrio, e desapareceu na noite, carregando consigo mais uma expressão única de horror para atrair novas presas.
Nos dias que se seguiram, a cidade foi tomada por um pavor silencioso. Pessoas relataram avistar Rafael vagando pela floresta, mas sabiam que algo nele estava errado. Aquela expressão aterrorizada que carregava não era a de um homem vivo, mas a de uma vítima aprisionada na última imagem de seu medo. Ninguém ousava falar sobre isso, mas todos entendiam que, uma vez marcado pelos presentes de Mmoggun, não havia como escapar de seu destino.
E ao final de cada noite, o mesmo sussurro continuava a rondar as casas, mais próximo, mais persistente:
— Mmoggun… mmoggun…
Toda fotografia é uma imagem que carrega o espectral: a morte. O instante fotografado jamais será vivido novamente; assim jaz um tempo que passou…