Entre Peles e Almas
Ramalho era um homem praticamente invisível, não no sentido literal da palavra, mas na forma como ele caminhava pelo mundo sem chamar a atenção, nunca deixou nenhum rastro. Era um taxidermista, e por isso vivia trancado em sua casa no centro da cidade. Ele restaurava corpos de animais, de qualquer criatura que encontrasse morto nas ruas.
Sua loja era conhecida entre os colecionadores mórbidos da cidade. Mas havia algo, um segredo. Ramalho não se limitava a recriar os corpos, ele os colecionava. E havia um segredo sombrio, sua coleção não se limitava aos corpos, ele também colecionava o que restava das almas.
Nos fundos de sua casa, havia um quarto onde ninguém entrava, nem mesmo ele, a não ser em certas ocasiões. O ar ali era denso, havia uma energia pesada. Dentro daquele quarto estavam as carcaças de sua mais preciosa coleção: humanos. Não eram apenas simples corpos, eram almas que ele retirava enquanto os mantinha vivos pelo tempo necessário.
Seu método era perfeito. Escolhia sua vítima, geralmente homens ou mulheres solitários, aqueles que ninguém sentiria falta. Eles vinham até ele, atraídos por algum anúncio de emprego ou algo do tipo. Ramalho os convidava para entrar, oferecia um chá ou café. E quando suas vítimas começavam a relaxar, ele agia.
Injetava um sedativo, algo que mantinha o corpo paralisado, mas permitia que a mente ficasse consciente. Era importante que suas vítimas estivessem acordadas durante todo o processo, sentindo cada instante.
Uma noite, Ramalho sentiu que precisava adicionar mais uma peça à sua coleção. Ele escolheu uma fotógrafa, Camila, que tinha a curiosidade de explorar os cantos sombrios da cidade. Ela apareceu na loja, interessada em fotografar as peças de taxidermia para um projeto. Era perfeito.
Quando Camila entrou, Ramalho percebeu algo diferente nela. Havia uma espécie de luz em seus olhos. Ele sorriu, sabendo que aquela seria uma adição única em sua coleção. Como de costume ofereceu chá, que ela aceitou sem suspeitar de nada. Assim que ela levou a xícara a boca, o líquido percorreu sua garganta e o efeito foi imediato. Camila caiu com seus olhos arregalados, completamente consciente, mas incapaz de se mover ou gritar.
Ramalho a levou para o quarto dos fundos. As carcaças de sua coleção estavam dispostas nas paredes como mórbidas obras de arte. Corpos de homens e mulheres empalhados como animais com suas expressões de terror congeladas. O processo com Camila seria lento, mas ele estava ansioso. Preparou seus instrumentos e começou a trabalhar. Cada corte era feito com precisão. Ele começava pelos nervos, sempre pelos nervos, retirando-os meticulosamente enquanto a vítima sentia cada segundo de dor. O corpo permanecia vivo até que ele chegasse ao coração, onde ele retirava a última faísca de consciência, preservando-a em um pequeno jarro ao lado de cada corpo.
Mas algo estava errado com Camila.
Enquanto Ramalho trabalhava, ele percebeu que os olhos dela não estavam como os das outras vítimas. Havia um brilho que não deveria existir. Quando ele chegou perto de sua garganta para fazer mais um corte, ouviu algo que quase fez seu coração parar. Ela murmurava, com a boca quase paralisada, mas ainda com vida o suficiente para formar algumas palavras.
— Você também está aqui Ramalho.
Ele gelou. Era impossível. Nenhuma vítima havia falado durante o processo. Ela deveria estar completamente paralisada, sentindo a dor e incapaz de reagir. E, no entanto, ela o encarava com um suave sorriso que se formava vagarosamente em sua boca.
— Você coleciona o que não entende. Mas o que você esqueceu é que nós também colecionamos você.
Ramalho tentou ignorar. Ele avançou novamente com o bisturi, mas sua mão vacilou. Sentiu o quarto diferente. As carcaças estavam mudando. As bocas dos corpos empalhados agora murmuravam. Ele ouviu as vozes das vítimas que ele havia colecionado ao longo dos anos.
— Ramalho, você é o próximo.
Ele recuou. Não era possível. As almas não estavam mais aprisionadas, elas estavam ali com ele. Todas as vítimas pareciam estar em pé formado um círculo de sombras ao seu redor. Seus corpos agora o encaravam, seus olhos cheios de ódio.
Os jarros ao lado dos corpos começaram a vibrar, e Ramalho caiu de joelhos segurando sua cabeça, tentando bloquear o som dos sussurros que agora estavam ficando cada vez mais altos.
Cada alma que ele havia capturado não estava presa. Elas estavam se acumulando, esperando, se alimentando do medo e da dor que ele causava. E agora, elas o queriam.
Camila, deitada na mesa, ergueu a cabeça o encarando e disse a última coisa que ele ouviria:
— Você pertence a nós agora.
Antes que ele conseguisse reagir, sentiu mãos o segurando, puxando seu corpo para a escuridão que ele mesmo criou. Os corpos caíram sobre ele, as suas bocas se abrindo em um grito tenebroso, enquanto a pele de Ramalho se rasgava, e sua vida sugada.
Ramalho desapareceu, engolido pelas almas que havia colecionado. Quando a polícia invadiu sua casa semanas depois, tudo o que encontraram era um corpo empalhado, os olhos de Ramalho estavam arregalados, aprisionado na sua própria coleção que tanto amava.
Texto publicado no Desafio Sombrio 2024 do Castelo Drácula. Em outubro de 2024. → Ler o desafio completo
Residente de Dom Pedrito/RS, Cláudio Borba formou-se em Contabilidade e escreve contos de terror e poemas geralmente melancólicos. Ele faz parte de diversas antologias de contos e poéticas de diversas editoras. E atualmente trabalha para lançar seus livros de contos e poemas....
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