Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

No coração de um lixão vasto e sombrio, onde o sol raramente penetrava a nuvem de lixo e decadência, vivia uma criança chamada Leo. Seu pai, um homem marcado pela vida, passava os dias garimpando entre as pilhas de desperdício, enquanto Leo explorava o mundo ao seu redor, com os olhos atentos a cada sombra e forma que se desenhava na sujeira. Desde pequeno, Leo tinha um dom peculiar: via rostos nas coisas que os adultos ignoravam. Um pedaço de papel amassado se tornava o sorriso triste de uma mulher; uma garrafa quebrada, o olhar vazio de um homem perdido. Aquela pareidolia era sua única companhia, uma forma de criar amigos em um lugar onde a solidão se acumulava como o lixo. 

Mas, ao longo do tempo, esses rostos começaram a mudar. As expressões, antes tristes, tornaram-se torcidas e malignas. Os olhos, que antes suplicavam por atenção, agora brilhavam com uma intenção obscura. Leo percebia, com um frio na espinha, que as sombras ao seu redor se aglutinavam, formando figuras indistintas que pareciam espreitar entre os restos de vidas descartadas. 

Certa noite, enquanto a lua cheia iluminava o céu poluído, Leo se aventurou mais fundo no lixão. Ele queria descobrir o que havia além das pilhas de plástico e metal. A cada passo, uma sensação de medo e excitação o envolvia. Foi então que viu — realmente viu — algo além das visões. Entre os montes de lixo, um espaço escuro se abria, como um portal para outra dimensão, e as criaturas começaram a emergir. Eram formas indistintas, desprovidas de definição, mas suas intenções eram claras. Olhos que brilhavam como carvão se fixaram em Leo, e a risada que ecoou em sua mente não era humana. Ele entendeu, naquele momento, que aquelas figuras eram as almas perdidas dos objetos que o cercavam, presas entre os restos do que um dia foram. Elas tinham fome. Fome de vida, de luz e de algo mais profundo — a essência da inocência que Leo possuía. 

Desesperado, Leo tentou fugir, mas as criaturas se aproximaram, envolvendo-o em uma dança macabra. Ele viu o que elas eram: sombras da própria dor, reflexos de sua solidão. Eram os ecos de sua mãe, que havia partido quando ele nasceu, e a ausência que o preenchia. O lixo ao seu redor não era apenas desperdício; era um monumento à perda e ao desespero. 

Enquanto tentava escapar, uma delas se destacou, uma figura mais definida, com um rosto que parecia um eco do dele. Era como se Leo estivesse olhando para uma versão distorcida de si mesmo. 

— Nós somos o que você deixa para trás — sussurrou a criatura, a voz um sussurro de metal enferrujado. — Estamos aqui porque você não se despediu. 

Naquele instante, Leo percebeu que não poderia fugir. Ele precisava enfrentar seus medos, confrontar a dor que o cercava. Com um ato de coragem, ele fechou os olhos e deixou suas lágrimas caírem, permitindo que o peso de sua solidão se transformasse em um grito. 

— Mãe, onde você está? — ecoou em seu coração. 

As criaturas hesitaram. A luz de sua vulnerabilidade, embora tênue, iluminou o espaço... Uma a uma, começaram a se dispersar, como fumaça ao vento. Leo abriu os olhos e viu que a escuridão não era eterna... 

Ao retornar para casa, as sombras no lixão tornaram-se menos opressivas. Os rostos, que antes eram malignos, agora pareciam mais claros, mais distantes. Leo compreendeu que a verdadeira monstruosidade não residia nas criaturas, mas na solidão que ele havia carregado. Quando o sol finalmente surgiu, espalhando luz sobre o que havia sido um mundo sombrio, Leo sorriu. Ele não estava sozinho. As vozes do lixo ainda sussurravam, mas agora eram ecos de uma nova esperança, de uma criança que, embora marcada pela dor, havia encontrado um caminho para a luz, para as formas do caos. 

Texto publicado no Desafio Sombrio 2024 do Castelo Drácula. Em outubro de 2024. → Ler o desafio completo

 
 

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