Uma última fotografia
Tia-avó Antônia era considerada "a tia legal”; adorava crianças, animais, coisas estranhas. Morou por muito tempo com a tia Vitória, irmã mais velha do meu pai, que decidiu, ainda jovem, pela solteirice, fazendo companhia à tia-avó Antônia. Moravam em um casarão antigo, cheio de gatos, cães, pássaros e plantas: a típica casa de senhorinha. Passei parte da minha infância visitando-a e à tia Vitória, e o hobby delas, além de viagens, tricô e fofocas sobre a vida alheia, era colecionar. Eu diria que as duas eram acumuladoras, mas odiavam essa palavra; se nomearam colecionadoras de lembranças, um título romântico para o que eu via como uma obsessão por possuir coisas. Elas também colecionavam artigos peculiares, e, depois que tiveram acesso à Internet, aquele casarão vivia recebendo entregas de tudo o que é lugar.
Quando tia Vitória ficou doente, em seus 89 anos, dizia que chegaria aos noventa, pois não gostava de número ímpar, e depois iria para o além. Uma noite, ela se foi, exatamente no dia em que completou 90 anos de idade, e antes de ser enterrada, seu pedido estranho de tirar uma foto post-mortem foi realizado. Eu, naquela época, tinha apenas 15 anos, e, mesmo sabendo dos gostos peculiares das minhas tias, fiquei um pouco temerosa com aquilo. Então, tia-avó Antônia e tia Vitória foram postas sentadas no jardim com todos os seus animais bem treinados, todos a postos para serem fotografados. Nesse dia, eu estava lá, cedendo à minha curiosidade mórbida, que sempre foi evidente para minhas tias, e lembro do rosto de tia Vitória sem vida, sentada com um gato em seu colo, um cachorro aos seus pés e uma calopsita em seu ombro — todos os animais que tanto amava. Estava sentada como se estivesse viva: olhos paralisados com as pupilas bem dilatadas, sorriso estático e uma rigidez assustadora. Ao lado dela, deixando o semblante triste de lado, estava a tia-avó Antônia, com uma expressão paralisada no rosto, como se quisesse espelhar a face de tia Vitória.
Lembro-me de ficar noites sem dormir depois daquilo, e o rosto de ambas parecia ter ficado gravado na parte interna de minhas pálpebras, me acompanhando por várias noites. Dias depois, tia-avó Antônia começou a solicitar minha companhia, pois se sentia solitária sem tia Vitória. Eu, como sempre adorei passar um tempo com as duas, aceitei e passei a visitá-la duas vezes na semana, depois quatro, e, quando vi, estava indo lá todos os dias depois da escola e aos fins de semana. Minha presença era tão constante que ela acabou me convidando para morar com ela quando fiz dezoito. Como sempre adorei sua companhia, aceitei o convite para morar com ela. A casa era antiga, cheia de gatos, cães e pássaros, um refúgio de todos os animais abandonados, que se tornou um refúgio para mim, mesmo com todo aquele passado excêntrico acumulado naquele lugar.
Minha relação com tia-avó Antônia sempre foi incomum. Eu me sentia fascinada por ela, adorava suas histórias e, ao mesmo tempo, possuía um certo temor, como todos na família. Ela era uma mulher impressionante: espirituosa, inteligente, estranha e, claro, rica. Estava sempre disposta a ajudar qualquer um que, segundo ela, “não tentasse aproveitar-se de sua generosidade”. Tínhamos até uma piada entre os familiares — às vezes, comparávamos a ela ao Don Corleone, só que numa versão mais doce e bruxesca, é claro! Todos riam disso, mas havia uma ponta de verdade, já que todos buscavam seu conselho para qualquer coisa que achassem importante. Mesmo na velhice, tia-avó Antônia mantinha a mente afiada como uma navalha.
Quando a tia-avó Antônia morreu, eu tinha 23 anos. Ela me deixou o casarão, a responsabilidade de cuidar do jardim e dos animais, e também uma carta, que demorei três meses para abrir, pois estava profundamente triste para saber o que ela tinha para me dizer. Tia-avó Antônia e tia Vitória sempre deixaram clara sua predileção por mim, então não foi surpresa para ninguém da família quando a casa foi deixada para mim. Passados três meses de sua morte, tomei coragem e abri a carta, encontrando uma simples mensagem:
“Querida Lara,
Deixo tudo em suas mãos até o dia em que eu voltar.
Atenciosamente, tia-avó Antônia.”
Eu ri na hora, lembrando a crença de minhas tias em fantasmas e coisas sobrenaturais. Apesar de ambas serem católicas, elas tinham fascínio por histórias de fantasmas e rituais antigos, então passei as noites a me perguntar se tia-avó Antônia não estaria mais certa do que eu gostaria de admitir, com aquela sua mensagem de “Fui ali e volto logo!”
Foi quando a lembrança da foto post-mortem de tia Vitória voltou à minha mente. Seu último pedido era ser eternizada naquela foto e, aparentemente, o de tia-avó Antônia, além de ser enterrada em seu próprio jardim, era assombrar o casarão. Era assustador pensar nisso vivendo sozinha naquela casa, mas, ao mesmo tempo, era engraçado pensar em como aquelas duas doces senhoras podiam ser tão incomuns. Em uma tarde cinzenta, tudo mudou; resolvi reorganizar as coisas, tentando dar um toque um pouco mais pessoal àquele casarão que passei a amar. Encontrei uma caixa de madeira linda, decorada com entalhes intrincados. Dentro dela, havia uma coleção de fotografias, não como as fotografias comuns delas em viagens que eu já havia visto, mas fotografias post-mortem. Todas as fotos eram de mulheres idosas, cada uma delas com seus olhos vidrados e perdidos, talvez, no além; todas as fotografias com setenta ou oitenta anos de diferença, e a mais recente era a de tia Vitória. O mais perturbador não era o fato de serem fotos de pessoas mortas, mas a companhia das mulheres nessas fotos, que eram todas similares. Então percebi que, em cada foto, as mulheres estavam acompanhadas da tia-avó Antônia, com um sorriso congelado no rosto calmo.
Foi quando me lembrei de algo que a tia-avó disse uma vez, enquanto tomávamos chá no jardim. Ela falou casualmente, como se contasse algo engraçado: “O tempo, Lara, é uma coisa caprichosa; para algumas pessoas, ele não passa da mesma forma. Alguns de nós, minha querida, só aprendemos a esperar o tempo certo.” Lembro-me da sua risada ao dizer isso e minha confusão em não entender nada do que ela dizia. Agora, com as fotos diante de mim, comecei a entender um pouco do que ela quis dizer; minha tia-avó não tinha apenas uma obsessão pelo passado — ela era parte dele. E a mensagem na carta que ela deixou, aquela promessa de que voltaria, não era uma piada ou uma metáfora.
Desde que encontrei aquelas fotos, a atmosfera no casarão parece mais densa, como se estivesse apreensivo pela volta dela. À noite, quando estou prestes a adormecer, ouço sons pelos corredores, sons de uma casa antiga que sempre estiveram lá, mas que só agora fiquei alerta para ouvi-los. Eu sei que ela ainda não está aqui, mas, assim como a casa, estou ansiosa pela sua presença e sei que o tempo dela está chegando. E o que me agonia agora, mais que tudo, é que não sei se ela vai voltar para me agradecer por cuidar de sua casa ou para me convidar a ser a próxima a sentar ao seu lado para uma última fotografia.
Toda fotografia é uma imagem que carrega o espectral: a morte. O instante fotografado jamais será vivido novamente; assim jaz um tempo que passou…